domingo, 27 de setembro de 2009

A primeira causa



O propósito da ciência não é responder a todas as perguntas; sua missão é outra


Hoje, retorno a uma questão que parece boba, de tão simples. Mas talvez seja a mais complexa que podemos tentar responder. Tanto que, no meu livro "A Dança do Universo", chamei-a de "A Pergunta". Aí vai: como tudo começou?


O que complica as coisas é que pensamos sobre tudo como um encadeamento simples de causa e efeito: cada efeito tem uma causa que o precede.

Quando vemos uma bola de futebol voando, é porque alguém a chutou; se um carro passa na rua, é porque alguém está dirigindo; se a planta cresce, é porque consegue extrair nutrientes do solo e usar a luz solar como fonte de energia; se o Sol brilha, é porque em seu centro hidrogênio está sendo fundido em hélio, liberando quantidades enormes de energia; se o Sol existe, é porque uma nuvem de hidrogênio entrou em colapso há cerca de 4,6 bilhões de anos, atraída pela própria gravidade...

Se continuarmos nessa linha, terminamos, paradoxalmente, no começo de tudo, a origem do Universo. Se o Universo existe, "algo" o fez existir.

A primeira causa é o impulso inicial da criação. Assim ela tem sido vista desde que religiões começaram a tentar explicar o enigma da origem de tudo. No caso da religião, a estratégia funcionou bem: dado que deuses são entidades sobrenaturais, eles não vivem no tempo, tendo uma existência atemporal, eterna. Assim sendo, regras de causa e efeito, ou mesmo a mera aplicação do bom senso, não valem para divindades.

Uma vez que se aceita que algo pode existir fora do tempo e pode ter poderes absolutos que transcendem as leis da natureza, tudo é possível. Até a criação a partir do nada. No Gênese, Deus criou a luz e separou as águas da terra através do verbo. Segundo Santo Agostinho, que muito se preocupou com esse assunto, o tempo e o espaço surgiram com o mundo. Antes da criação, não havia o "antes", pois o tempo não existia. Outras narrativas de criação do mundo resolvem a questão da primeira causa de forma semelhante, postulando a existência de entidades divinas e, portanto, alheias aos vínculos temporais que tanto nos limitam.

E a ciência? Será que é possível resolver a questão da primeira causa de modo científico? Esse é um debate ferrenho que, infelizmente, entrava o progresso cultural da humanidade. Remete-nos a "guerras" inúteis contrapondo ciência e religião, como se a ciência tivesse como função substituir a fé religiosa, uma grande distorção.

Se as pessoas acreditam que a ciência é capaz de responder a todas as perguntas, incluindo a questão da primeira causa, elas se sentem justamente ameaçadas: parece que a ciência tem como missão "roubar" Deus das pessoas. De forma alguma: ao contrário do que muitos dizem, não é essa a missão da ciência. A ciência não se propõe a responder a todas as perguntas. E por um motivo simples: nós nem sabemos que perguntas são essas. Dado que jamais teremos um conhecimento completo da realidade, jamais poderemos construir uma narrativa científica completa.

Sempre existirão questões não perguntadas e não respondidas; e mesmo questões que nada têm a ver com a ciência. A escolha do que fazemos com essa nossa ignorância perene é pessoal: existem aqueles que preferem optar por ter fé em entidades sobrenaturais e existem aqueles que, como eu, preferem aceitar a simplicidade do não-saber. Não ter todas as respostas é a pré-condição para o nosso crescimento. Nesse sentido, mesmo se a ciência não resolver o enigma da primeira causa -e existem obstáculos complicados que ficam para outro dia-, prefiro continuar tentando e aceitar que, por ser humano, minha visão de mundo tem limites.

domingo, 20 de setembro de 2009

A festa dos quarks



Partículas que formam os prótons e nêutrons podem ser indivisíveis


Neste mês, o legendário físico teórico americano Murray Gell-Mann completa 80 anos. Entre seus grandes feitos, o mais importante foi ter proposto uma ideia que revolucionou a nossa compreensão da composição da matéria.

Em 1963, Gell-Mann propôs que, ao contrário do que se pensava na época, os prótons e nêutrons, as partículas que compõem o núcleo de todos os átomos, não eram indivisíveis, e sim formadas por partículas ainda menores. Mostrando a sua fenomenal cultura geral (da qual se orgulha muito), Gell-Mann usou uma palavra de um texto do escritor irlandês James Joyce para batizar as partículas: "quarks". O nome fictício é bem apropriado: nem mesmo Gell-Mann poderia ter imaginado o quão estranhos são os quarks.

Já na Grécia Antiga, em torno de 400 a.C., os filósofos Leucipo e Demócrito haviam sugerido que tudo o que existe no Universo é composto de partículas minúsculas e indivisíveis, que chamaram de átomos (em grego "o que não pode ser cortado".) Durante 2.400 anos, filósofos e (mais recentemente) físicos vêm procurando pelos tijolos fundamentais da matéria. Essa é a missão do reducionismo: tentar dividir entidades complexas em entidades simples e irredutíveis.

É claro que a pergunta mais imediata aqui é se existe mesmo algum limite: se cortarmos a matéria em pedaços cada vez menores, será que chegaremos mesmo até as entidades mais básicas? Essa é a crença que vem inspirando físicos por todo esse tempo. Até o final do século 19, achava-se que os átomos dos elementos químicos (do hidrogênio ao urânio e além, os integrantes da Tabela Periódica) eram indivisíveis. Essa crença foi derrubada em 1897 quando o inglês J. J. Thomson mostrou que todos os átomos continham uma partícula ainda menor, o elétron. Alguns anos depois, Ernest Rutherford mostrou que a maior parte da massa de um átomo está concentrada num volume mínimo no seu centro, o núcleo atômico.

O integrante do núcleo com carga elétrica positiva, contrabalançando a carga negativa do elétron, ficou conhecido como próton. Em 1932, James Chadwick mostrou que outra partícula integrava o núcleo, de carga elétrica nula: o nêutron. Esse era o trio de partículas que, compondo todos os átomos da Tabela Periódica, deveria bastar para explicar a estrutura da matéria, um triunfo do reducionismo. Só que a festa durou pouco.

Durante os anos 1940 e 1950, uma multidão de partículas foi encontrada, todas aparentemente elementares, isto é, indivisíveis. Essa avalanche de partículas, centenas delas, ia contra o espírito do reducionismo, e acabou gerando uma crise na comunidade.

Será que o atomismo está errado?

Quando Gell-Mann, e também George Zweig, propuseram que essas partículas eram, de forma análoga aos átomos, composta de outras menores, o alívio era palpável. Só que... esses quarks eram muito diferentes: tinham carga elétrica fracionária e não igual à do elétron e, para piorar, não podiam aparecer por si sós. Viviam trancadas, ou confinadas, dentro dos prótons, nêutrons e suas centenas de primos.

Gell-Mann, sabendo que enfrentaria resistência, sugeriu que, se seu esquema estivesse correto, novas partículas existiriam, formadas de dois tipos de quarks, o "up" e o "down".

Quando as partículas foram encontradas, as pessoas começaram a levar os quarks a sério. Prótons e nêutrons têm três quarks cada. Desde então, foram encontrados seis tipos de quarks.

A teoria não prevê nenhum outro.

Mas será esse o fim do reducionismo?

Ou os quarks são feitos de partículas ainda menores? Esse é o tipo de pergunta que, especulações à parte, só os experimentos poderão responder.

sábado, 19 de setembro de 2009

Marcelo Gleiser: ciência para poetas

Ouca entrevista audio aqui
http://www.domtotal.com/multimidia/entrevistas_detalhes.php?entId=44

18/09/2009

A ciência é ensinada de uma maneira tão chata que é um milagre as pessoas desejarem ser cientistas. Quem diz isso é o físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser, professor da Universidade de Dartmouth, em Hanover, Estados Unidos.

Marcelo Gleiser é o professor de física que todo mundo gostaria de ter. No lugar de frases pomposas, ele conta episódios deliciosos da história da ciência e da vida do cientista. Ao invés de passar a aula inteira expondo fórmulas no quadro negro, apresenta os fundamentos da física no laboratório, com demonstrações e experiências.

Uma de suas disciplinas em Dartmouth se chama física para poetas, que o tornou o professor mais popular da Universidade, graças também a seus livros e peças de teatro, sem falar nas aventuras quando vem ao Brasil, como desfilar vestido de Santos Dummont na Escola de Samba Unidos da Tijuca.

Por causa de seus múltiplos talentos, Marcelo Gleiser recebeu condecoração especial das mãos do presidente Bill Clinton por seu trabalho de pesquisa em cosmologia e por sua dedicação ao ensino. Difícil acreditar, diante de tanto sucesso profissional, que este cientista que abala o coração das mulheres onde quer que vá, um dia pensou em largar os estudos para ser músico.

Marcelo Gleiser é o entrevistado da semana no Dom Total.

Confira abaixo trechos da entrevista e no áudio acima a entrevista completa.


Marco Lacerda: Costuma-se dizer que a sua forma de escrever e divulgar a ciência é comparável à de Carl Sagan, conhecido pelo seu jeito apaixonado e simples de ensinar. Você concorda com esta comparação?

Marcelo Gleiser: Fico lisonjeado com a comparação, gosto muito do Carl Sagan, sempre foi um ícone para mim. Se as pessoas acham que estou fazendo um trabalho de divulgação científica que merece essa comparação, fico muito feliz, porque obviamente estou tocando as pessoas da maneira correta.

Há uma pequena diferença, talvez, entre a minha postura e a dele. Carl Sagan é uma pessoa muito mais radical. Ele acredita que a ciência é a reposta para tudo.

A minha postura é de sempre entender a ciência dentro do contexto histórico e cultural em que ela foi criada e desenvolvida. O Sagan, pelo contrário, via a ciência como algo quase absolutista - “A ciência é a única maneira razoável de se pensar o mundo”.

Eu não vejo assim. Quer dizer, acredito que existem várias maneiras de pensar o mundo: artísticas, poéticas, espirituais. A própria ciência tem um lado espiritual muito grande. Então diria que a minha postura é um pouco mais liberal, mas, sem dúvidas, acho legal que as pessoas façam esse tipo de comparação.


Lacerda: Você costuma dizer que a ciência é ensinada de uma maneira tão chata que é um milagre as pessoas desejarem ser cientistas. Onde você vê essa chatice e como ela poderia ser transformada?

Gleiser: Esta é uma ótima pergunta. As chatices aparecem de várias formas. Em primeiro lugar, infelizmente, a maioria dos professores de ciência - principalmente no ensino público no Brasil - são pessoas que, ou não gostam de ciência, ou tem um preparo muito pequeno na área.

Como uma pessoa que não gosta do assunto ou não tem interesse em aprender sobre, pode transmitir às crianças a paixão pelo ensino e a curiosidade? Não dá muito certo.

O que ocorre? O ensino fica muito preso às fórmulas. Há o quadro negro e as pessoas ficam memorizando o que é uma célula, o que tem dentro dela, o que é movimento retilíneo uniforme. Não existe um engajamento maior entre quem está ensinando e as crianças que estão aprendendo. Fica realmente chato.

Com a minha experiência de dar aulas em escolas, não só para adultos, mas também para turmas de 5ª e 6ª séries, vejo que os alunos têm um interesse enorme em aprender. Ficam muito curiosos com assuntos como buraco negro e galáxias, por exemplo. Fica claro que o interesse existe.

O que falta é o método de manter esse interesse vivo. Como fazer isso? Existem várias maneiras, não vamos dar um curso de como ensinar ciência, mas uma delas é levar as crianças para fora da sala de aula e usar o mundo como laboratório.

Por exemplo, você leva as crianças para um parque - nem precisa ser tão grande, uma pracinha mesmo, que tenha árvores e balanços. Lá, você mostra como são as árvores, porque elas são verdes, como o balanço balança, porque temos que empurrar. Você olha para o céu e explica porque ele é azul, o mesmo com as nuvens, os ventos. Você transforma esse parque em um laboratório de ciências.

Isso, para mim, tornaria o ensino ficasse muito mais interessante. A ciência fica realmente chata quando é: “vamos ler o capítulo dois do livro e escrever as fórmulas no quadro negro”.


Lacerda: Dizem que a ciência explica a natureza e cria novos mundos que nós não percebemos com os nossos sentidos. Você poderia falar um pouco sobre estes mundos de uma forma que nós entendamos com nossos sentidos?

Gleiser: Na verdade, diria que a ciência não cria novos mundos, mas revela os mundos que já existem e que a gente não consegue ver. Nós somos seres limitados, só podemos ver objetos a certa distância e de certo tamanho. O que a ciência faz?

Vou dar dois exemplos: o telescópio e o microscópio. Dois instrumentos científicos que mudaram completamente nossa percepção do universo. O caso do telescópio, aliás, é bastante pertinente. Em 1609, Galileu apontou seu telescópio para os céus. Desde então, se passaram 400 anos.

O telescópio mudou completamente nossa visão de mundo porque percebemos, através dele, que o universo é muito mais rico, dinâmico e variado do que o céu estrelado que vemos todos os dias.

No caso do microscópio, acontece o oposto. Ao invés do mundo do “muito grande”, temos o mundo do “muito pequeno”. Mais ou menos na mesma época que o telescópio estava sendo inventado e aperfeiçoado, o microscópio estava sendo inventado e aperfeiçoado. Ali se viu que em uma gota d’água existe todo um universo de vida, bactérias e animais estranhíssimos, que são completamente invisíveis a olho nu.

Entrevista realizada pelo jornalista Marco Lacerda no programa FrenteVerso, que vai ao ar aos domingos, às 21h, pela Rádio Inconfidência FM

domingo, 13 de setembro de 2009

Das estrelas à vida

Um astro é o pai de todos e a vida é uma grande família, unida pela química


Esta história começa há muito tempo, há 5 bilhões de anos, mais ou menos. Perdida no espaço, nos confins de uma galáxia qualquer, uma gigantesca nuvem de hidrogênio flutuava calmamente, girando em torno de si mesma. Perto dela, se é que dezenas de anos-luz podem ser considerados "perto", uma estrela já bem velha, com mais de 1 bilhão de anos, começou a entrar em pane.

A energia que essa estrela fabricava nas suas entranhas já não bastava para contrabalançar a sua ânsia de implodir, como ordena a gravidade, essa força que nunca dorme. A estrela, enorme, começou a pulsar violentamente e, após muitas convulsões, explodiu com uma violência tremenda, expelindo suas entranhas pelo espaço.

Nelas, estavam os vários elementos químicos que hoje organizamos na tabela periódica, do hidrogênio e hélio ao carbono, oxigênio, ferro e urânio. Essa poeira estelar, empurrada pela força da explosão, viajou pelo espaço afora, até se chocar com a nuvem de hidrogênio, aquela que, até então, flutuava calmamente.

A nuvem, perturbada pela onda de choque, entrou em colapso, semeada por todos os elementos químicos que haviam sido forjados na estrela já defunta. Aos poucos, a matéria dessa nuvem foi se concentrando no plano equatorial, feito uma grande pizza. No meio dela, nascerá o Sol. Ao seu redor, vão se formar os planetas, recheados de átomos de carbono, oxigênio, nitrogênio, ferro...

Os mais próximos ao Sol, onde é mais quente, serão planetas rochosos, como a Terra e os seus vizinhos, Marte e Vênus, e o pequenino Mercúrio. Os mais distantes, onde é mais frio, coletam também muito hidrogênio e hélio e crescem muito, virando os planetas gigantes Júpiter, Saturno, Urano e Netuno.

Na Terra, a presença de água líquida e de uma atmosfera agitada e repleta de gases permite que compostos químicos, feitos principalmente de carbono, comecem a marcha em direção à vida. São eles, os ditos compostos "orgânicos", que vão se tornar parte dos primeiros seres vivos e de todos os seus descendentes. Inclusive nós, humanos. Especial, essa Terra.

Com uma grande Lua circulando ao seu redor, seu giro em torno de si mesma, como o de um pião, fica equilibrado em um ângulo de 23,4. Caso não houvesse Lua, não teríamos esse equilíbrio e não teríamos as estações do ano e a presença constante de água líquida. É difícil imaginar vida complexa aqui sem o calor moderado e a água.

Pois as temperaturas amenas da Terra propiciam as reações químicas que levam simples átomos de carbono a se combinar com mais átomos de carbono, de oxigênio, de hidrogênio, de fósforo e de nitrogênio, formando as moléculas da vida, as proteínas e os ácidos nucleicos. Tudo isso, claro, usando o carbono forjado naquela estrela que morreu e nos cedeu suas entranhas, nossa vizinha cósmica.

Esse carbono é o fundamento da vida. Todos os seres vivos, todas as células contêm esse elemento. Depois da água, somos essencialmente feitos de carbono. Parte desse carbono é continuamente reciclada, passando de animal a animal, de planta a animal e de animal à planta: das escamas de um peixe às folhas de uma samambaia, das asas de uma borboleta ao seu nariz. Cada um de nós carrega consigo alguns dos átomos de carbono que, outrora, pertenciam aos nossos distantes ancestrais que viveram há bilhões de anos, seres que hoje nos parecem primitivos e exóticos.


Temos, em nossas células, restos de algum tiranossauro ou pterossauro, de uma ameba primordial, de uma libélula extinta. No ciclo do carbono, uma estrela é a mãe de todos e a vida inteira é uma grande família, unida pela química que nos permite existir.

domingo, 6 de setembro de 2009

Ciência e liberdade


Nunca se deve aceitar algo só porque foi dito por uma autoridade


Já que esta coluna cai na véspera do dia da Independência, achei oportuno revisitar um tema que está sempre presente na vida da gente: a questão da liberdade. Claro que, nestas breves linhas, eu não teria a pretensão de apresentar muitos pensamentos profundos sobre o que significa ser livre. Convido apenas os leitores a uma reflexão, iluminados, como sempre, pela luz da ciência.

Quando era garoto, gostava muito de citar a seguinte frase: "Ser livre é poder escolher ao que se prender". Outra versão é: "Quanto mais chaves você carrega no bolso, menos livre você é". Não há dúvida de que a primeira é mais filosófica. (Acho que é atribuída, talvez erroneamente, ao filósofo francês Jean-Paul Sartre.) Mas ambas dizem algo de semelhante: que liberdade e escolha andam de mãos dadas.

Existem, certamente, situações em que isso não é verdade: pessoas "presas" não por terem cometido algum crime, mas por serem aprisionadas por alguma ideologia que lhes é imposta. Por exemplo, as crianças que nascem em famílias ultrarreligiosas nunca têm a opção de refletir sobre os valores que lhes são impostos. Mesmo sem carregar chaves, estão presas até crescerem o suficiente para poder (ou não) se rebelar. O mesmo ocorre com os indivíduos que vivem em regimes políticos totalitários, onde a "verdade" é controlada pelo Estado.

Ou seja, a frase "ser livre é poder escolher ao que se prender" pressupõe que o indivíduo tem a liberdade de escolha. Isso nem sempre é verdade. Para sermos livres, precisamos ter livre acesso à informação. Só assim teremos o privilégio de poder escolher ao que vamos nos prender.

Daí o papel fundamental da educação, contanto que livre de censuras ideológicas. Já em torno de 50 a.C., o poeta romano Lucrécio celebrava a importância da educação na liberdade das pessoas. Sua preocupação era com a excessiva superstição dos romanos, que atribuíam tudo o que ocorria à ação de algum deus. Consequentemente, a maioria da população vivia aterrorizada. Só aqueles que usam a razão para desvendar o porquê das coisas podem de fato ser livres, dizia.

Só quem reflete sobre as causas das coisas, em vez de atribuí-las cegamente a causas sobrenaturais, é livre dos medos que assombram a vida. A educação deve fornecer ao indivíduo a capacidade de reflexão crítica, a habilidade de saber fazer perguntas e não de aceitar passivamente tudo o que lhe é dito. Essa habilidade, esse ceticismo, é um dos aspectos mais cruciais do treinamento de um cientista. Nunca se deve aceitar algo só porque foi dito por uma autoridade.

Essa atitude é exatamente oposta ao que ocorre em culturas conservadoras e repressivas. Mesmo que a ciência busque uma ordem no mundo material, sua essência é anárquica. Os grandes revolucionários da ciência, Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Einstein, Bohr, foram todos anárquicos a seu modo. Todos defendiam a sua liberdade de pensamento acima de tudo, recusando-se (ou quase, no caso de Galileu, sob ameaça da Inquisição) a aceitar o saber das autoridades. Para eles, ser livre é ter a coragem de pensar por si mesmo sobre os grandes problemas, na tentativa de chegar a uma verdade aceita pela maioria.

Quando penso em liberdade, penso nesses nomes, e em tantos outros -cientistas ou não- que lutaram para que hoje possamos ter a visão de mundo que temos. Se hoje somos mais livres, devemos agradecer a eles. Se há tantos longe de ser livres, é porque ainda temos muito o que fazer.