A ciência precisa de liberdade para progredir. É difícil imaginar que idéias possam fluir em uma realidade cheia de obstáculos morais e censuras legislativas. A ciência, aqui, não difere de cultura em geral: é difícil também imaginar que a produtividade cultural possa sobreviver apenas clandestinamente, se bem que esse foi e é o caso em ditaduras militares ou religiosas. A censura e a rigidez moral castram a criatividade, mas não conseguem destruí-la.
Por outro lado, se a ciência serve à sociedade, ela deve prestar contas ao cidadão. Afinal, ao menos em pesquisa mais básica, quem paga a conta são os governos, a partir da coleta de impostos. E, como quem paga os impostos é o cidadão, a produtividade científica é financiada, em grande parte, pela sociedade.
Claro, existe também a pesquisa financiada diretamente pela indústria, com fins lucrativos. Ou a pesquisa financiada pelo governo com fins militares. Com o desenvolvimento acelerado da tecnologia nos últimos 20 anos, essas linhas divisórias têm se tornado cada vez mais invisíveis. Um físico desenvolvendo um novo tipo de liga metálica pode estar interessado em suas propriedades a baixíssimas temperaturas (a ciência básica, pois baixas temperaturas não são viáveis comercialmente), ou na sua utilização na construção civil (a ciência aplicada), ou na sua utilização em mísseis intercontinentais (a ciência bélica). A liga metálica é a mesma, mas ela pode servir a propósitos completamente distintos.
Aqui surge um dilema para o cientista: até que ponto sua obrigação profissional deve interferir em sua atividade criativa? Será que o físico trabalhando em uma universidade, sabendo que sua nova liga metálica pode ser usada em mísseis, deve divulgar seus resultados?
Para citar um exemplo histórico, Leonardo da Vinci construiu várias armas de guerra para o seu patrono. Mas ele recusou-se a divulgar seus planos para a construção de um submarino, pois sabia que seu uso, aliado à perversidade do homem, provocaria mortes horrendas sob as águas. Da Vinci não queria ter seu nome associado a tal máquina de destruição. Hoje, apenas um submarino da Marinha norte-americana é capaz de carregar 24 mísseis nucleares de alcance intercontinental, suficientes para destruir uma boa fração da vida na Terra.
A lição dessa história é clara: nenhuma invenção permanecerá "escondida" por muito tempo. Alguém acabará por redescobri-la mais cedo ou mais tarde. Os norte-americanos ficaram completamente boquiabertos quando os soviéticos detonaram uma bomba atômica logo após o fim da Segunda Guerra, seguida de uma bomba de hidrogênio.
O Projeto Genoma, envolvendo centenas de cientistas espalhados pelo mundo, compete com laboratórios privados na corrida pelo mapeamento do genoma humano. A biotecnologia levanta uma série de novos desafios éticos, questões que a sociedade precisa confrontar. Este mês, um trio de médicos anunciou em Roma que a clonagem de humanos é uma questão de tempo. E não muito. Várias pessoas têm uma verdadeira aversão à idéia de que será possível construirmos cópias exatas de um ser humano. Mais ainda, com a manipulação direta do gene, será também possível "encomendar" uma pessoa, como encomendamos um terno no alfaiate. Essa cor de olhos, essa altura, essa cor de pele, um bom atleta, Q.I. alto.
A primeira reação é: "Mas que absurdo! Isso deve ser proibido!" Mas essa reação é inútil. Porque a pesquisa irá continuar, proibida ou não, do mesmo modo que jornalistas, músicos e cineastas continuam a trabalhar sob regimes de ditadura. Países irão adotar políticas diferentes, alguns mais liberais do que outros.
Veja o exemplo recente do Reino Unido, autorizando a pesquisa que usa embriões para buscar a cura de várias doenças. Portanto, fora laboratórios clandestinos, os cientistas podem sempre emigrar para países mais liberais. É fácil criticar os cientistas pela sua "ganância", por esse apetite de querer sempre ir em frente. Mas essa é justamente a força da ciência. Sem essa curiosidade, ela entra em estagnação. O que a sociedade deve exigir dos cientistas é um compromisso moral com a verdade, um franco diálogo em que as repercussões das pesquisas são discutidas abertamente. É hipócrita culpar o inventor da pólvora pela morte de todas as pessoas em guerras. Somos nós que vamos à guerra, nossos governos, nossos soldados, nossos cientistas.
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