sábado, 30 de novembro de 2013

Homo artisticus




Se a natureza cantava, os homens queriam cantar também


A Terra tem uma idade aproximada de 4,5 bilhões de anos.

Nossa espécie, o Homo sapiens, apareceu em torno de 200 mil anos atrás, na África. Se concentrássemos 4,5 bilhões de anos em uma hora, nosso aparecimento teria ocorrido há menos de dois décimos de segundo. Somos a presença mais recente neste planeta e nos achamos donos dele. Algo para refletir.

Evidências fósseis e genéticas indicam que grandes migrações da África em direção à Eurásia e à Oceania ocorriam já há 70 mil anos. A fala, parece que tínhamos há pelo menos 50 mil anos. Dos 200 mil anos que marcam a nossa presença na Terra, há apenas 10 mil nós nos organizamos em sociedades agrárias, capazes de se sustentarem com o plantio e colheita regular de espécies de vegetais domesticados.

Certamente, quando essas sociedades começaram a se organizar, alguns animais também foram domesticados.

Antes dessas sociedades agrárias, bandos de homens e mulheres corriam pelas savanas africanas e planícies eurasiáticas à procura de alimentos e abrigo. Os perigos eram muitos, de animais predadores e grupos inimigos a fenômenos naturais violentos, como misteriosos vulcões e terremotos. Para sobreviver, nunca se podia baixar a guarda.

Desde cedo, ficou claro aos nossos antepassados que a natureza tinha seus próprios ritmos, alguns regulares e outros irregulares. A linguagem nasceu tanto para facilitar a sobrevivência dos grupos quanto para imitar os sons ouvidos pelo mundo, de cachoeiras e trovões aos pássaros e os temidos tigres. Se a natureza cantava, os homens queriam cantar também.

Recentemente, foram descobertos os instrumentos musicais mais antigos, flautas feitas de ossos de abutres e mamutes, datando entre 35 mil e 40 mil anos atrás. Os objetos foram encontrados em uma região na Alemanha, provando que não só humanos haviam já saído da África então, como também haviam desenvolvido habilidades musicais e artesanais. Se o vento assobiava ao passar por frestas e galhos, se gotas caiam ritmicamente das folhas, os homens procuravam imitar esses sons, criando os instrumentos capazes de fazê-lo.

Apesar de não sabermos muito sobre os costumes dessa gente, é difícil evitar imagens, talvez um pouco românticas, do que ocorria então. A vida era difícil. Provavelmente poucos sobreviviam além dos 20 anos. Mas imagino que existisse uma abundância enorme de animais nos campos, mares e rios. Pinturas nas cavernas da Europa e da África, algumas datando de mais de 20 mil anos atrás, mostram uma enorme variedade de animais e também de cenas de caçadas e de rituais. Provavelmente grupos se reuniam nas cavernas para comer, dormir e celebrar uma boa caça. As pinturas podiam ser tanto ornamentos quanto desenhos ritualísticos que faziam parte de cerimônias religiosas.

Certamente o som das flautas e dos tambores acompanhava os rituais, talvez até na tentativa de imitar os grunhidos dos animais e os sons do ambiente natural onde viviam.

A música e a pintura não eram as únicas expressões artísticas dessas sociedades ancestrais. A escultura também. Figurinos conhecidos como Vênus do Paleolítico, datando de mais de 25 mil anos, mostram o corpo de mulheres bem dotadas de estrogênio, provavelmente símbolos de fertilidade. O impulso criativo parece ser tão antigo quanto a nossa espécie.

Do pouco que conhecemos a respeito dos nossos ancestrais, identificamos neles bastante do que somos hoje. A diferença é que eles viviam em comunhão com o mundo -e não em guerra com ele.

domingo, 24 de novembro de 2013

Abduções por extraterrestres: tudo começou no Brasil

Talvez poucos leitores saibam que o primeiro caso de abdução por seres extraterrestres que ganhou notoriedade internacional tenha ocorrido no Brasil, em 1957. É a história de Antônio Villas Boas, um fazendeiro do oeste de Minas que conta que, na noite de 16 de outubro, enquanto arava o campo, foi sequestrado contra a sua vontade por ETs medindo em torno de 1,5 metro.

A história tem três pontos interessantes: 1) ocorreu antes do famoso caso americano da abdução de Betty e Barney Hill, em 1961; 2) Antônio teve relações sexuais com uma atraente fêmea de cabelos brancos, pelos púbicos vermelhos e olhos azuis no formato dos de um gato, que o seduziu para se reproduzir com um terrestre; 3) Antônio exibiu queimaduras que, ao serem examinadas por um médico, mostraram-se clinicamente semelhantes às provocadas por materiais radioativos.

O que levou muitos, especialmente no exterior, a acreditar na história é que consideravam improvável que um "humilde" fazendeiro fosse capaz de elaborar uma narrativa tão complexa. Na verdade, Antônio não era assim tão humilde: além de a sua família possuir muitas terras, formou-se em advocacia, que praticou até sua morte em 1992.

A maioria dos cientistas nega que abduções sejam relatos reais, considerando-as, quando não pura invenção, produto de estados psicológicos anormais, causados por tendências a fantasiar, estados auto-hipnóticos, síndrome de falsa memória, paralisia durante o sono ou algum tipo de psicopatologia.

O pesquisador americano Peter Rogerson questionou a veracidade do relato de Villas Boas, argumentando que um artigo sobre abduções havia sido publicado na popular revista "O Cruzeiro" em novembro de 1957; segundo ele, a história de Villas Boas começou a ganhar impulso apenas no início de 1958. Fora isso, argumentou que Villas Boas havia sido influenciado pelas narrativas sensacionalistas do ufólogo George Adamski, populares nos anos 50. Infelizmente, Adamski foi desmascarado como um farsante.

A maioria das narrativas de abdução tem elementos em comum com a de Villas Boas: sequestro para uma nave alienígena, exames médicos sobre reprodução ou de natureza sexual, marcas misteriosas deixadas no corpo. Existem mitologias datando de milhares de anos, por exemplo, na Suméria, em torno de 2400 a.C., na qual um demônio em forma masculina (incubo) ou feminina (súcubo) seduz um humano durante o sono. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino escreveram sobre demônios que seduzem humanos.

Exemplos semelhantes ocorrem no folclore de várias partes do mundo.
A estrela mais próxima da Terra está a aproximadamente 4 anos-luz daqui. Nossa espaçonave mais rápida demoraria uns 100 mil anos para chegar lá. Se ETs vieram aqui, teriam que ter tecnologias para fazer viagens interestelares e não serem detectados, visto que relatos de abdução atingem os milhares.

Os ETs parecem ter sérias dificuldade de entender nosso sistema reprodutor, dada a sua insistência nos mesmo experimentos. O paleontólogo J. William Schopf escreveu que "asserções extraordinárias necessitam de provas extraordinárias". No caso das abduções, explicações mais ordinárias dominam a ausência de provas extraordinárias.

domingo, 17 de novembro de 2013

A ciência e o vazio espiritual

Alguns anos atrás, fui convidado para dar uma entrevista ao vivo para uma rádio AM de Brasília. A entrevista foi marcada na estação rodoviária, bem na hora do rush, quando trabalhadores mais humildes estão voltando para suas casas na periferia. A ideia era que as pessoas dessem uma parada e ouvissem o que eu dizia, possivelmente fazendo perguntas.
O entrevistador queria que falasse sobre a ciência do fim do mundo, dado que havia apenas publicado meu livro "O Fim da Terra e do Céu". O fim do mundo visto pela ciência pode ser abordado de várias formas, desde as mais locais, como no furacão que causou verdadeira devastação nas Filipinas, até as mais abstratas, como na especulação do futuro do universo como um todo.

O foco da entrevista eram cataclismos celestes e como inspiraram (e inspiram) tanto narrativas religiosas quanto científicas. Por exemplo, no antigo testamento, no Livro de Daniel ou na história de Sodoma e Gomorra, e no novo, no Apocalipse de João, em que estrelas caem dos céus (chuva de meteoros), o Sol fica preto (eclipse total), rochas incandescentes caem sobre o solo (explosão de meteoro ou de cometa na atmosfera) etc.

Mencionei como a queda de um asteroide de 10 quilômetros de diâmetro na península de Yucatan, no México, iniciou o processo que culminou na extinção dos dinossauros 65 milhões de anos atrás. Enfatizei que o evento mudou a história da vida na Terra, liberando os mamíferos que então existiam --de porte bem pequeno-- da pressão de seus predadores reptilianos, e que estamos aqui por isso. O ponto é que a ciência moderna explica essas transformações na Terra e na história da vida sem qualquer necessidade de intervenção divina. Os cataclismos que definiram nossa história são, simplesmente, fenômenos naturais.

Foi então que um homem, ainda cheio de graxa no rosto, de uniforme rasgado, levantou a mão e disse: "Então o doutor quer tirar até Deus da gente?"

Congelei. O desespero na voz do homem era óbvio. Sentiu-se traído pelo conhecimento. Sua fé era a única coisa a que se apegava, que o levava a retornar todos os dias àquela estação e trabalhar por um mísero salário mínimo. Como que a ciência poderia ajudá-lo a lidar com uma vida desprovida da mágica que fé no sobrenatural inspira?

Percebi a enorme distância entre o discurso da ciência e as necessidades da maioria das pessoas; percebi que para tratar desse vão espiritual, temos que começar bem cedo, trazendo o encantamento das descobertas científicas para as crianças, transferindo a paixão que as pessoas devotam à sua fé para um encantamento com o mundo natural. Temos que ensinar a dimensão espiritual da ciência --não como algo sobrenatural-- mas como uma conexão com algo maior do que somos. Temos que fazer da educação científica um processo de transformação, e não meramente informativo.

Respondi ao homem, explicando que a ciência não quer tirar Deus das pessoas, mesmo que alguns cientistas queiram. Falei da paixão dos cientistas ao devotarem suas vidas a explorar os mistérios do desconhecido. O homem sorriu; acho que entendeu que existe algo em comum entre sua fé e a paixão dos cientistas pelo mundo natural.

Após a entrevista, dei uma volta no lago Sul pensando em Einstein, que dizia que a ciência era a verdadeira religião, uma devoção à natureza alimentada pelo encantamento com o mundo, que nos ensina uma profunda humildade perante sua grandeza.

domingo, 10 de novembro de 2013

Gigantes janelas para o Universo

O pensador francês do século 17, Bernard LeBovier de Fontenelle, bem que avisou: "Toda filosofia se resume a duas coisas: curiosidade e miopia: o problema é que queremos ver mais longe do que enxergamos".

Perfeita a frase como definição da empreitada da astronomia: ver mais longe e mais claramente, tentando aliviar nossa miopia com relação aos mistérios do universo.
De fato, podemos contar a história da astronomia como uma história da evolução dos telescópios e do que foram capazes de enxergar.

Eis o desafio: fontes distantes de luz e de outras formas de radiação são extremamente fracas. Sua intensidade cai com o quadrado da distância. O que vemos a olho nu, não mais do que alguns milhares de estrelas, é uma fração ínfima do que está "lá fora". Pense que, só na nossa galáxia, são mais de 200 bilhões delas. E são mais de 200 bilhões de galáxias espalhadas pelo universo.

A solução é construir "baldes de luz", telescópios capazes de coletar o máximo de luz possível proveniente de fontes que muitas vezes estão a bilhões de anos-luz daqui. A luz que os maiores telescópios coletam agora deixou algumas dessas fontes antes de a Terra se formar, 4,6 bilhões de anos atrás.

A astronomia moderna precisa de telescópios cada vez mais poderosos, capazes de fornecer detalhes cada vez mais precisos de fontes cada vez mais distantes. Sem isso, a ciência e o nosso conhecimento dos céus estagnariam. Para ser competitiva, a astronomia de ponta e os astrônomos que a praticam precisam ter acesso a essas máquinas, que trazem os confins do Universo até nós. Astrônomos que hoje não têm acesso aos maiores telescópios estão fadados a praticar uma astronomia antiquada e com poucas chances de grandes descobertas.

Como na física de partículas, onde máquinas custam bilhões de dólares, na astronomia de ponta os custos também são altos. Existe uma competição saudável entre grupos de países diferentes, cada qual com seus telescópios e projetos para construir outros mais poderosos.

O ESO (Observatório Europeu do Sul) opera, por exemplo, em alguns locais no Chile, onde estive recentemente. Em particular, visitei o VLT (Very Large Telescope), um grupo de quatro telescópios.

O ESO tem planos de construir um telescópio ainda maior, o E-ELT (Extremely Large Telescope) nos próximos anos. O ELT será um gigante, capaz de ver o que nunca foi visto, como planetas semelhantes à Terra girando em torno de outras estrelas, as estrelas mais antigas ou o coração de buracos negros.

Enquanto isso, os EUA, a Austrália e a Coreia do Sul planejam o GMT (Giant Magellan Telescope), também no Chile. Esses instrumentos prometem revolucionar nosso conhecimento do Cosmo.

E o Brasil? Infelizmente, a comunidade astronômica brasileira se vê dividida entre as possíveis opções, dado fundos escassos.
Existe um projeto já avançado de o Brasil se juntar ao ESO como país membro, mas ainda atravancado no Legislativo. A Fapesp deve anunciar em breve acordo para participar do GMT. Enquanto as desavenças criam ainda mais obstáculos, quem perde é a competitividade de nossa astronomia que, sem acesso à esses novos olhos, sofrerá de miopia crescente.

domingo, 3 de novembro de 2013

A elusiva matéria escura

No início da década de 1930, o astrônomo Fritz Zwicky, educado na Suíça e radicado nos EUA, observou o movimento das galáxias no aglomerado de Coma, situado a 321 milhões de anos-luz daqui. Um aglomerado é uma coleção de muitas galáxias, mantidas num volume relativamente pequeno devido à força da gravidade. O de Coma tem mais de 1000 galáxias identificadas.

Para sua surpresa, Zwicky descobriu que as galáxias moviam-se com velocidades bem superiores ao esperado. O "esperado" seria que os movimentos fossem devidos à massa das outras galáxias no aglomerado, ou seja, à massa visível, que produz luz. Usando sua tremenda intuição, Zwicky propôs que havia muito mais massa no aglomerado do que a visível por telescópios, chamando essa massa invisível de "dunkle materie", matéria escura.
Desde então, astrônomos e físicos vêm tentando descobrir que matéria é essa.
Nas três últimas décadas, ficou claro que não só aglomerados de galáxias mas cada uma delas também têm, na sua maioria, um véu de matéria escura. Isto é confirmado de dois modos: como galáxias giram, astrônomos medem as velocidades de rotação de estrelas do centro até a extremidade da galáxia.

Se apenas matéria visível fosse responsável pela gravidade da galáxia, a lei de Newton prevê que a velocidade das estrelas diminui em direção à extremidade da galáxia. Não é o que é observado: vê-se que as velocidades permanecem constantes, como se mais massa envolve-se a galáxia como um casulo.

Outro modo de detecção da matéria escura usa um efeito da teoria da relatividade geral de Einstein, que diz que a presença de massa deforma a geometria do espaço. Nesse caso, tal como a luz que passa por uma lente tem sua trajetória modificada, a luz de uma fonte distante que passa perto duma galáxia também é desviada pela curvatura do espaço. Esse efeito, conhecido como "lente gravitacional", foi previsto por Einstein e observado de forma espetacular.

Juntando essas observações com medidas da expansão do universo, astrônomos e físicos chegaram a um resultado surpreendente: cerca de 25% da matéria no universo é constituída de matéria escura. O estranho disso tudo fica claro quando juntamos essas observações cosmológicas com a física das partículas elementares, que estuda as propriedades dos menores blocos de matéria, como elétrons e quarks: a matéria escura deve ser feita de partículas que não têm nada a ver com as que nós conhecemos. Ou seja, é um tipo novo de matéria, de composição inteiramente desconhecida.

Como viajamos pelo espaço repleto de matéria escura, volta e meia uma das partículas choca-se com a Terra (e com você). Nas últimas duas décadas, vários detectores foram construídos para catar uma dessas partículas de matéria escura.

Na semana passada, o mais sensível até aqui, o experimento LUX (do inglês Large Underground Xenon dark matter experiment - Grande experimento subterrâneo de detecção de matéria escura usando xenônio) publicou os resultados dos primeiros três meses de funcionamento: nada foi achado, o mesmo com todos os outros experimentos que buscam por matéria escura.

Mesmo que a caçada continue, é inevitável questionar se não estamos seguindo a pista errada; talvez a explicação seja outra? Modificações da gravidade foram propostas mas sem grande motivação. Por ora, o universo continua envolto em mistério.