domingo, 27 de novembro de 2005

Tempestades celestes

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Ninguém vê chuva cair para cima. O mesmo não pode ser dito de raios e outros fenômenos eletromagnéticos que acompanham tempestades. No início dos anos 1990, cientistas na Europa e nos EUA observaram manifestações elétricas ocorrendo na atmosfera superior parecidas de certa forma com raios que sobem pelos céus.


Para que 2100 não seja um pesadelo, outra revolução é necessária, além da tecnológica: moral, e não material


Porém, os fenômenos são ainda mais espetaculares do que raios comuns: têm a forma de medusas gigantescas, de cabeça para baixo, surgindo a altitudes em torno de 40 quilômetros, com tentáculos se estendendo por até 40 quilômetros, cortando a ionosfera, a parte superior da atmosfera cheia de partículas eletricamente carregadas. Alguns pilotos em vôos a grandes altitudes viram o fenômeno, mas foram desencorajados a mencionar luzes e aparições estranhas nos céus.

Após anos de estudo, cientistas chegaram a uma explicação do fenômeno, baseada na distribuição de cargas nas nuvens e na ionosfera. Primeiro, é importante lembrar que cargas elétricas opostas se atraem, enquanto cargas iguais se repelem. Quando uma placa metálica recebe uma carga elétrica, dizemos que fica eletrizada. Se temos duas placas elétricas paralelas com cargas opostas, vai haver um campo elétrico entre as placas que pode acelerar cargas entre elas. A coisa é mais simples do que parece.

Eis uma analogia com a gravidade: quando elevamos um objeto até uma certa altura, sabemos que, se o soltarmos, ele irá ao chão: o campo gravitacional terrestre acelera o objeto em sua direção. No caso das placas paralelas, digamos que a de baixo é negativa e a de cima positiva. Uma carga positiva, perto da placa superior, vai querer descer na direção da placa negativa. Já uma carga negativa perto da placa inferior, vai querer subir na direção da placa superior.

O que isso tem a ver com as tempestades e as medusas elétricas? Uma nuvem parece um pouco com as duas placas paralelas que discuti acima: cargas de sinal oposto acumulam-se na sua base e no seu topo. Um raio é uma descarga do excesso de cargas em uma parte da nuvem.

Vamos supor que um raio retire um bando de cargas positivas do topo da nuvem. Nesse caso, o topo da nuvem fica com um déficit de cargas positivas, o que é o mesmo que um excesso de cargas negativas. Nuvens estão aproximadamente a alturas de 15 quilômetros. A ionosfera começa a altitudes maiores, em torno de 40-50 quilômetros. Como a ionosfera também tem cargas elétricas, o que ocorre é que a nuvem e a ionosfera formam duas placas elétricas aproximadamente paralelas, a nuvem negativa e a ionosfera positiva. (Podia ser o oposto.) Quando o raio descarrega a nuvem, ele causa um desequilíbrio que força cargas a escaparem da nuvem em direção à ionosfera, criando as gigantescas medusas elétricas.

Recentemente, um outro fenômeno associado a tempestades foi observado: relâmpagos parecem emitir raios gama, a radiação eletromagnética mais energética que existe, típica de fenômenos nucleares. Os chamados flashes de raios gama terrestres têm a duração de milésimos de segundo e tendem a ser mais comuns nas regiões entre os trópicos. Entre 1994 e 2005, o satélite-observatório de raios gama Compton observou 75 eventos. Em 2002, um novo satélite foi lançado para medir os raios gama (e monitorar explosões nucleares na atmosfera) e observou centenas deles, sempre acompanhando raios. Tempestades não afetam apenas o que existe abaixo das nuvens.

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Monstros do passado

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Olhar para o céu é olhar para o passado. Quanto mais distante o objeto celeste, mais para trás no tempo olhamos: a luz tem uma velocidade finita, demorando um certo tempo viajando do objeto que a gerou até nossos olhos. O Sol está a aproximadamente oito minutos-luz da Terra.

Portanto, a luz do Sol que bate em nossos olhos passou oito minutos viajando a 300 mil quilômetros por segundo para chegar aqui. O Sol que vemos não é o Sol de agora, mas o de oito minutos antes. A estrela mais próxima, a Próxima Centauri, fica a 4,3 anos-luz da Terra, 300 mil vezes mais distante do que o Sol. A luz que chega até nós passou 4,3 anos viajando. O cosmos é essencialmente vazio, algo que é sempre bom lembrar. Ainda bem; caso contrário, seríamos todos literalmente assados pela radiação de estrelas vizinhas. A vida seria impossível.


Se os dados contrariam a teoria, ela deve ser revisada, por mais bela que seja


Quando olhamos para o céu, vemos as estrelas próximas o suficiente para detectarmos sua luz com nossos olhos. Se nos limitássemos a essa visão do cosmos, seríamos bastante míopes. Com telescópios, instrumentos que coletam a luz muito mais eficientemente do que nossos olhos, podemos ver objetos muito mais distantes. A galáxia mais próxima, Andrômeda, está a aproximadamente 2 milhões de anos-luz daqui. Quando olhamos para ela com um telescópio, vemos como era há 2 milhões de anos, quando o gênero Homo dava seus primeiros passos na África. O astrônomo extragaláctico é um viajante no tempo, procurando por objetos cada vez mais longínquos, tentando reconstruir o passado do Universo.

Hoje, sabemos que o Universo teve um passado. Sabemos que existe há 13,8 bilhões de anos. Esse fato, junto com o fato de a luz ter uma velocidade finita, significa que temos um horizonte, uma fronteira além da qual não podemos enxergar. Dada a idade do Universo, nosso horizonte fica a 13,8 bilhões de anos-luz. O que existe além desse horizonte? Não sabemos. Mas suspeitamos que apenas mais Universo, mais galáxias e estrelas. Feito numa ilha: sabemos que além do horizonte o mar continua.

Com telescópios ultrapotentes como o Telescópio Espacial Hubble, astrônomos são capazes de ver os primeiros objetos que se formaram no início da história cósmica. Começando com a nossa casa: a Via Láctea é uma galáxia grande, com 100 mil anos-luz de diâmetro e em torno de 300 bilhões de estrelas. Sua idade, a julgar por suas estrelas mais velhas, é calculada em 10 bilhões de anos. Ou seja, nossa galáxia se formou quando o Universo tinha uns 3,8 bilhões de anos.

Uma das questões mais importantes da astronomia é como e quando as galáxias se formaram. Até recentemente, o mecanismo que explica a formação de galáxias seguia o esperado: pequenas flutuações na distribuição de matéria (principalmente hidrogênio) condensavam-se e cresciam devido à própria gravidade, agregando mais matéria no processo. Adicionando-se rotação, as partes mais densas formaram as primeiras estrelas, que, brilhando intensamente, causaram novas instabilidades, que formaram outras. O mecanismo é do menor para o maior: uma galáxia como a nossa demora para evoluir. Observações recentes parecem contradizer isso: galáxias gigantescas, monstros cósmicos maiores do que a Via Láctea, parecem já ter existido em abundância quando o Universo tinha 1 bilhão de anos. Apesar de ser cedo para concluir que os modelos de formação de galáxias estão errados, fica uma lição de como funciona a ciência: se os dados contrariam a teoria, ela deve ser revisada, por mais bela que seja.

domingo, 20 de novembro de 2005

Viagem no tempo

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Outro dia, durante uma entrevista, fizeram-me a seguinte pergunta: "Marcelo, se você pudesse fazer uma viagem no tempo, para quando escolheria ir?". Imagino que todo mundo já tenha se feito essa pergunta. Afinal, viajar no tempo significa ter poder sobre nosso destino, talvez poder compreender nosso passado, visitar pessoas queridas que já se foram, fazer as perguntas que ficaram por fazer. Eu costumava pensar que, se pudesse viajar no tempo, gostaria de voltar ao passado, conhecer as origens da minha família na Ucrânia, conversar com minha mãe, que morreu quando eu tinha seis anos.


Para que 2100 não seja um pesadelo, outra revoluçã o é necessár ia, além da tecnológ ica: moral, e não material


Dessa vez, porém, minha resposta foi diferente. Se pudesse viajar no tempo, gostaria de ir para o futuro. Mais precisamente, cem anos no futuro, em torno de 2100, quando já estarei morto por algumas décadas. (A menos, claro, que nos próximos 50 anos meus colegas médicos desenvolvam curas e métodos que nos permitam chegar aos 150 anos com lucidez e dignidade.) Por algum motivo, talvez porque tenha de certa forma resolvido alguns de meus problemas com o passado, senti que seria mais relevante ir para a frente, que o passado, bem ou mal, conhecemos um pouco, mas o futuro permanece uma incógnita completa.

Certamente, parte de minha resposta é pessoal; hoje, preocupo-me mais com meus filhos e seu futuro do que com o meu passado. Quero conhecer meus bisnetos, ver que pessoas virão a ser. Contudo, não foi em meus filhos ou bisnetos que pensei quando contemplei minha resposta: foi no nosso destino coletivo, o futuro da humanidade.

Vejo a corrida nuclear se estendendo a nações pobres, controladas por líderes radicais, motivados por preconceitos religiosos, cegos às diferenças de fé, imunes ao conceito de liberdade de escolha. Vejo as nações mais ricas explorando a mão-de-obra barata das nações mais pobres, de modo a manter a qualidade de vida de seus cidadãos sem qualquer preocupação com a dignidade daqueles que exploram. Vejo a escassez dos combustíveis fósseis crescer, os preços aumentarem, exacerbando as desigualdades sociais que hoje dividem o mundo. Vejo o crescimento acelerado das tecnologias criando uma subclasse social, aqueles que não têm acesso aos computadores de ponta, aos produtos que disseminam informação e, conseqüentemente, poder. Vejo a fome aumentando, a poluição causando os desequilíbrios climáticos previstos por modelos de aquecimento global que hoje são desprezados pelos políticos de países como os EUA. Vejo a hipocrisia da liderança política corroendo a confiança da população. Vejo que, moralmente, o homem é um animal primitivo.

Tudo isso vejo agora, com os olhos de quem vive em 2005. Por isso gostaria de viajar até 2100, para que possa me surpreender com a inventividade das pessoas, para provar que essa minha negatividade toda é produto do nosso momento atual, que vai dar tudo certo, que vamos conseguir sobreviver a nós mesmos. Se soubesse disso ficaria em paz, acreditaria que o homem, finalmente, começou a evoluir moralmente. Depositamos esperança demais nas tecnologias, achamos que seremos capazes de resolver todos os problemas através de soluções técnicas. Como cientista, é claro que apoio esse esforço. É graças aos grandes avanços tecnológicos que temos luz elétrica, telefones, antibióticos, vacinas, carros e aviões. Mas para que 2100 não seja o pesadelo que descrevi, outra revolução é necessária, moral, e não material. Acredito que seja possível, mesmo se acusado de ingenuidade. A alternativa é inaceitável.


domingo, 13 de novembro de 2005

Ações à distância

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

O objetivo principal da física é descrever os fenômenos do mundo natural, em particular aqueles que envolvem matéria inanimada. (Ao menos tradicionalmente. Hoje, a interface da física com a biologia é extremamente importante em várias frentes de pesquisa, da origem da vida ao funcionamento das células e do cérebro.) Uma das observações mais óbvias que podemos fazer é que objetos inanimados mudam de posição. Desde os menores, átomos ou partículas subatômicas, até os maiores, planetas, estrelas, galáxias. Não é, portanto, uma coincidência que uma grande parte da física seja dedicada justamente ao estudo do movimento.


Contanto que os fenômenos sejam descritos pelos modelos científicos, não é necessário entender tudo


Aristóteles foi um dos primeiros a tentar responder a essa questão. Postulou que existiam dois tipos de movimento: o movimento natural, que ocorre sem ser conseqüência de uma ação deliberada, e o forçado, que, como diz o nome, requer uma ação. Por exemplo, se soltarmos uma pedra de uma certa altura ela irá ao chão "naturalmente". Por outro lado, para que uma pedra voe para o alto, ela tem de ser atirada. Portanto, segundo Aristóteles, quanto mais pesado o objeto, mais rápido ele vai ao chão. Ele não via esse movimento como uma atração entre a Terra e o objeto, mas como a tendência do objeto (a pedra) a voltar ao seu lugar de origem.

Passaram-se 2.000 anos até que essas idéias fossem questionadas. Na Inglaterra, o médico da rainha Elizabeth 1ª, William Gilbert, demonstrou que a Terra é um ímã, explicando como as bússolas funcionavam: a Terra afeta a agulha da bússola sem tocá-la, isto é, exerce uma ação à distância. Na mesma época, em torno de 1600, Johannes Kepler, na Alemanha, especulou que o Sol exerce uma atração sobre os planetas, que faz com que eles girem à sua volta. Kepler inspirou-se no trabalho de Gilbert, sugerindo que a força fosse magnética. Com isso, uniu a física à astronomia pela primeira vez, tentando explicar os movimentos celestes em termos de ações à distância.

Enquanto isso, na Itália, Galileu Galilei causava alvoroço com seus estudos do movimento e suas observações telescópicas dos céus. Por meio de experimentos, coisa que os gregos não fizeram para comprovar suas hipóteses, Galileu mostrou que Aristóteles estava errado: objetos caem com a mesma aceleração, independentemente de suas massas. Ou seja, dois objetos soltos da mesma altura (segundo a lenda, Galileu fez isso do alto da torre de Pisa), chegam ao chão juntos.

Curiosamente, Galileu não usou o conceito de força para explicar o que via: seu trabalho concentrou-se na descrição matemática do movimento de queda, sem se preocupar com as causas. Com isso, obteve as equações que dizem quanto tempo um objeto demora para cair de uma certa altura ou onde cairá uma bala de canhão disparada com certa velocidade e inclinação.
No final do século 17, Isaac Newton completou o quadro, unindo a esfera terrestre e a celeste.

Ele mostrou que a força que provoca a queda de objetos na Terra é a mesma que faz com que a Lua gire em torno da Terra ou os planetas em torno do Sol, a força da gravidade. Quando questionado sobre o mistério dessa ação à distância, Newton deu de ombros, preferindo não especular. Essa postura é extremamente importante, pois explica como cientistas vêem seus modelos: contanto que os fenômenos sejam descritos, não é necessário entender "tudo". Mesmo que o conceito de ação à distância tenha sido substituído pelo de campo no século 19, também não sabemos o que cria os campos.

domingo, 6 de novembro de 2005

Seqüestros extraterrestres e memórias falsas

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Tente se lembrar de algo que aconteceu durante a sua infância, quando você tinha uns seis ou sete anos de idade. Pode ser uma cena qualquer, mas algo importante em sua vida. Por exemplo, quando eu tinha sete anos, caí na escola durante o recreio e cortei feio o joelho.

Lembro-me do sangue, de chorar muito e de meu pai chegando esbaforido, bravo, porque teve de deixar os pacientes esperando. Quantos desses detalhes são, de fato, reais? Será que somos capazes de realmente recordar coisas que ocorreram há muito tempo? Ou será que muitas de nossas memórias são inventadas ou ao menos parcialmente recriadas?

Essa questão vem sendo estudada com muito cuidado por vários profissionais, de psicólogos a advogados. Isso porque memórias falsas podem criar problemas sérios, por exemplo em denúncias de crimes sexuais domésticos ocorridos no passado. A situação é complicada, pois seria de fato injusto acusar um pai ou tio de ter molestado sexualmente um menor de idade se isso não aconteceu. Por outro lado, se aconteceu, o pai ou tio criminoso tem de ir para a cadeia. Como provar se a memória é real ou fabricada? Ninguém sabe como responder a essa pergunta. Se não existem provas concretas do que ocorreu, infelizmente o criminoso pode escapar impune. Ou um inocente pode ir para a prisão e uma família ser destruída.

É muito mais fácil ver o improvável quando acreditamos nele

Foi esse tipo de questão que motivou uma psicóloga da Universidade Harvard a estudar uma outra situação na qual memórias falsas podem estar presentes, relatos de seqüestro por seres alienígenas. Na verdade, Susan Clancy, que acaba de lançar um livro chamado "Abduzidos: Como Pessoas Passam a Acreditar que Foram Seqüestradas por Alienígenas", usou esses casos para mostrar que memórias falsas não só existem como podem ter tamanha força emocional que aparentam ser verdadeiras.

Clancy entrevistou 50 pessoas que dizem ter sido abduzidas por seres extraterrestres. Algumas até acreditam terem sido vítimas de vários seqüestros. Aparentemente, nos EUA cerca de 1 milhão de pessoas declaram ter sido seqüestradas. Não conheço a estatística no Brasil, mas acredito que não seja muito diferente. Conforme afirmou Clancy, "isso não significa que essas pessoas sejam loucas. Pelo contrário, muitas delas são articuladas e altamente inteligentes. A tendência em acreditar em coisas sobre as quais a ciência não tem provas é muito comum". Imagino que o leitor possa pensar em um ou dois exemplos. Fantasmas? O monstro do lago Ness? No caso dos alienígenas, não existe mesmo nenhuma evidência concreta de que tenham visitado a Terra no passado ou que estejam no momento por aqui, apesar dos inúmeros relatos e de suspeitas de intrigas governamentais.

Clancy atribui os relatos a um estado entre a consciência e o sono, durante o qual alucinações são comuns. Em geral, os pacientes lembram-se do seqüestro quando sob hipnose. O mesmo ocorre com relatos de violência sexual.

A grande diferença é que, sem dúvida, muitos dos relatos de abusos sexuais são reais, enquanto os seqüestros por alienígenas são falsos. Pelo menos até que uma prova concreta surja, um circuito ou uma liga metálica que não exista na Terra, a solução de um grande problema matemático, o seqüestro de um cientista sério que obtenha alguma evidência que não seja apenas um relato oral. É muito mais fácil ver o improvável quando acreditamos nele. Por outro lado, se nossos olhos estiverem sempre fechados, não o veremos nunca.