domingo, 1 de dezembro de 2013

Mente e Matéria

Escrevo esta coluna de Agra, Índia, onde participo de uma conferência sobre os fundamentos da física quântica e sua possível relação com a mente. Nada como misturar dois mistérios para criar um ainda maior.
Pois a verdade é que, apesar de a física quântica ser, nas suas aplicações práticas --que incluem toda a tecnologia digital e nuclear-- extremamente bem-sucedida, sua interpretação permanece incerta, alvo de acirrado debate entre os físicos.
Quanto ao funcionamento do cérebro, em particular sua relação com a mente e o consciente, continuamos conhecendo pouco, mesmo se, nos últimos anos, avanços nas técnicas de ressonância magnética vêm revolucionando os estudos de como o cérebro, ou partes dele, se comporta durante as mais diversas tarefas.
Tudo começou quando Descartes, no século 17, propôs uma separação entre a matéria e a mente. Enquanto matéria tem extensão no espaço (preenchendo-o por completo, segundo Descartes), a mente existe meio que etereamente, sem ocupar espaço. Ela não é matéria mas, de alguma forma que mesmo Descartes não entendia, é capaz de influenciá-la.
Descartes postulou também que a mente é mais essencial que a matéria, o seu famoso "Penso, logo existo". Esse dualismo da mente e matéria causa muita confusão, especialmente naqueles que nele se apegam para defender a existência de uma alma ou um espírito que independe da matéria.
Por outro lado, a maioria absoluta dos cientistas e filósofos defende que apenas matéria existe; se o funcionamento do cérebro é um mistério, isso não se deve à existência de uma entidade não material mas à nossa dificuldade de compreender sua complexidade.
Existem aqueles que defendem que entender o cérebro é reduzir seu comportamento às interações entre neurônios e grupos de neurônios a partir de cada sinapse, e aqueles, principalmente o grupo de filósofos defensores do "misterianismo", que argumentam que somos cognitivamente incapazes de compreender como funciona a mente e, em particular, o consciente --a experiência subjetiva que temos quando sentimos algo, seja o tom de uma cor ou a emoção do amor.
A física quântica entra aqui devido ao comportamento bizarro de sistemas atômicos. A ideia é que esse comportamento tem algo a dizer sobre a mente, em particular a propriedade da superposição, em que elétrons ou outras partículas, antes de serem detectados, podem ocupar vários pontos do espaço ao mesmo tempo.
A detecção do elétron seleciona um desses pontos, que podemos prever com certa probabilidade. O físico Roger Penrose e o anestesista Stuart Hameroff sugerem que pensamentos existem em superposição no inconsciente e que uma proteína chamada tubulina é a responsável pela seleção final de um deles, tornando-os conscientes.
Para isso, usam outra propriedade estranha, o emaranhamento, onde duas entidades (e.g. elétrons) podem existir num estado onde suas identidades desaparecem e o par forma uma entidade só: o que ocorre em um influencia o outro, mesmo se separados por longas distâncias. Dessa forma, partes diferentes do cérebro podem se "comunicar" instantaneamente.
Mesmo que a relação entre a física quântica e o cérebro permaneça um mistério, sem essas ideias pioneiras certamente não faríamos progresso.

sábado, 30 de novembro de 2013

Homo artisticus




Se a natureza cantava, os homens queriam cantar também


A Terra tem uma idade aproximada de 4,5 bilhões de anos.

Nossa espécie, o Homo sapiens, apareceu em torno de 200 mil anos atrás, na África. Se concentrássemos 4,5 bilhões de anos em uma hora, nosso aparecimento teria ocorrido há menos de dois décimos de segundo. Somos a presença mais recente neste planeta e nos achamos donos dele. Algo para refletir.

Evidências fósseis e genéticas indicam que grandes migrações da África em direção à Eurásia e à Oceania ocorriam já há 70 mil anos. A fala, parece que tínhamos há pelo menos 50 mil anos. Dos 200 mil anos que marcam a nossa presença na Terra, há apenas 10 mil nós nos organizamos em sociedades agrárias, capazes de se sustentarem com o plantio e colheita regular de espécies de vegetais domesticados.

Certamente, quando essas sociedades começaram a se organizar, alguns animais também foram domesticados.

Antes dessas sociedades agrárias, bandos de homens e mulheres corriam pelas savanas africanas e planícies eurasiáticas à procura de alimentos e abrigo. Os perigos eram muitos, de animais predadores e grupos inimigos a fenômenos naturais violentos, como misteriosos vulcões e terremotos. Para sobreviver, nunca se podia baixar a guarda.

Desde cedo, ficou claro aos nossos antepassados que a natureza tinha seus próprios ritmos, alguns regulares e outros irregulares. A linguagem nasceu tanto para facilitar a sobrevivência dos grupos quanto para imitar os sons ouvidos pelo mundo, de cachoeiras e trovões aos pássaros e os temidos tigres. Se a natureza cantava, os homens queriam cantar também.

Recentemente, foram descobertos os instrumentos musicais mais antigos, flautas feitas de ossos de abutres e mamutes, datando entre 35 mil e 40 mil anos atrás. Os objetos foram encontrados em uma região na Alemanha, provando que não só humanos haviam já saído da África então, como também haviam desenvolvido habilidades musicais e artesanais. Se o vento assobiava ao passar por frestas e galhos, se gotas caiam ritmicamente das folhas, os homens procuravam imitar esses sons, criando os instrumentos capazes de fazê-lo.

Apesar de não sabermos muito sobre os costumes dessa gente, é difícil evitar imagens, talvez um pouco românticas, do que ocorria então. A vida era difícil. Provavelmente poucos sobreviviam além dos 20 anos. Mas imagino que existisse uma abundância enorme de animais nos campos, mares e rios. Pinturas nas cavernas da Europa e da África, algumas datando de mais de 20 mil anos atrás, mostram uma enorme variedade de animais e também de cenas de caçadas e de rituais. Provavelmente grupos se reuniam nas cavernas para comer, dormir e celebrar uma boa caça. As pinturas podiam ser tanto ornamentos quanto desenhos ritualísticos que faziam parte de cerimônias religiosas.

Certamente o som das flautas e dos tambores acompanhava os rituais, talvez até na tentativa de imitar os grunhidos dos animais e os sons do ambiente natural onde viviam.

A música e a pintura não eram as únicas expressões artísticas dessas sociedades ancestrais. A escultura também. Figurinos conhecidos como Vênus do Paleolítico, datando de mais de 25 mil anos, mostram o corpo de mulheres bem dotadas de estrogênio, provavelmente símbolos de fertilidade. O impulso criativo parece ser tão antigo quanto a nossa espécie.

Do pouco que conhecemos a respeito dos nossos ancestrais, identificamos neles bastante do que somos hoje. A diferença é que eles viviam em comunhão com o mundo -e não em guerra com ele.

domingo, 24 de novembro de 2013

Abduções por extraterrestres: tudo começou no Brasil

Talvez poucos leitores saibam que o primeiro caso de abdução por seres extraterrestres que ganhou notoriedade internacional tenha ocorrido no Brasil, em 1957. É a história de Antônio Villas Boas, um fazendeiro do oeste de Minas que conta que, na noite de 16 de outubro, enquanto arava o campo, foi sequestrado contra a sua vontade por ETs medindo em torno de 1,5 metro.

A história tem três pontos interessantes: 1) ocorreu antes do famoso caso americano da abdução de Betty e Barney Hill, em 1961; 2) Antônio teve relações sexuais com uma atraente fêmea de cabelos brancos, pelos púbicos vermelhos e olhos azuis no formato dos de um gato, que o seduziu para se reproduzir com um terrestre; 3) Antônio exibiu queimaduras que, ao serem examinadas por um médico, mostraram-se clinicamente semelhantes às provocadas por materiais radioativos.

O que levou muitos, especialmente no exterior, a acreditar na história é que consideravam improvável que um "humilde" fazendeiro fosse capaz de elaborar uma narrativa tão complexa. Na verdade, Antônio não era assim tão humilde: além de a sua família possuir muitas terras, formou-se em advocacia, que praticou até sua morte em 1992.

A maioria dos cientistas nega que abduções sejam relatos reais, considerando-as, quando não pura invenção, produto de estados psicológicos anormais, causados por tendências a fantasiar, estados auto-hipnóticos, síndrome de falsa memória, paralisia durante o sono ou algum tipo de psicopatologia.

O pesquisador americano Peter Rogerson questionou a veracidade do relato de Villas Boas, argumentando que um artigo sobre abduções havia sido publicado na popular revista "O Cruzeiro" em novembro de 1957; segundo ele, a história de Villas Boas começou a ganhar impulso apenas no início de 1958. Fora isso, argumentou que Villas Boas havia sido influenciado pelas narrativas sensacionalistas do ufólogo George Adamski, populares nos anos 50. Infelizmente, Adamski foi desmascarado como um farsante.

A maioria das narrativas de abdução tem elementos em comum com a de Villas Boas: sequestro para uma nave alienígena, exames médicos sobre reprodução ou de natureza sexual, marcas misteriosas deixadas no corpo. Existem mitologias datando de milhares de anos, por exemplo, na Suméria, em torno de 2400 a.C., na qual um demônio em forma masculina (incubo) ou feminina (súcubo) seduz um humano durante o sono. Santo Agostinho e São Tomás de Aquino escreveram sobre demônios que seduzem humanos.

Exemplos semelhantes ocorrem no folclore de várias partes do mundo.
A estrela mais próxima da Terra está a aproximadamente 4 anos-luz daqui. Nossa espaçonave mais rápida demoraria uns 100 mil anos para chegar lá. Se ETs vieram aqui, teriam que ter tecnologias para fazer viagens interestelares e não serem detectados, visto que relatos de abdução atingem os milhares.

Os ETs parecem ter sérias dificuldade de entender nosso sistema reprodutor, dada a sua insistência nos mesmo experimentos. O paleontólogo J. William Schopf escreveu que "asserções extraordinárias necessitam de provas extraordinárias". No caso das abduções, explicações mais ordinárias dominam a ausência de provas extraordinárias.

domingo, 17 de novembro de 2013

A ciência e o vazio espiritual

Alguns anos atrás, fui convidado para dar uma entrevista ao vivo para uma rádio AM de Brasília. A entrevista foi marcada na estação rodoviária, bem na hora do rush, quando trabalhadores mais humildes estão voltando para suas casas na periferia. A ideia era que as pessoas dessem uma parada e ouvissem o que eu dizia, possivelmente fazendo perguntas.
O entrevistador queria que falasse sobre a ciência do fim do mundo, dado que havia apenas publicado meu livro "O Fim da Terra e do Céu". O fim do mundo visto pela ciência pode ser abordado de várias formas, desde as mais locais, como no furacão que causou verdadeira devastação nas Filipinas, até as mais abstratas, como na especulação do futuro do universo como um todo.

O foco da entrevista eram cataclismos celestes e como inspiraram (e inspiram) tanto narrativas religiosas quanto científicas. Por exemplo, no antigo testamento, no Livro de Daniel ou na história de Sodoma e Gomorra, e no novo, no Apocalipse de João, em que estrelas caem dos céus (chuva de meteoros), o Sol fica preto (eclipse total), rochas incandescentes caem sobre o solo (explosão de meteoro ou de cometa na atmosfera) etc.

Mencionei como a queda de um asteroide de 10 quilômetros de diâmetro na península de Yucatan, no México, iniciou o processo que culminou na extinção dos dinossauros 65 milhões de anos atrás. Enfatizei que o evento mudou a história da vida na Terra, liberando os mamíferos que então existiam --de porte bem pequeno-- da pressão de seus predadores reptilianos, e que estamos aqui por isso. O ponto é que a ciência moderna explica essas transformações na Terra e na história da vida sem qualquer necessidade de intervenção divina. Os cataclismos que definiram nossa história são, simplesmente, fenômenos naturais.

Foi então que um homem, ainda cheio de graxa no rosto, de uniforme rasgado, levantou a mão e disse: "Então o doutor quer tirar até Deus da gente?"

Congelei. O desespero na voz do homem era óbvio. Sentiu-se traído pelo conhecimento. Sua fé era a única coisa a que se apegava, que o levava a retornar todos os dias àquela estação e trabalhar por um mísero salário mínimo. Como que a ciência poderia ajudá-lo a lidar com uma vida desprovida da mágica que fé no sobrenatural inspira?

Percebi a enorme distância entre o discurso da ciência e as necessidades da maioria das pessoas; percebi que para tratar desse vão espiritual, temos que começar bem cedo, trazendo o encantamento das descobertas científicas para as crianças, transferindo a paixão que as pessoas devotam à sua fé para um encantamento com o mundo natural. Temos que ensinar a dimensão espiritual da ciência --não como algo sobrenatural-- mas como uma conexão com algo maior do que somos. Temos que fazer da educação científica um processo de transformação, e não meramente informativo.

Respondi ao homem, explicando que a ciência não quer tirar Deus das pessoas, mesmo que alguns cientistas queiram. Falei da paixão dos cientistas ao devotarem suas vidas a explorar os mistérios do desconhecido. O homem sorriu; acho que entendeu que existe algo em comum entre sua fé e a paixão dos cientistas pelo mundo natural.

Após a entrevista, dei uma volta no lago Sul pensando em Einstein, que dizia que a ciência era a verdadeira religião, uma devoção à natureza alimentada pelo encantamento com o mundo, que nos ensina uma profunda humildade perante sua grandeza.

domingo, 10 de novembro de 2013

Gigantes janelas para o Universo

O pensador francês do século 17, Bernard LeBovier de Fontenelle, bem que avisou: "Toda filosofia se resume a duas coisas: curiosidade e miopia: o problema é que queremos ver mais longe do que enxergamos".

Perfeita a frase como definição da empreitada da astronomia: ver mais longe e mais claramente, tentando aliviar nossa miopia com relação aos mistérios do universo.
De fato, podemos contar a história da astronomia como uma história da evolução dos telescópios e do que foram capazes de enxergar.

Eis o desafio: fontes distantes de luz e de outras formas de radiação são extremamente fracas. Sua intensidade cai com o quadrado da distância. O que vemos a olho nu, não mais do que alguns milhares de estrelas, é uma fração ínfima do que está "lá fora". Pense que, só na nossa galáxia, são mais de 200 bilhões delas. E são mais de 200 bilhões de galáxias espalhadas pelo universo.

A solução é construir "baldes de luz", telescópios capazes de coletar o máximo de luz possível proveniente de fontes que muitas vezes estão a bilhões de anos-luz daqui. A luz que os maiores telescópios coletam agora deixou algumas dessas fontes antes de a Terra se formar, 4,6 bilhões de anos atrás.

A astronomia moderna precisa de telescópios cada vez mais poderosos, capazes de fornecer detalhes cada vez mais precisos de fontes cada vez mais distantes. Sem isso, a ciência e o nosso conhecimento dos céus estagnariam. Para ser competitiva, a astronomia de ponta e os astrônomos que a praticam precisam ter acesso a essas máquinas, que trazem os confins do Universo até nós. Astrônomos que hoje não têm acesso aos maiores telescópios estão fadados a praticar uma astronomia antiquada e com poucas chances de grandes descobertas.

Como na física de partículas, onde máquinas custam bilhões de dólares, na astronomia de ponta os custos também são altos. Existe uma competição saudável entre grupos de países diferentes, cada qual com seus telescópios e projetos para construir outros mais poderosos.

O ESO (Observatório Europeu do Sul) opera, por exemplo, em alguns locais no Chile, onde estive recentemente. Em particular, visitei o VLT (Very Large Telescope), um grupo de quatro telescópios.

O ESO tem planos de construir um telescópio ainda maior, o E-ELT (Extremely Large Telescope) nos próximos anos. O ELT será um gigante, capaz de ver o que nunca foi visto, como planetas semelhantes à Terra girando em torno de outras estrelas, as estrelas mais antigas ou o coração de buracos negros.

Enquanto isso, os EUA, a Austrália e a Coreia do Sul planejam o GMT (Giant Magellan Telescope), também no Chile. Esses instrumentos prometem revolucionar nosso conhecimento do Cosmo.

E o Brasil? Infelizmente, a comunidade astronômica brasileira se vê dividida entre as possíveis opções, dado fundos escassos.
Existe um projeto já avançado de o Brasil se juntar ao ESO como país membro, mas ainda atravancado no Legislativo. A Fapesp deve anunciar em breve acordo para participar do GMT. Enquanto as desavenças criam ainda mais obstáculos, quem perde é a competitividade de nossa astronomia que, sem acesso à esses novos olhos, sofrerá de miopia crescente.

domingo, 3 de novembro de 2013

A elusiva matéria escura

No início da década de 1930, o astrônomo Fritz Zwicky, educado na Suíça e radicado nos EUA, observou o movimento das galáxias no aglomerado de Coma, situado a 321 milhões de anos-luz daqui. Um aglomerado é uma coleção de muitas galáxias, mantidas num volume relativamente pequeno devido à força da gravidade. O de Coma tem mais de 1000 galáxias identificadas.

Para sua surpresa, Zwicky descobriu que as galáxias moviam-se com velocidades bem superiores ao esperado. O "esperado" seria que os movimentos fossem devidos à massa das outras galáxias no aglomerado, ou seja, à massa visível, que produz luz. Usando sua tremenda intuição, Zwicky propôs que havia muito mais massa no aglomerado do que a visível por telescópios, chamando essa massa invisível de "dunkle materie", matéria escura.
Desde então, astrônomos e físicos vêm tentando descobrir que matéria é essa.
Nas três últimas décadas, ficou claro que não só aglomerados de galáxias mas cada uma delas também têm, na sua maioria, um véu de matéria escura. Isto é confirmado de dois modos: como galáxias giram, astrônomos medem as velocidades de rotação de estrelas do centro até a extremidade da galáxia.

Se apenas matéria visível fosse responsável pela gravidade da galáxia, a lei de Newton prevê que a velocidade das estrelas diminui em direção à extremidade da galáxia. Não é o que é observado: vê-se que as velocidades permanecem constantes, como se mais massa envolve-se a galáxia como um casulo.

Outro modo de detecção da matéria escura usa um efeito da teoria da relatividade geral de Einstein, que diz que a presença de massa deforma a geometria do espaço. Nesse caso, tal como a luz que passa por uma lente tem sua trajetória modificada, a luz de uma fonte distante que passa perto duma galáxia também é desviada pela curvatura do espaço. Esse efeito, conhecido como "lente gravitacional", foi previsto por Einstein e observado de forma espetacular.

Juntando essas observações com medidas da expansão do universo, astrônomos e físicos chegaram a um resultado surpreendente: cerca de 25% da matéria no universo é constituída de matéria escura. O estranho disso tudo fica claro quando juntamos essas observações cosmológicas com a física das partículas elementares, que estuda as propriedades dos menores blocos de matéria, como elétrons e quarks: a matéria escura deve ser feita de partículas que não têm nada a ver com as que nós conhecemos. Ou seja, é um tipo novo de matéria, de composição inteiramente desconhecida.

Como viajamos pelo espaço repleto de matéria escura, volta e meia uma das partículas choca-se com a Terra (e com você). Nas últimas duas décadas, vários detectores foram construídos para catar uma dessas partículas de matéria escura.

Na semana passada, o mais sensível até aqui, o experimento LUX (do inglês Large Underground Xenon dark matter experiment - Grande experimento subterrâneo de detecção de matéria escura usando xenônio) publicou os resultados dos primeiros três meses de funcionamento: nada foi achado, o mesmo com todos os outros experimentos que buscam por matéria escura.

Mesmo que a caçada continue, é inevitável questionar se não estamos seguindo a pista errada; talvez a explicação seja outra? Modificações da gravidade foram propostas mas sem grande motivação. Por ora, o universo continua envolto em mistério.

domingo, 27 de outubro de 2013

Toda criança nasce cientista

Nesta semana estive em Brasília, participando da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia. O tema deste ano, muito propiciamente, é "Ciência, Saúde e Esportes". Aproveitando que o Brasil será palco dos maiores eventos desportivos do planeta, nada melhor que mostrar as alianças e a interdependência entre os esportes, a saúde e a ciência.

O centro das atividades é no Pavilhão Central no Parque da Cidade, onde foram montadas várias exibições, algumas bem avançadas, usando tecnologia virtual para integrar o visitante em algum jogo, por exemplo, futebol e vôlei.
Mas o que me empolgou logo na chegada foi ter visto centenas, talvez milhares de crianças, trazidas por escolas. Me disseram que eram mais de 10 mil por dia e que atividades ligadas ao evento estão ocorrendo em 800 municípios do país.

As crianças menores, do jardim de infância, iam circulando pelo espaço das exposições, de mãos dadas e olhos arregalados, olhando para tudo, tentando tocar tudo. Algumas jamais esquecerão a visita a um mundo tão diferente da realidade em que vivem, onde a ciência é simplesmente desconhecida.

Fiquei feliz e triste ao mesmo tempo; feliz de ver que quando o governo monta algo de porte para trazer ciência ao público, o público vem. Triste por entender que esse tipo de evento é raro, e que a maioria das crianças nunca terá oportunidade de visitá-los.

O grande físico Isidor Rabi, vencedor do prêmio Nobel, costumava dizer que os cientistas são os "Peter Pans" da sociedade, aqueles que não querem crescer, que passam a vida perguntando "por quê". Vendo as crianças na exposição, olhando para tudo, tocando tudo, participando das atividades com entusiasmo, fica claro que Rabi tinha razão.

Qualquer pai e mãe sabem bem que criança é explorador nato; botando o dedo aqui e ali, comendo terra, pegando formiga, trepando em árvore, subindo e descendo a mesma escada dez vezes até desenvolver uma melhor percepção da gravidade e melhorar sua habilidade motora. Para uma criança, a vida é um grande experimento, uma grande aventura de descoberta.

Até entrarem na escola ou serem "pegas" pelos pais.

"Não faz isso! Solta! Olha o degrau! Cuidando com a tomada! Você vai cair daí." Como pai de cinco, sei que sem o nosso cuidado as crianças correm mesmo risco de se machucar. Mas cuidar não é o mesmo que reprimir o espírito único que têm de experimentar o mundo para poder entendê-lo. O mesmo acontece nas escolas, que acabam sendo fábricas de conformismo onde todos devem fazer a mesma coisa, onde a criança mais curiosa é reprimida e, salvo casos raros, calada.

Temos muito a aprender com as crianças. E, se queremos de fato transformar o Brasil numa potência inovadora, onde tecnologia e patentes não são compradas do exterior mas criadas aqui, temos que dar asas a esse espírito criativo das crianças, que são grandes inventores e sonhadores.

Isso não deve apenas ocorrer nas escolas; a educação começa em casa, com os pais se engajando no processo criativo das crianças. E o melhor de tudo é que ao ensinarmos também aprendemos. E colorimos a vida de novidade e aventura, ficando um pouco mais "Peter Pans".

domingo, 20 de outubro de 2013

Gravidade, o filme

 Nesta semana assisti ao filme "Gravidade", com George Clooney e Sandra Bullock como astronautas em uma missão na órbita da Terra. A direção, magistral diga-se de passagem, é do mexicano Alfonso Cuarón, que dirigiu filmes de "Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban" a "E Sua Mãe Também".

 Dos muitos ângulos em que o filme pode ser analisado, o que escolho hoje é o da sobrevivência da vida no Universo. Fala-se muito, especialmente alguns cientistas, que o Universo é propício à vida, que talvez até o sentido de sua existência é nos ter criado. Claro, este tipo de raciocínio é cripto-religioso, no sentido que dá ao Universo a intenção de criar algo, no caso, a gente.

 Este tipo de posição é extremamente problemático. Como determinar tal coisa, ou seja, como provar que o Universo tem como propósito criar a vida? Me parece impossível. Fora isso, como vemos no filme, saindo da atmosfera a situação fica muito difícil; a sobrevivência no espaço é impossível, conforme afirma o texto de abertura.

 Se a Terra fosse uma maçã, a atmosfera teria a espessura de sua casca, menor ainda. Esta fina camada, com menos de 50 quilômetros de espessura, é que garante nossa sobrevivência aqui. Se o filme tem uma mensagem direta e clara, é que o Universo é extremamente hostil à vida.
Sem estragar para quem ainda não viu, sobreviver no espaço pode parecer fácil quando tudo dá certo e os sistemas de transporte e de pressurização e oxigenação funcionam. Mas quando algo dá errado, a experiência, que é de profunda beleza e plena de significado espiritual, rapidamente torna-se num pesadelo aterrorizante.

 O espaço não é nosso amigo. Se conseguimos sobreviver fora da Terra é graças à nossa inventividade e determinação.
O filme mostra isso de forma clara, respeitando exemplarmente as leis da física. (Aliás, a lei da conservação do momento linear tem um papel essencial no enredo.) Mostra, também, a enormidade do espaço, o terror de nos perdermos em seus confins, caso nossos "cordões umbilicais" sejam cortados.
Existe uma ligação óbvia entre nós e a Terra, que é uma afirmação da nossa dependência do nosso planeta-casa. Fica claro que, para sobreviver, precisamos da Terra; mas que a Terra está muito bem sem a gente. É bom lembrar disso, que estamos aqui há pouco mais de 200 mil anos, enquanto que a Terra já existe há 4,6 bilhões de anos e a vida aqui há uns 3,5 bilhões, pelo menos.
Apesar da ansiedade da narrativa, vejo "Gravidade" como uma celebração da vida, da sua fragilidade, da importância de termos todo o cuidado para não destruí-la. É característica essencial da nossa espécie o desejo de explorar, de ir além do conhecido. O espaço e as profundezas dos oceanos e da Terra são nossas fronteiras atuais.
No filme, a missão dos astronautas era consertar o telescópio espacial Hubble, para ampliar sua visão. Esta é uma metáfora perfeita da condição humana, pois sempre queremos ver além daquilo que enxergamos, sempre queremos estender nossa visão da realidade.

Pôr um telescópio no espaço e ir até ele para consertá-lo --o que foi feito de verdade, sem que a missão tenha falhado-- é algo que devemos comemorar como um dos grandes feitos da nossa história coletiva. Apesar da nossa fragilidade como espécie, nossa fragilidade nos permite estender nossa presença e nossa visão aos confins do cosmo.

domingo, 13 de outubro de 2013

Cinco bilhões de anos de solidão

Cinco bilhões de anos de solidão. Esse é o nome do novo livro do jornalista Lee Billings, lançado na semana passada nos EUA. O título, obviamente, faz menção ao romance de Gabriel García Márquez, com os cem anos mudados para 5 bilhões.
Os 5 bilhões aqui retratam, em números arredondados, a idade da Terra e do Sistema Solar. O número mais preciso é 4,5 bilhões de anos, mas ficaria meio estranho no título de um livro.
A afirmação de que são 5 bilhões de anos de solidão vem do fato de que não temos indicação de que haja outras formas de vida no Cosmo, especialmente inteligentes. Billings traça a história da busca pela vida extraterrestre, incluindo entrevistas com alguns de seus protagonistas.
Quando falamos de vida extraterrestre, temos de ter cuidado para diferenciar entre vida simples e vida complexa. Por vida simples, entende-se seres unicelulares, como bactérias. A vida surgiu há cerca de 3,5 bilhões de anos, 1 bilhão de anos após a formação do nosso planeta.
Por que a demora? Durante seus primeiros 600 milhões de anos, a Terra foi bombardeada por asteroides e cometas, que tornavam sua superfície um inferno. Só em torno de 3,9 bilhões de anos atrás é que a coisa se acalmou e os oceanos fincaram pé. Se a primeira vida de que temos informação surgiu cerca de 3,5 bilhões de anos atrás, foram apenas 400 milhões de anos entre a calmaria dos bombardeios celestes e a vida. Não é muito tempo quando se pensa em bilhões de anos.
A vida na Terra foi dominada por bactérias por quase 3 bilhões de anos. Houve uma sofisticação em que células simples (procariotas) tornaram-se mais complexas (eucariotas, com o material genético protegido num núcleo), mas ficou por aí. A transição da vida unicelular para a multicelular deu-se em torno de 600 milhões de anos atrás e, na explosão do Cambriano (540 milhões de anos atrás), tomou força.
Se as leis da física e da química são as mesmas no Cosmo, e se só na nossa galáxia há cerca de 200 bilhões de estrelas e mais de 1 trilhão de planetas e luas, é natural especularmos que há a probabilidade de existirem outras terras --planetas com água, carbono e oxigênio, onde a vida também é sofisticada.
Mas esse raciocínio é simplista, como explico no livro "Criação Imperfeita". A história da vida em um planeta reflete sua história.
A trajetória da vida na Terra é única e depende de vários fatores geofísicos: a existência de uma Lua grande, que estabiliza a inclinação do eixo de rotação do planeta; de um campo
magnético forte o suficiente para refletir radiação cósmica nociva a seres vivos; de placas tectônicas que, ao moverem-se, regulam o gás carbônico na atmosfera, que por sua vez é densa e rica em oxigênio. A lista é longa. Seres complexos precisam de planetas estáveis, com muita energia disponível. Não basta o planeta ter água líquida e carbono para que tenha vida.
Quando vemos as várias barreiras que a vida simples transpôs para tornar-se inteligente, entendemos o título do livro de Billings. Mesmo se outros seres inteligente existirem na galáxia, estariam tão longe que, para todos os efeitos, estamos sós.

domingo, 6 de outubro de 2013

Por que ser cientista?

Essa é uma pergunta que escuto frequentemente, quando converso com jovens ainda indecisos com relação a qual carreira seguir. Na verdade, o que vejo, e tenho certeza que meus colegas confirmam isso, é que a maioria absoluta dos jovens não tem a menor ideia do que significa ser um cientista ou como se constitui a carreira. Imagino que nem 5% da população brasileira possa mencionar o nome de três (ou um?) cientista brasileiro da atualidade. A questão não é essa constatação, que é óbvia, mas o que podemos fazer para mudar isso.
O primeiro obstáculo é o da invisibilidade. Se ninguém conhece um cientista, fora o que se vê na TV ou no cinema, fica difícil contemplar a possibilidade de uma carreira em ciências. Contraste isso com médicos, dentistas, professores, policiais, profissões que fazem parte da vida dos jovens. Quando um jovem imagina um cientista, provavelmente pensa no programa de TV "The Big Bang Theory", ou em uma foto do Einstein de língua de fora.
A solução é maior visibilidade: é ter cientistas visitando escolas públicas e particulares, incluindo estudantes de pós-graduação que, na maioria absoluta, têm uma bolsa de estudos do governo. Proponho que, como parte da bolsa, estudantes de mestrado e doutorado devam fazer uma visita ao ano (ou mais se desejarem) a uma escola local para conversar com as crianças sobre o seu trabalho de pesquisa e planos para suas carreiras. Sugiro que seus orientadores façam o mesmo.
Sim, eu faço isso com muita frequência, tanto no Brasil quanto nos EUA. Pelo menos uma visita ou palestra (às vezes via Skype) por mês. Não tira pedaço e é extremamente útil e gratificante.
O segundo obstáculo é o estigma de nerd. Cientista é o cara bobão, o que não tem nenhum amigo e por isso vira CDF. Grande bobagem. Tem cientista de todo jeito, e alguns são nerds, como são alguns médicos, dentistas e policiais, e outros são "supercool", com suas motocicletas, pranchas de surfe e sintetizadores. Tem nerd que é "cool". Tem cientista ateu e religioso, flamenguista e corintiano, conservador e comunista. A comunidade é tão variada quanto em qualquer outra profissão.
O terceiro obstáculo é o da motivação. Por que fazer ciência? Esse é o mais importante deles, e o que requer mais cuidado. A primeira razão para se fazer ciência é ter uma paixão declarada pela natureza, um desejo insaciável de desbravar os mistérios do mundo natural. Essa visão, sem dúvida romântica, é essencial para muita gente: fazemos ciência porque nenhuma outra profissão nos permite dedicar a vida a entender como funciona o mundo e como nós humanos nos encaixamos no grande esquema cósmico. Mesmo que o que cada um pode contribuir seja, na maioria dos casos, pouco, é o fazer parte desse processo de busca que nos leva em frente.
Existe também o lado útil da ciência, ligado diretamente a aplicações tecnológicas, em que novos materiais e novas tecnologias são postos a serviço da criação de produtos e da melhoria da qualidade de vida das pessoas. Mas dado que a preparação para a carreira é longa --depois da graduação ainda tem a pós com bolsas bem baixas-- sem a paixão fica difícil ver a utilidade da ciência como a única motivação. No meu caso, digo que faço ciência porque não me consigo imaginar fazendo outra coisa que me faça tão feliz. Mesmo com todas as barreiras da profissão, considero um privilégio poder pensar sobre o mundo. E poder dividir com os outros o que vou aprendendo no caminho.

domingo, 29 de setembro de 2013

A ciência, o bem e o mal

Em 1818, com apenas 21 anos, Mary Shelley publicou o grande clássico da literatura gótica, "Frankenstein ou o Prometeu Moderno". O romance conta a história de um doutor genial e enlouquecido, que queria usar a ciência de ponta de sua época, a relação entre a eletricidade e a atividade muscular, para trazer mortos de volta à vida.
Duas décadas antes, Luigi Galvani havia demonstrado que a eletricidade produzia movimentos em músculos mortos, no caso em pernas de rãs. Se vida é movimento, e se eletricidade pode causá-lo, por que não juntar os dois e tentar a ressuscitação por meio da ciência e não da religião, transformando a implausibilidade do sobrenatural em um mero fato científico?
Todos sabem como termina a história, tragicamente. A "criatura" exige uma companheira de seu criador, espelhando Adão pedindo uma companheira a Deus. Horrorizado com sua própria criação, Victor Frankenstein recusou. Não queria iniciar uma raça de monstros, mais poderosos do que os humanos, que pudesse nos extinguir.
O romance examina a questão dos limites éticos da ciência: será que cientistas podem ter liberdade total em suas atividades? Ou será que existem certos temas que são tabu, que devem ser bloqueados, limitando as pesquisas dos cientistas? Em caso afirmativo, que limites são esses? Quem os determina?
Essas são questões centrais da relação entre a ética e a ciência. Existem inúmeras complicações: como definir quais assuntos não devem ser alvo de pesquisa? Dou um exemplo: será que devemos tratar a velhice como doença? Se sim, e se conseguíssemos uma "cura" ou, ao menos, um prolongamento substancial da longevidade, quem teria direito a tal? Se a "cura" fosse cara, apenas uma pequena fração da sociedade teria acesso a ela. Nesse caso, criaríamos uma divisão artificial, na qual os que pudessem viveriam mais. E como lidar com a perda? Se uns vivem mais que outros, os que vivem mais veriam seus amigos e familiares perecerem. Será que isso é uma melhoria na qualidade de vida? Talvez, mas só se fosse igualmente distribuída pela população, e não apenas a parte dela.
Outro exemplo é a clonagem humana. Qual o propósito de tal feito? Se um casal não pode ter filhos, existem outros métodos bem mais razoáveis. Por outro lado, a clonagem pode estar relacionada com a questão da longevidade e, em princípio ao menos, até da imortalidade. Imagine que nosso corpo e nossa memória possam ser reproduzidos indefinidamente; com isso, poderíamos viver por um tempo indefinido. No momento, não sabemos se isso é possível, pois não temos ideia de como armazenar memórias e passá-las adiante. Mas a ciência cria caminhos inesperados, e dizer "nunca" é arriscado.
Toquei apenas em dois exemplos, mas o ponto é óbvio: existem áreas de atuação científica que estão diretamente relacionadas com escolhas éticas. O impulso inicial da maioria das pessoas é apoiar algum tipo de censura ou restrição, achando que esse tipo de ciência é feito a caixa de Pandora.
Mas essa atitude é ingênua. Não é a ciência que cria o bem ou o mal. A ciência cria conhecimento. Quem cria o bem ou o mal somos nós, a partir das escolhas que fazemos.

domingo, 22 de setembro de 2013

Mensagem cósmica

Neste mês, pela primeira vez na história, uma sonda construída por seres humanos deixou os confins do Sistema Solar e penetrou o espaço interestelar. A sonda, Voyager 1, foi lançada pela NASA 36 anos atrás, em setembro de 1977, durante o governo de Jimmy Carter, quando pessoas ainda usavam calça boca-de-sino. A era das viagens interestelares, coisa que até aqui era mais ficção do que realidade, começou.
O Sol, como toda estrela, emite quantidades enormes de partículas eletricamente carregadas (principalmente prótons e elétrons, constituintes do "vento solar") que ficam confinadas numa bolha chamada de heliosfera. O limite desta bolha, a heliopausa, marca a região onde a influência do Sol no meio interestelar passa a ser desprezível. A transição entre o Sistema Solar e o espaço interestelar se deu quando a sonda Voyager I atravessou a heliopausa, localizada cerca de 100 vezes a distância entre a Terra e o Sol. Mesmo a luz demora em torno de 14 horas para chegar de lá até aqui.
O feito serve de metáfora tanto para a missão da ciência quanto para o espírito humano. Ciência, enquanto criação nossa, representa um esforço marcadamente humano de superar fronteiras, no caso, as fronteiras do conhecimento. A cada descoberta, aprendemos mais sobre o mundo e sobre nosso lugar nele. Existe um lado heroico nessa empreitada, que tem valor tanto na prática --à medida que as descobertas científicas são usadas pela sociedade de diversas formas--, quanto numa dimensão mais mitológica, onde buscamos, juntos como espécie, responder às questões tão antigas quanto nossa existência neste planeta. Superar fronteiras, portanto, significa aprender mais sobre quem somos, como espécie e como indivíduos.
Como disse o poeta americano T. S. Eliot, "apenas aqueles que se arriscam a ir mais longe sabem quão longe podem ir".
Este é o espírito da ciência e, a meu ver ao menos, deveria ser também a mola propulsora de cada um de nós em nossas vidas. Existe aqui uma visão anticonformista, de lutar contra a mesmice que marca nosso dia a dia. Na pesquisa científica, o novo é imperativo: temos de inventar um pouco mais do mundo todos os dias, por assim dizer, dado que não sabemos o que existe além do que sabemos.
Claro, cientistas não têm a liberdade do poeta ou do pintor, visto que o mundo que "inventam" é uma descrição do mundo que existe, ao menos do modo como o percebemos através de nossas observações. Afinal, nosso objetivo é entender a natureza: a última palavra é sempre dela, mesmo que sejamos forçados --e com frequência-- a descartar ideias que têm grande apelo e beleza.
São nessas outras estrelas, ou melhor, nos planetas à sua volta, que podem existir outros seres vivos, talvez mesmo outros seres pensantes. A sonda Voyager 1 leva consigo uma placa revestida em ouro, repleta de sons e informações sobre a Terra, sua posição, os seres que nela vivem, nossas obras culturais, línguas etc. O projeto foi obra de Carl Sagan, que queria usar esta oportunidade para, quem sabe, anunciar aos nossos vizinhos que não estão sozinhos no espaço.
Apesar da sonda ter pouquíssima chance de ser encontrada por outra civilização (são mais de 50 mil anos até a estrela mais próxima), o gesto é essencialmente simbólico: reflete nossa esperança de que não estamos sozinhos no Cosmo, de que outros seres pensantes existem, de preferência amantes da vida e da criatividade.

domingo, 15 de setembro de 2013

Mais dez importantes questões da ciência

Na coluna da semana passada, escrevi sobre o livro "Big Questions in Science", que acaba de ser publicado na Inglaterra listando 20 desafios importantes da ciência moderna, ao menos segundo os autores, Hayley Birch, Mun Keat Looi e Colin Stuart.
Hoje, completo com mais dez questões.
1. Qual o mistério dos números primos? Números primos são aqueles divisíveis só por si mesmos ou por um, como 2,3,5,7,11,13,17... O comércio via internet, com a necessidade de assegurar números de contas e cartões de crédito, usa-os rotineiramente. Há séculos, matemáticos estudam suas propriedades.
Mesmo que Euclides tenha demonstrado em torno de 300 a.C. que existem infinitos números primos, existem muitas questões em aberto. Por exemplo, a hipótese de Riemann, matemático alemão do século 19, que mostrou que o número de primos até um certo valor (até 100, por exemplo) está relacionado com as propriedades da "função zeta de Riemann". Se a hipótese for resolvida, a segurança da internet pode ser comprometida.
2. Como vencer as bactérias? O abuso de antibióticos está deixando as bactérias cada vez mais resistentes. Essa guerra pode ser ganha? O sequenciamento genético nos dá uma vantagem, permitindo isolar novos antibióticos. Mas novas mutações são inevitáveis.
3. Existe um limite na velocidade dos computadores? Um iPhone tem maior poder computacional do que o aparelho que levou os astronautas à Lua em 1969. Isso não pode continuar indefinidamente. Materiais como o grafeno e o computador quântico podem ser o futuro.
4. Será que curaremos o câncer? "Câncer" são centenas de doenças diferentes. Não há uma cura, mas muitas. A genética nos dá uma nova visão da doença. A batalha é longa e, quanto mais vivermos, maior será a probabilidade de que algo dê errado. No meio tempo, 50% dos cânceres são evitados com medidas como não fumar e evitar muito sol.
5. Qual o futuro dos robôs? Robôs fazem já tarefas domésticas e industriais. A questão é se teremos robôs capazes de pensar. Antes, devemos entender melhor a inteligência.
6. O que existe no fundo dos oceanos? Conhecemos só 10% de suas profundezas. Exploradores chegaram a 11 km, onde a escuridão é total e a água gélida não tem oxigênio. Mas foi só o começo de uma nova etapa da exploração da Terra.
7. O que há dentro do buraco negro? Buracos negros são a fase final de estrelas mais pesadas que o Sol, regiões onde a força da gravidade é gigantesca. Pouco sabemos do que ocorre em seu interior, pois precisamos de uma teoria combinando a gravidade e a física quântica.
8. Podemos viver para sempre? Avanços na medicina e na genética prometem revolucionar nossa relação com a morte. Porém, criam também questões morais e filosóficas bem complexas.
9. Como resolver o problema da superpopulação? A população mundial chegará a 9 bilhões em 2050. Como alimentar todo mundo? Comida feita em laboratório? Alimentos geneticamente modificados? Nosso futuro depende de nossas escolhas.
10. É possível viajar no tempo? Não conhecemos a natureza do tempo, mas as leis da física proíbem idas ao passado. Ao futuro, porém, é possível, se viajarmos próximos da velocidade da luz.

domingo, 8 de setembro de 2013

As 20 (ou 10) mais importantes questões da ciência

Um livro acaba de ser publicado na Inglaterra listando os 20 desafios mais importantes da ciência moderna, ao menos segundo os autores, Mun Keat Looi, Hayley Birch e Colin Stuart ("Big Questions in Science"). Apesar de toda lista desta natureza ter uma dose de arbitrariedade, eis as primeiras 10 delas, com comentário.
1. Do que é feito o Universo? Conhecemos apenas 5% da composição cósmica. Os átomos dos quais somos feitos são a minoria absoluta --95% consiste de "matéria escura" e "energia escura", cuja composição continua um mistério.
2. Como surgiu a vida? A vida surgiu na Terra em torno de 3,5 bilhões de anos atrás. Como que átomos, combinados em moléculas, atingiram um nível de complexidade em que essas moléculas formaram o primeiro sistema "vivo"?
3. Estamos sós no Universo? Hoje, sabemos que a maioria das estrelas têm planetas girando à sua volta. Será que a vida está presente em algum deles? Em muitos? E essa vida, seria inteligente ou simples? Se existe vida inteligente na nossa galáxia, por que ainda não temos confirmação definitiva?
4. O que nos torna humanos? Temos três vezes mais neurônios do que um gorila, mas nossos DNAs são quase iguais. Por outro lado, muitos animais têm linguagem rudimentar, usam ferramentas, reconhecem-se no espelho; seria nossa cultura, nosso polegar, a descoberta do fogo, o que nos tornou humanos?
5. O que é o consciente? Como que o cérebro gera a mente, nossa capacidade de termos autoconsciência, de podermos escrever poesias e sinfonias? E por que o consciente existe, qual a sua função evolutiva?
6. Por que sonhamos? Passamos um terço de nossas vidas dormindo e ainda não entendemos por que sonhamos. Terão alguma função essencial ou são apenas imagens aleatórias de um cérebro em repouso parcial?
7. Por que a matéria existe? De acordo com as leis da física, a matéria não deveria existir sozinha; cada elétron, cada próton, deveria ter seu companheiro de antimatéria, como gêmeos. O problema é que matéria e antimatéria, quando se encontram, desintegram-se em radiação. Se ambos existissem em pé de igualdade, não estaríamos aqui. Ninguém sabe a razão para essa assimetria da natureza.
8. Existem outros universos? Ou o nosso é único? Se existirem outros universos, poderiam ter propriedades diferentes do nosso. Como podemos saber se existem?
9. Onde poremos todo o carbono? Com a industrialização, a quantidade de carbono na atmosfera vem aumentando, causando o efeito estufa. O que faremos para reverter ou desacelerar esse processo?
10. Como conseguir mais energia do Sol? A energia solar, em tese, é a melhor das fontes. Como otimizar sua extração para resolver a questão da energia? Será que a fusão nuclear controlada vai se concretizar?
Devido ao espaço, terei que parar por aqui. Felizmente, leitores da coluna sem dúvida reconheceram todas essas questões como parte de nossos temas usuais. E assim seguiremos!

domingo, 1 de setembro de 2013

Sol novo, Sol velho

Você gostaria de se ver mais velho? Se houvesse um espelho mágico capaz de mostrar sua imagem em uma, duas ou mais décadas, você olharia?
Imagino que a opinião seria dividida, uns tantos sim, outros tantos não. Afinal, ver o futuro teria repercussão sobre como viveríamos no presente, o que criaria uma série de paradoxos estranhos.
Se no futuro eu me visse gordo e resolvesse fazer uma dieta, emagreceria? Se emagrecesse, não estaria mudando o futuro? E será que isso é possível? Afinal, o espelho me mostrou gordo... Ou, quem sabe, o futuro não seja um apenas, mas feito de múltiplas opções, como no conto de Jorge Luis Borges "O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam".
Deixando essas preocupações um tanto humanas de lado (voltaremos a elas em outro dia), o fato é que em astronomia, ao menos, ver o futuro e o passado é extremamente útil.
Tanto assim que um time internacional de astrônomos, liderados pelo brasileiro Jorge Meléndez, da USP, vem buscando estrelas semelhantes ao Sol, mais velhas e mais novas, para que possamos aprender sobre a evolução da nossa estrela-mãe. Para tal, o grupo usa o gigantesco telescópio em Paranal no Chile conhecido como VLT (do inglês Very Large Telescope, "Telescópio Muito Grande"), do ESO (Observatório Europeu do Hemisfério Sul), um consórcio de 15 países com vários instrumentos de grande alcance e precisão. O Brasil deve ratificar sua presença como membro oficial do ESO ainda este ano.
Em artigo de abril publicado no prestigioso "Astrophysical Journal Letters", com TalaWanda Monroe, também da USP, como primeira autora, o grupo revela dados de duas estrelas "gêmeas" do Sol, uma bem mais nova, a 18 Scorpii, e outra bem mais velha, a HIP 102152. Ou seja, um olho no nosso passado e outro no nosso futuro ou, ao menos, no futuro do Sol.
HIP 102152, com 8,2 bilhões de anos, é bem mais velha do que o Sol, que tem 4,6 bilhões de anos. A questão de maior importância para o público é se o Sol é uma estrela típica ou atípica. É bom sabermos, pois nossa sobrevivência na Terra depende do Sol e da sua estabilidade.
Caso seja uma estrela normal, dentro de sua classificação (estrelas aparecem em classes diferentes, dependendo da sua massa, temperatura etc.), o Sol continuará a gerar luz por muitos bilhões de anos, em torno do dobro da sua idade. Caso não seja normal, as coisas podem complicar. E, se complicarem, a vida na Terra poderá estar em apuros mais cedo do que gostaríamos.
Estudando 21 elementos químicos presentes nas três estrelas, o grupo mostrou que o Sol é uma estrela normal. Em particular, que o elemento lítio, que é bem mais raro no Sol do que em estrelas gêmeas mais novas, é destruído com o envelhecer da estrela: HIP 102152 tem aproximadamente a metade do lítio que temos aqui.
O grupo mostrou também que a HIP 102152 não tem planetas gigantes como o nosso Júpiter ou Saturno na região mais próxima dela, onde podem existir planetas rochosos como a Terra. Ou seja, da imagem do Sol idoso, aprendemos que o nosso Sol não foge à regra; o que possibilita que outros como ele tenham planetas como a Terra que, quem sabe, abriguem também formas de vida.

domingo, 25 de agosto de 2013

O poder criativo da imperfeição

Na semana passada, escrevi sobre como nossas teorias científicas sobre o mundo são aproximações de uma realidade que podemos compreender apenas em parte. Nossos instrumentos de pesquisa, que tanto ampliam nossa visão de mundo, têm necessariamente limites de precisão. Não há dúvida de que Galileu, com seu telescópio, viu mais longe do que todos antes dele.
Também não há dúvida de que hoje vemos muito mais longe do que Galileu poderia ter sonhado em 1610. E certamente, em cem anos nossa visão cósmica terá sido ampliada de forma imprevisível.
No avanço do conhecimento científico, vemos um conceito que tem um papel essencial: simetria. Já desde os tempos de Platão, a noção de que existe uma linguagem secreta da Natureza, uma matemática por trás da ordem que observamos, teve um papel fundamental.
Platão --e, com ele, muitos matemáticos até hoje-- acreditava que os conceitos matemáticos existiam em uma espécie de dimensão paralela, acessível apenas através da razão. Nesse caso, os teoremas da matemática (como o famoso teorema de Pitágoras) existem como verdades absolutas, que a mente humana, ao menos as mais aptas, pode ocasionalmente descobrir. Para os Platônicos, a matemática é uma descoberta e não uma invenção humana.
O matemático Gregory Chaitin, que defende esta posição, sem muita paixão, também a acusa de ser uma espécie de religião, um resquício de uma teologia Tomista onde a fé é buscada no estudo da "mente de Deus".
Hoje, a busca por uma teoria final da Natureza, ao menos no que diz respeito às forças que agem nas partículas fundamentais da matéria, é a encarnação moderna do sonho platônico de um código secreto da Natureza. As teorias de unificação, como são chamadas (veja a coluna da semana passada), visam justamente isso, formular todas as forças como manifestações de uma única, com sua simetria abrangendo todas as outras.
Culturalmente, é difícil não traçar uma linha entre as fés monoteístas e a busca por uma unidade da Natureza nas ciências. Este sonho, porém, é impossível de ser realizado.
Primeiro, porque nossas teorias são sempre temporárias, passíveis de ajustes e revisões futuras. Não existe uma teoria que podemos dizer final, pois nossas explicações mudam de acordo com o conhecimento acumulado que temos das coisas.
Um século atrás, um elétron era algo muito diferente do que é hoje. Em cem anos, será algo muito diferente outra vez. Não podemos saber se as forças que conhecemos hoje são as únicas que existem.
Segundo, por que nossas teorias e as simetrias que detectamos nos padrões regulares da Natureza são em geral aproximações. Não existe uma perfeição no mundo, apenas em nossas mentes. De fato, quando analisamos com calma as "unificações" da física vemos que são aproximações que funcionam apenas dentro de certas condições.
O que encontramos são assimetrias, imperfeições que surgem desde as descrições das propriedades da matéria até às das moléculas que determinam a vida, as proteínas e os ácidos nucleicos (RNA e DNA). Por trás da riqueza que vemos nas formas materiais, encontramos a força criativa das imperfeições.

domingo, 18 de agosto de 2013

Bóson de Higgs e simetrias

Passados três anos da publicação do meu livro "Criação Imperfeita", achei oportuno revisitar, hoje e esporadicamente, alguns de seus temas tendo em vista novas descobertas da física e da astronomia.
Para os leitores que não conhecem a obra, nela essencialmente proponho uma nova estética da natureza, baseada na imperfeição e nas assimetrias. Essa noção vai contra a ideia dominante das ciências naturais, onde a simetria tem uma papel fundamental.
Claro, isso sempre continuará a ser o caso, mas o que muda é a interpretação dessas simetrias, que deixam de ser fundamentais e passam a ser ferramentas que usamos na descrição do mundo.
Tomemos então nossas teorias que descrevem as partículas de matéria. Elas também são aproximações, descrições matemáticas dos dados que coletamos no laboratório. Nessas teorias, vemos que existem certos padrões de ordem, regularidades nas propriedades das partículas de matéria.
Em geral, essas regularidades são descritas por simetrias. Conhecemos quatro forças que chamamos de "fundamentais". Esse adjetivo, a meu ver, é equivocado, pois não sabemos se existem outras forças na natureza. As quatro que conhecemos são as que podemos medir com nossos instrumentos. Possivelmente, não são as únicas. De qualquer forma, cada força tem uma ou mais simetrias associadas a ela.
Das quatro forças, duas são familiares, a gravidade e o eletromagnetismo. As outras duas agem dentro do núcleo atômico, as forças nucleares forte e fraca.
Em julho de 2012, cientistas do laboratório europeu Cern anunciaram a descoberta de uma nova partícula, o famoso bóson de Higgs. Sua importância é imensa. Ela é a partícula que dá massa a todas as outras, com exceção do fóton, a partícula de luz, que não tem massa. A partícula Higgs havia sido prevista nos anos 60, caso as forças fraca e eletromagnética pudessem ser descritas conjuntamente. O fato de a partícula Higgs ter sido descoberta confirma essa unificação de forma espetacular. Porém, precisamos ter cuidado com a interpretação dessa unificação. O que ela quer dizer?
Na prática, significa que as duas forças comportam-se de forma semelhante acima de certas energias. Podemos investigar o comportamento da matéria a energias diferentes. Você pode fazer isso atirando uma laranja contra a parede com velocidades diferentes. Quanto maior a velocidade, maior a energia do impacto e mais você "descobre" sobre a composição da fruta.
Quando cientistas investigam como as forças fraca e eletromagnética comportam-se a energias muito altas, veem uma semelhança. Na descrição da teoria, as duas forças aparecem juntas. Mas não como uma única força. A simetria que foi descoberta é uma aproximação. (Físicos expressam isso dizendo que "a teoria tem duas constantes de acoplamento", ou seja, as duas forças não perdem a sua individualidade.)
Toda simetria na natureza é uma aproximação. A "unificação" das forças fraca e eletromagnética não reúne as duas forças em uma única simetria. Mesmo que seja triunfo da inventividade humana --tanto a teoria quanto a sua verificação experimental--, ela não é uma unificação real.

domingo, 11 de agosto de 2013

A ideia que redefiniu o mundo

O mês passado marcou o centenário da publicação do modelo do átomo pelo físico dinamarquês Niels Bohr, com seus famosos saltos quânticos. Desde então, e de forma inesperada, a física quântica tomou conta do mundo, dominando as transformações tecnológicas que definem grande parte da história do século 20: radioatividade e energia nuclear, bombas atômicas e termonucleares, transistores e semicondutores, lasers, tecnologias digitais, como as usadas em seu celular ou laptop, CDs, DVDs, enfim, os produtos que usamos no nosso dia-a-dia e que são todos derivados das propriedades da matéria ao nível atômico e subatômico.

O interessante é que o modelo atômico de Bohr é meio absurdo, uma colagem de ideias clássicas e quânticas, fruto da intuição genial do único cientista capaz de confrontar Einstein. Bohr imaginou o átomo como um minissistema solar, com o próton no centro e o elétron circulando à sua volta. Seu modelo servia apenas para o átomo mais simples que existe, o de hidrogênio. Nisso, Bohr seguiu o protocolo dos físicos, de sempre buscar um problema mais fácil para começar.

Bohr sabia que o átomo não era um simples sistema solar: planetas giram em torno do Sol por bilhões de anos praticamente sem perder energia; já o elétron cairia rapidamente no próton, ao menos segundo a física clássica, que descrevia como cargas elétricas opostas se atraem.

Bohr teve que inventar para o átomo novas regras que necessariamente iriam contra a física clássica. Corajosamente, apresentou sua ideia sugerindo algo inusitado: o elétron só poderia estar em algumas órbitas, separadas no espaço como os degraus de uma escada. Da mesma forma que você não pode ficar entre dois degraus, o elétron não pode ficar entre duas órbitas. Pode apenas pular de uma para outra, como nós pulamos entre degraus de uma escada. Esses são os famosos saltos quânticos.

E o que determina essas órbitas? Mais uma vez, encontramos a incrível intuição de Bohr: como os elétrons giram em torno do próton em órbitas circulares, eles têm o que chamamos de "momento angular", uma quantia que mede a intensidade de movimentos circulares. (Por exemplo, quando uma patinadora no gelo gira com os braços estendidos e depois encolhe os braços sua velocidade de giro aumenta --essa é uma consequência da conservação de momento angular.)

Bohr sugeriu que o momento angular do elétron devesse ser "quantizado", isto é, só podia ter certos valores discretos, dados pelos números inteiros (n=1, 2, 3...). Se L é o momento angular, a fórmula de Bohr é L = n (h cortado), onde h cortado é a famosa constante de Plank, que o físico alemão havia introduzido em 1900 e que aparece em todos os processos quânticos.

A sacada genial de Bohr foi misturar conceitos da física clássica com a nova física quântica, criando uma teoria híbrida do átomo. Com ela, Bohr resolveu um antigo mistério da física, relacionado com a radiação que um elemento químico emite quando aquecido, que aparece apenas em algumas cores (ou melhor, frequências).

Os pulos dos elétrons entre as órbitas são acompanhados da emissão e absorção de "fótons", as partículas de luz que Einstein havia proposto em 1905. A teoria de Bohr capturou a essência dos átomos, suas órbitas discretas, explicando suas emissões ou espectro quantizado. Uma nova física para um novo século, que continua nos surpreendendo até hoje.

domingo, 4 de agosto de 2013

O difícil problema da consciência

Como um apanhado de 80 a 100 bilhões de neurônios gera a experiência que temos de sermos nós?

Gostaria de retornar a um assunto que deixa muita gente perplexa, inclusive eu: a natureza da consciência e como ela "surge" no nosso cérebro. Se você acha que sabe a resposta, provavelmente não entende a questão. Nenhum cientista ou filósofo sabe como respondê-la.

Existem vários modos de formular a questão, mas eis um: como o cérebro, um apanhado de 80 a 100 bilhões de neurônios, gera a experiência que temos de sermos nós?

O filósofo australiano David Chalmers chama a questão de "o difícil problema da consciência". Faz isso para diferenciá-lo dos demais problemas que poderão ser resolvidos pela pesquisa nas ciências neurocognitivas e neurocomputacionais. Mesmo que isso possa demorar um século, o nível de dificuldade não se compara ao do problema que, alguns especulam, é insolúvel.

Eis alguns dos problemas que Chalmers considera fáceis: a habilidade de discriminar, categorizar e reagir a estímulos externos; a integração de informação sensorial; o controle intencional de comportamento; a diferença entre dormir e estar acordado.

Essas questões são localizadas, passíveis de uma descrição reducionista de como funcionam partes do cérebro, usando a conexão entre neurônios e grupos de neurônios.

Henry Markram, na Suíça, recebeu uma bolsa de 1 bilhão de euros para liderar o Projeto do Cérebro Humano, uma colaboração de centenas de cientistas que visa criar uma simulação do cérebro humano. Para tal, eles precisarão de computadores capazes de bilhões de bilhões de operações por segundo, um fator cerca de 50 vezes maior do que os supercomputadores mais rápidos do mundo são capazes hoje.

Markram e os "computacionalistas" acreditam que, se o nível de informação da simulação for suficientemente detalhado, incluindo desde o trânsito de neurotransmissores entre sinapses até as milhares de conexões interneuronais em partes diferentes do cérebro, a simulação funcionará como um cérebro humano dotado de uma consciência tão complexa quanto a nossa. Markram acredita que o problema "difícil" não existe: tudo pode ser obtido de neurônio a neurônio.

Apesar de concordar com a relevância científica do projeto de Markram, não vejo como uma simulação poderá criar uma entidade com consciência semelhante à humana. Talvez crie algum outro tipo de consciência, mas não a nossa.

Outro filósofo, Thomas Nagel, mostrou que somos incapazes de perceber a experiência consciente de outro cérebro. Como exemplo, usou os morcegos, que constroem sua realidade a partir da ecolocalização.
Usando ideias do linguista Noam Chomsky, que defende a limitação cognitiva de cada cérebro (por exemplo, um rato jamais poderá falar), Nagel mostra que não podemos entender o que é "ser" um morcego.


Essa é outra versão do problema de Chalmers, que o filósofo Colin McGinn chama de "clausura cognitiva". Não existe um modo de capturar a essência do consciente, pois este não se presta a uma análise metódica das propriedades do cérebro: está em toda a parte e em nenhuma parte. Talvez, McGinn especula, uma inteligência mais avançada saiba responder à pergunta. Mas nós, simulações ou não, temos que viver com o mistério.

domingo, 28 de julho de 2013

Alimentos geneticamente modificados: fato e ficção



Raramente, a relação entre a ciência e a população é tão direta quanto no caso de alimentos geneticamente modificados (AGMs). Pois uma coisa é ligar uma TV de plasma ou falar num celular; outra, é ingerir algo modificado no laboratório.
Não é à toa que as reações contra e a favor dos AGMs é polarizada e radical. De um lado, vemos grupos puristas querendo banir definitivamente qualquer tipo de alimento geneticamente modificado, alegando que fazem mal à saúde e ao meio ambiente; de outro, temos os defensores radicais dos AGMs, que confundem ciência com as estratégias de marketing dos grandes produtores, principalmente da gigantesca Monsanto.
Poucos debates na nossa era são tão importantes. Existem aqui ecos do que ocorre com o aquecimento global, o criacionismo e as vacinas, onde o racional e o irracional misturam-se de formas inusitadas.
Vemos uma grande desconfiança popular da aliança entre a ciência e as grandes empresas, dos cientistas "vendidos", comparados, infelizmente, com os que trabalham para a indústria do fumo. A realidade, como sempre, é bem mais sutil.
Existem centenas de estudos científicos publicados que visam determinar precisamente o impacto dos alimento geneticamente modificados nas plantações e nos animais. O leitor encontra uma lista com mais de 600 artigos no portal http://www.biofortified.org/genera/studies-for-genera/, que não é afiliado a qualquer empresa.
Em junho, o ministro do meio ambiente do Reino Unido, Owen Paterson, propôs que seu país deveria liderar o mundo no desenvolvimento e na implantação de AGMs: "Nosso governo deve assegurar à população que os AGMs são uma inovação tecnológica comprovadamente benéfica".
Na semana anterior, grupos contra a implantação de AGMs vandalizaram plantações de beterraba da empresa suíça Syngenta no Estado de Oregon, nos EUA.
As plantações foram geneticamente modificadas para resistir ao herbicida Glifosate (do inglês Glyphosate), algo que os fazendeiros desejam, pois ajuda no controle das ervas daninhas que interferem com a produtividade de suas plantações.
O Prêmio Mundial da Alimentação de 2013 foi dado a Marc van Montagu, Mary-Dell Chilton e Rob Fraley. Os três cientistas tiveram um papel essencial no desenvolvimento de métodos moleculares desenhados para modificar a estrutura genética de plantas. Chilton, aliás, trabalha para Syngenta.
Mas, no YouTube, vemos vídeos mostrando os efeitos "catastróficos" de tal ciência, como relata Nina Fedoroff, professora da Universidade Estadual da Pensilvânia em um ensaio recente para a revista "Scientific American".
Fedoroff antagoniza os exageros e radicalismo dos protestos contra os AGMs, que alega não terem qualquer fundamento científico, sendo comparáveis aos abusos pseudocientíficos que justificam posturas quase que religiosas.
Em termos dos testes até agora feitos, não parece que AGMs tenham qualquer efeito obviamente nocivo à saúde humana ou à dos animais que se alimentam deles. Já muitos dos inseticidas comumente usados em plantações são altamente cancerígenos.
Sem dúvida, a pesquisa sobre o impacto ambiental e médico dos AGMs deve continuar; mas a negação da ciência sem evidência, baseada em mitologias, é a antítese do que uma população bem informada deve fazer.