domingo, 27 de fevereiro de 2005

A nova cruzada contra a ciência

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Em seu discurso inaugural de janeiro passado, o presidente americano George W. Bush afirmou: "Somos feitos à imagem do Criador da Terra e do Céu". Ou seja, Deus -na versão judaico-cristã da história, veja bem- criou os homens e o Universo. Somos todos deuses, portanto, brincando nos jardins sagrados do cosmo.


O problema ocorre quando a religião passa a atuar fora de sua esfera, tentando evangelizar a população por meio de seu poder político


Vivemos em tempos conturbados. Sei que sempre é possível fazer essa afirmação; problemas sócio-econômicos existiram desde o início da história e não vão desaparecer tão cedo. O que preocupa no momento atual é a infiltração de certas idéias religiosas na política, contrariando os preceitos de uma sociedade democrática. Se o Estado começa a agir em nome de uma determinada religião, passamos a ter uma teocracia. No novo Orçamento da União, Bush cortou o a receita de todos os órgãos dedicados à pesquisa, com exceção do Departamento de Defesa e do de Segurança Interna. Apenas a Nasa se saiu relativamente bem; mas isso porque Bush quer que seus fundos sejam direcionados a levar americanos à Lua e, quem sabe, a Marte. Os fundos da agência espacial destinados à pesquisa básica foram sumariamente cortados, incluindo os que poderiam salvar o Telescópio Espacial Hubble. Ele está com os dias contados.

Por que isso ocorre agora? Uma das razões, certamente não a única, é que com o fim da Guerra Fria os EUA perderam sua maior razão para investir pesado em pesquisa básica. Os soviéticos eram competidores sagazes e os EUA não podiam ficar para trás. Osama Bin Laden e a Al-Qaeda não estão interessados em ciência; só querem saber de religião e terrorismo. Não é coincidência que os ataques de 2001 em Nova York e Washington tenham ocorrido após a direita cristã ter subido ao poder nos Estados Unidos. A noção de que vivemos um retorno das Cruzadas -o uso da religião para justificar combates políticos- não é tão absurda assim.

Uma das vítimas disso é a ciência. Na medida em que a religião controla o poder político, pesquisas passam a ser proibidas em certas áreas, fundos são cortados e dirigidos apenas a interesses nacionais. Isso é exatamente o que está ocorrendo agora nos EUA: proibição da pesquisa com células-tronco, corte de fomento à pesquisa básica, quantias enormes direcionadas para sistemas de defesa por mísseis e radares superpoderosos, projetos espaciais propagandistas, tais como o retorno à Lua etc.

Podemos aprender com o que está ocorrendo nos EUA e tentar evitar que o mesmo aconteça no Brasil. Pesquisas nos EUA e no Brasil mostram que, em ambos os países, a maioria da população concorda com a afirmação de Bush em seu discurso inaugural. Isso é prova de que a educação científica, tanto lá quanto cá, deixa a desejar.

Note que não tenho uma postura antirreligiosa. Muito pelo contrário, acho inocentes os cientistas que consideram que fé e ignorância andam de mãos dadas. A religião é muito mais antiga do que a ciência e não irá (e nem deve) desaparecer. O problema ocorre quando a religião passa a atuar fora de sua esfera, tentando evangelizar a população por meio de seu poder político. Como no Rio de Janeiro, forçando o ensino do criacionismo como uma alternativa a teorias científicas. Quem perde com isso são nossos estudantes e, com eles, o país inteiro. Se ciência de ponta não puder ser feita aqui, será feita em outro lugar.

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