Astrofísico, escritor, roteirista: uma viagem pelo universo íntimo do único cientista pop do Brasil
ELIANE BRUM
» Confira a íntegra da entrevista com o cientista Marcelo Gleiser |
A aurora só viria bem mais tarde e outras perdas depois. ''Esse começo é a pedra filosofal da minha vida'', diz. ''Sou produto dessa perda. Quando se perde algo tão importante, você passa o resto da vida criando por causa dessa destruição. É como uma compensação. Quando era adolescente, percebi que tinha duas opções: ou me tornava uma pessoa mórbida ou tentava criar a partir da perda. Fui até o fundo do buraco para perceber que a resposta não estava lá. A resposta não estava em descobrir a vida depois da morte, mas a vida que estava acontecendo aqui e agora. Então me entendi.'' O cientista que virou pop está há mais de 1 bilhão de segundos de seu big bang particular. Aos 46 anos, transformar-se em vampiro foi a única façanha que Marcelo Gleiser não conseguiu. É o tipo que parece ter conquistado tudo. Tornar-se um cientista de expressão internacional já seria proeza suficiente para uma vida. Em 1994, Gleiser era exatamente isso. Pesquisador e professor de Física e Astronomia do Dartmouth College, uma das mais prestigiadas universidades americanas, suas descobertas sobre o cosmos foram premiadas pela Casa Branca.
Gleiser criou muito. Dez anos depois do primeiro prêmio, um nada para o Universo, ele se expandiu. Tanto que se dá ao luxo de mudar de área, uma ousadia para poucos na Ciência: vai se dedicar à Astrobiologia - o estudo da vida na Terra e em outros planetas. Isso depois de escrever dois livros de divulgação científica e ganhar dois Jabutis - o principal troféu da literatura brasileira. Acabou de lançar o Micro Macro, coletânea de suas colunas na Folha de S.Paulo. Prepara-se para publicar o primeiro romance, 100 mil palavras sobre a vida de Johann Kepler (1571-1630), o medidor dos céus. Quem leu, diz que ele ficará mais famoso do que já é.
|
Com essa capacidade de propagação, esperava-se que, por uma espécie de lei física das compensações, Gleiser fosse corcunda. Ele é loiro, tem olhos azuis, 1,79 metro, 68 quilos. Mantém o físico de atleta: em 1975 foi campeão brasileiro de vôlei. Seu levantador era ninguém menos que Bernardinho, o técnico da seleção de ouro do vôlei masculino. ''Desde menino ele sempre foi tão lindo que tirava o fôlego das pessoas'', conta o irmão mais velho, Luiz Gleiser, diretor de núcleo da TV Globo. ''Por isso, está acostumado a ter sempre muita gente olhando para ele. Gosta de aparecer.''
PAIZÃO Gleiser, com a filha Tali, de 9 anos (à dir.), e uma amiguinha, em fevereiro
|
Gleiser vive hoje em Hanover, no Estado de New Hampshire. Sua casa se esparrama em uma floresta emoldurada por montanhas. O rio passa quase na porta. Semanas atrás ele cortava grama - tarefa que detesta - quando Jô Soares ligou querendo dirimir algumas dúvidas sobre a relatividade. Caetano Veloso é outro de seus fãs famosos: conta que se inspirou na obra de Gleiser para compor ''Livros''.
Dentro da paisagem de calendário, Gleiser faz alpinismo, passeia de caiaque e pesca trutas - mas as devolve vivas à agua, embora um tanto machucadas. ''Quando ele era pequeno, se equipava e saía todo compenetrado para pescar'', conta o irmão Luiz. ''Só pegava uns peixinhos. Ficava vendo o céu e cismando.'' Gleiser brinca que fica ''pensando no que a truta está pensando''. Pensa tanto na truta que atualmente estuda - seriamente - o que seria o cúmulo do politicamente correto: pincelar com iodo a garganta dos peixes para que não tenham uma infecção.
CENÁRIO PERFEITO
A vista de sua casa no meio da floresta, em Hanover. |
Outro amigo é o prêmio Nobel de Química de 1981, Roald Hoffmann. ''Gleiser é a estrela mais brilhante de uma pequena constelação que consegue escrever numa língua que todos entendem'', derrama-se Hoffmann. ''O que faz com que se destaque é sua disposição de se engajar na condição humana. Ele nos conta não apenas sobre os engenhosos modos com que tentamos entender o mistério que nos cerca, mas também a nós mesmos.'' Hoffmann e Gleiser, aliás, desfilaram pela Unidos da Tijuca em 2004, vestidos de Santos Dumont. Gleiser não samba, mas assegura que se ''mexe'' bastante.
Viaja pelo mundo em cruzeiros de caçadores de eclipses. É trabalho
|
Gleiser adora cozinhar, especialmente pratos tailandeses. E sabe tudo sobre vinhos. Os gostos cinematográficos passeiam de Ingmar Bergman e Andrei Tarkovski a Steven Spielberg. Os literários viajam dos contos de Poe e da poesia de Fernando Pessoa aos contemporâneos José Saramago e Salman Rushdie. Prefere música erudita, em cujas sinfonias migrou de Mahler para Brahms, mudança que atribui a uma certa calmaria da maturidade.
FAMÍLIA
Com a mulher, Kari, e o filho Eric, de 12 anos |
Esse Gleiser solar data do final da adolescência. Por volta dos 20 anos, ele decidiu se deitar no divã. Procurou um gigante, Hélio Pelegrino. O psicanalista escutou sua precoce trajetória de perdas e o despachou para a rua, dizendo mais ou menos o seguinte: ''Você não vai ganhar nada com a psicanálise. O mais importante na vida é a pró-cura. Você procura através da Ciência''. Os amigos de Gleiser ficaram revoltados: ''Pô, o cara te deu alta na entrevista!''.
Marcelo Gleiser procura até hoje.
Medindo a alma de Kepler
Marcelo Gleiser fala sobre seu primeiro romance, ainda inédito
Escrita primeiro em inglês, a biografia de Johann Kepler consumiu quase três anos da vida de Marcelo Gleiser. Será lançada pela Cia. das Letras em 2006. O título - Skybound - ainda não tem tradução em português.
Maurilo Clareto/ÉPOCA
|
Marcelo Gleiser - Foi a coisa mais difícil que eu fiz em minha vida. Sou fascinado por Kepler, que criou a ciência dele como se fosse um apóstolo. Dizia que a geometria é a linguagem que criamos para entender a mente divina. Era um cara torturado, que só encontrava paz nas esferas. Sua mãe quase foi queimada como bruxa, ele viveu no tempo da Guerra dos 30 Anos entre católicos e protestantes. Esse livro é uma metáfora para os dias de hoje. É um espelho porque o mundo está novamente polarizado por guerras religiosas. Mas é mais do que isso, porque conto a partir de duas linhas temporais, a do próprio Kepler e a de seu mentor, Michael Mastlin. Ninguém o conhece. Esse é o lance. Esse livro é o Amadeus da Ciência.
ÉPOCA - Você se refere ao Amadeus de Peter Shaffer, transformado depois em filme por Milos Forman, sobre a relação entre Mozart e Antonio Salieri?
Gleiser - A diferença é que o Salieri não era professor do Mozart, como o Mastlin era. O Mastlin se desesperava porque era um bom astrônomo, mas nunca faria o que o Kepler fez. O livro é também essa angústia da mediocridade, de você ser criativo o suficiente para perceber a genialidade do outro.
ÉPOCA - O que isso tem de você?
Gleiser - Eu já me senti burro e gênio. Já tive alunos brilhantes e alunos burros. Já fui considerado brilhante e burro por meus professores. Esse tema é universal. O novo contra o velho. Dedico esse livro a meus mentores vivos e mortos.
ÉPOCA - O que é ficção e o que não é?
Gleiser - Todos os fatos do livro aconteceram. É um romance biográfico. Segui os passos do Kepler por três semanas: Alemanha, Áustria, Praga. Sentei à mesa em que ele sentava, li o livro que ele estava lendo. Tenho a correspondência trocada entre Kepler e Mastlin. Li toneladas de coisas. Tentei encarnar a vida dele. Reescrevi três vezes.
ÉPOCA - Foi difícil?
Gleiser - Nunca chorei escrevendo um livro de não-ficção. Neste chorei. É verdade o que os escritores falam, de que os personagens dominam a gente. Eles me puxavam pela mão. Estavam vivos dentro de mim. Então, quando passavam por um momento difícil ou catártico, eu chorava. Eu me deprimi muito quando o livro acabou. Entendi por que algumas mulheres se deprimem depois do parto. Na gravidez aquele filho é seu, está dentro de você. De repente sai e está lá fora, é uma outra pessoa. Eu me sinto assim.
ÉPOCA - Todo esse caminho, e agora esse romance, ajudou-o a lidar com a morte?
Gleiser - Não. Tenho medo de morrer. Que eu saiba, é o fim.
O planeta Gleiser
Nenhum comentário:
Postar um comentário