Marcelo Gleiser
colunista da Folha
A missão Cassini foi desenhada especialmente para sobrevoar Titã várias vezes. Para ser preciso, 45 vezes, seus instrumentos colhendo dados a cada passagem, incluindo imagens por radar (ondas de rádio que vão até a superfície e voltam) e câmeras de infravermelho e luz visível. Desde o início, a missão provocou polêmica: seus reatores usam plutônio e temia-se que um acidente durante o lançamento pudesse poluir a atmosfera terrestre com o material altamente radioativo. Mas o acidente não ocorreu e, no dia 15 de outubro de 1997, a Cassini iniciou sua viagem de sete anos até Titã.
Vale a pena uma pausa para apreciar o feito tecnológico que é uma missão dessas. Sete anos no espaço, sua trajetória precisamente calculada para passar perto de Vênus duas vezes, da Terra uma vez (em 1999) e finalmente de Júpiter, ganhando velocidade a cada aproximação até ser catapultada ao seu destino, Cassini é um sofisticado robô capaz de operar sozinho e de enviar os dados coletados a antenas receptoras na Terra. Para completar, a Cassini transporta a tiracolo uma outra sonda chamada Huygens -homenagem ao holandês que descobriu Titã em 1655. A sonda Huygens, construída pela Agência Espacial Européia, cairá em janeiro de pára-quedas na atmosfera de Titã, fazendo análises e medidas de sua composição química e, se sobreviver ao impacto, de seu solo também. Imagine o que Huygens diria se soubesse que uma máquina humana com o seu nome viajou mais de 1 milhão de quilômetros até a lua que ele descobriu há 350 anos. Pergunto-me se podemos imaginar algo mais mágico e fascinante do que isso.
Os dados da Voyager-1 sugeriram não só que Titã tem um atmosfera mais densa do que a da Terra, mas que ela é rica em nitrogênio (em torno de 90%), argônio (em torno de 10%) e, mais interessante ainda, metano, uma substância cuja molécula é composta de carbono e hidrogênio. Numa lua maior do que o planeta Mercúrio, a detecção de compostos de carbono e hidrogênio (hidrocarbonetos) é sempre motivo de grande especulação. Lembre-se de que carbono é o elemento químico essencial para a vida. Será que Titã, com sua temperatura frígida de 180C, tem lagos e oceanos ricos em hidrocarbonetos, reproduzindo a sopa prebiótica que existiu na Terra há bilhões de anos? Finalmente, após 24 anos, essas perguntas serão respondidas.
Os primeiros dados enviados pela Cassini mostram que ao menos a pequena região estudada na passagem inicial é "coberta por materiais orgânicos", disse Ralph Lorenz, da Universidade do Arizona. As suspeitas originais parecem estar corretas. Cientistas da Nasa afirmam que as imagens obtidas por radar sugerem mesmo a existência de lagos compostos por etano ou metano, os dois hidrocarbonetos mais simples. Saliências sinuosas espalham-se pela imagem como tentáculos, sugerindo que a superfície alterne partes sólidas e líquidas, ou mesmo que pedaços de hidrocarbonetos congelados flutuem em mares de metano. As condições atmosféricas sugerem a existência de precipitações líquidas, chuvas de metano. Um cientista chegou a afirmar que as protuberâncias vistas nas imagens aparentam ondas em lagos de hidrocarbonetos. Durante os próximos quatro anos, a Cassini passará mais 44 vezes por Titã, revelando uma realidade muito mais estranha do que a imaginação.
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