domingo, 20 de janeiro de 2002

A dança das cabeças

A psicologia está passando por uma profunda revolução. Talvez não apenas a psicologia, mas a nossa compreensão do que seja uma "doença" mental e de como ela deve ser tratada. Uso aspas de propósito, pois para muitos a categoria "doença mental" não existe. Afinal, como diz o velho adágio, de louco todos temos um pouco. Definir o que significa ser "normal" é complicado, pois aqui não existem fórmulas exatas, mas percepções, muitas vezes subjetivas, de estados variados de comportamento. Claro, existem casos extremos, como na esquizofrenia ou em crises psicóticas, nos quais fica claro que a pessoa não está agindo de forma coerente ou é incapaz de garantir a própria segurança ou a daqueles à sua volta. Mas falo aqui de situações menos extremas.

Esse é um assunto extremamente controverso, com várias frentes de batalha, que vão desde um enfoque puramente psiquiátrico, no qual a patologia mental é essencialmente idêntica a outras patologias físicas e deve ser tratada da mesma forma, com de drogas que possam restituir o balanço químico do cérebro a níveis considerados normais até um enfoque puramente terapêutico, no qual as drogas não são usadas.

Apesar de eu não ser um especialista no assunto, venho conversando com vários amigos psicólogos e psiquiatras nos últimos tempos. Eles me informam sobre o que vem ocorrendo nas pesquisas nesse campo. Na minha universidade, como é típico nos EUA, o antigo Departamento de Psicologia acaba de receber um novo nome: Departamento de Ciências do Cérebro e Cognitivas. Bleuler, Freud, Jung, Adler e outros grandes nomes quase nunca são mencionados e, quando o são, o são com desdém. "Eles não eram cientistas", é o que escuto dizer.

Mantidas as devidas proporções, me vem em mente o que os químicos dizem dos alquimistas, ou o que os astrônomos dizem dos antigos astrólogos. Pelo contrário, acho que eles inauguraram a tradição científica na psicologia, ao procurar por modelos gerais que explicassem várias modalidades de comportamento. Se os modelos têm ou não um grande sucesso clínico é algo que se deve, em grande parte, à enorme complexidade do cérebro e das emoções humanas. Afinal, como se pode medir amor, ódio, tristeza ou alegria de forma universal e não subjetiva? Um mesmo estímulo, como um filme triste, gera tantas reações diferentes quantas sejam as pessoas na audiência.

Não há dúvida de que o cérebro é um conjunto de neurônios ligados por sinapses, e que todos os estados de comportamento são, em última instância, redutíveis a diferentes configurações desses neurônios e sinapses. Não obstante, a pesquisa dos últimos 20 anos demonstra o quanto é inútil tentar estudar o cérebro por um método reducionista; o número de estados possíveis é tão gigantesco que a própria idéia de prever o comportamento de uma pessoa a partir da análise de alguns neurônios é ingênua.

Por outro lado, o uso de certas drogas pode trazer benefícios aos pacientes, estejam eles sofrendo de depressão, ansiedade, estresse pós-traumático ou transtorno bipolar. Hoje também sabemos que muitas patologias têm um forte componente genético, embora nunca se possa deixar de estudá-las considerando a influência do ambiente.

Não existe uma resposta única, o que não é nada surpreendente. Se as drogas ajudam a atenuar sintomas intensos, elas não ensinam a pessoa a lidar com as dificuldades da vida. Mais ainda, existe o problema da reversibilidade: Se a pessoa parar de tomar a droga, será que os seus sintomas retornam? Os resultados variam muito. Não há um único remédio claramente eficiente para todos os pacientes que sofrem de depressão, como a insulina para o diabetes.

Aqui entra a terapia, que muitas vezes pode ser extremamente difícil e dolorosa e que pode ou não ter resultados. Existe um grande esforço na validação empírica de certos métodos terapêuticos, isto é, na tentativa de se mostrar quantitativamente que certas terapias funcionam, algumas até afetando a estrutura de certas regiões do cérebro. Fica difícil imaginar que a cura de distúrbios mentais possa ser feita exclusivamente por meio de uma intervenção química, como com uma infecção. Por outro lado, se alguém dissesse a Freud que certas drogas aliviam a depressão de milhões de pessoas, será que ele acreditaria?


domingo, 13 de janeiro de 2002

A música das pequenas e grandes esferas

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Em filosofia se diz, e com razão, que tudo começou com os pré-socráticos, filósofos que viveram aproximadamente durante o sexto século a.C. em partes diferentes da Grécia Antiga. Segundo Aristóteles, que viveu mais tarde, no século 4 a.C., o primeiro dos filósofos foi Tales, que veio de Mileto, cidade que fica no que hoje é a costa oeste da Turquia. Tales dizia que tudo é água, e que é muito mais fácil dar conselho aos outros do que conhecer a si mesmo.

A idéia de atribuir a essência de todas as coisas a um único elemento fundamental foi extremamente importante, mesmo que, para nós, ela possa parecer ingênua. Pela primeira vez na história, respostas sobre o funcionamento do mundo natural foram buscadas na própria natureza e não por meio das ações sobrenaturais de diversos deuses. Assim nasceu a ciência.
Em torno de 530 a.C., um outro filósofo vivia no sul da Itália, o legendário Pitágoras. Muita gente conhece o nome Pitágoras pelo famoso teorema da geometria, que diz que o quadrado do lado maior de um triângulo reto (a hipotenusa) é igual à soma dos quadrados dos outros dois lados (os catetos). Aparentemente, não foi Pitágoras quem provou esse teorema, mas alguma outra pessoa que fazia parte de sua fraternidade filosófica. É difícil atribuir descobertas específicas a um ou outro pré-socrático, pois praticamente nada do que eles escreveram sobreviveu. Mas sabemos que Pitágoras foi o primeiro a descobrir a profunda ligação entre a música, a matemática e a natureza, ligação que é, ainda hoje, fonte de grande inspiração na ciência.

Usando um instrumento de cordas, Pitágoras mostrou que notas musicais que ele considerava harmônicas (harmonia é uma palavra pitagórica) podiam ser atribuídas a razões entre números inteiros relacionados com o comprimento da corda. Se à corda solta era associada o número 1, à metade da corda seria atribuída a razão 1/2, cujo som é uma oitava acima do som da corda solta (o leitor que tem um instrumento de corda qualquer pode facilmente constatar isso). O som correspondente a 2/3 da corda é uma terça mais alto, a 3/4 uma quarta, e assim por diante.

Para Pitágoras, o fato de uma escala musical harmônica aos ouvidos poder ser construída a partir de número inteiros não era uma coincidência, mas uma expressão do papel essencial da matemática na descrição do mundo. A relação da música com a matemática ocupou, desde então, um papel central no desenvolvimento da ciência: a descrição da natureza a partir dos números deveria ser tão harmoniosa quanto as notas musicais são aos ouvidos.

Kepler, o astrônomo alemão que viveu no início do século 17, acreditava, como os pitagóricos, em uma profunda relação entre a matemática, a música e a natureza. Dizia-se que Pitágoras podia ouvir a "música das esferas", a melodia que os planetas soavam em suas órbitas celestes ao redor da Terra (na época, ainda se acreditava que a Terra era o centro do cosmo). Se as distâncias entre os planetas e a Terra pudessem ser representadas por razões entre números inteiros, como nas escalas musicais, eles soariam a música celeste. Kepler não podia ouvir a melodia celeste ("apenas o intelecto pode ouvi-la", dizia), mas acreditava na descrição das órbitas em termos de números relacionados com escalas musicais. Em seu grande livro, "A Harmonia do Mundo", publicado em 1618, ele elabora a sua lei harmônica, onde é estabelecida a relação correta entre o período da órbita dos planetas (em torno do Sol) e a sua distância ao Sol. Kepler representou seus resultados em termos de escalas musicais, uma para cada planeta: "Os movimentos celestes não são mais do que uma canção contínua para diversas vozes", escreveu ele.

Os números inteiros reapareceram na ciência de forma espetacular no início do século 20, durante o desenvolvimento da física atômica. O dinamarquês Niels Bohr e o alemão Sommerfeld demonstraram que as órbitas dos elétrons em torno do núcleo atômico podem ser representadas por sequências de números inteiros que, segundo Sommerfeld, têm "uma consonância harmônica maior do que as estrelas das melodias celestiais pitagóricas". O que reaparece aqui é a importância da poética no processo criativo do cientista. A harmonia das esferas, parte da ciência tanto do muito grande quanto do muito pequeno, traz a ciência mais perto da arte, onde o símbolo é uma ferramenta fundamental da criatividade; ele não só expressa a criação como também a alimenta.

domingo, 6 de janeiro de 2002

Vendo o cosmo com olhos de gigante

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Em 1609, o grande cientista italiano Galileu Galilei apontou pela primeira vez um telescópio para os céus. E o que ele observou transformou profundamente a visão de mundo prevalente em sua época, que dizia ser a Terra, e não o Sol, o centro do cosmo então conhecido.
Nos últimos 393 anos, telescópios cada vez mais potentes continuaram a transformar a nossa visão de mundo. Hoje sabemos que o Sol é apenas uma estrela entre centenas de bilhões de outras que fazem parte da Via Láctea, uma imensa galáxia espiral com aproximadamente 100 mil anos-luz de diâmetro.

Sabemos também que a Via Láctea é apenas uma galáxia entre centenas de bilhões de outras, cada uma delas com milhões ou bilhões de estrelas. E que essas galáxias estão se afastando umas das outras, carregadas pela expansão do Universo. Sabemos que essa expansão iniciou-se há cerca de 14 bilhões de anos, em um evento chamado Big Bang.

Os telescópios modernos não se limitam apenas a captar a luz visível das estrelas ou galáxias distantes. Eles também captam formas de radiação que são invisíveis aos nossos olhos, como a infravermelha, a ultravioleta, os raios X etc. Com isso, os astrônomos podem "ver" muitos fenômenos que são invisíveis a olho nu.

Para que a potência de um telescópio seja aumentada, ele tem de captar uma maior quantidade de luz (ou radiação). Isso é feito por meio de um espelho ligeiramente curvo (ou lente, mas os espelhos vêm predominando). Quanto maior o espelho, maior a potência do telescópio, isto é, mais luz ele poderá captar.

Assim, uma fonte muito distante, que jamais foi vista antes, poderá ser vista com telescópios maiores. O próprio Galileu testemunhou isso, ao averiguar que existem muito mais estrelas no céu do que as que percebemos a olho nu.

Hoje, o maior telescópio óptico (que capta luz visível) do mundo se encontra no Chile, fazendo parte dos instrumentos do ESO (Observatório Europeu do Sul). O gigante consiste em quatro espelhos, cada um com 8,2 metros de diâmetro. Outro enorme é o telescópio Keck, no Havaí, com dois espelhos de dez metros cada.

Esses telescópios múltiplos usam seus vários espelhos para amplificar a quantidade de luz captada e, consequentemente, a resolução de suas imagens. Se os planos atuais de vários grupos nos EUA e na Europa forem adiante, e o mais provável é que isso ocorra, dentro de dez anos os gigantes de hoje serão brinquedos de criança. E também alvos de uma acirrada competição entre a astronomia americana e a européia.

A agência espacial norte-americana, a Nasa, pretende lançar em 2010 o sucessor do Telescópio Espacial Hubble, que vem fornecendo imagens espetaculares de estrelas nascendo, de um cometa colidindo com Júpiter, de galáxias tão distantes que a sua luz viajou por 10 bilhões de anos antes de chegar até nós, entre outras. Como a velocidade da luz é finita, ver fontes mais distantes significa ver o Universo em seu passado, numa verdadeira máquina do tempo cósmica.
Com o sucessor do Hubble e seu espelho de oito metros orbitando a Terra, os astrônomos serão capazes de estudar o Universo na época em que as galáxias estavam nascendo.

Aqui na Terra, astrônomos nos EUA propuseram um telescópio de 30 metros, enquanto os europeus contra-atacaram com dois projetos, um de 50 metros (chamado Euro50) e o enorme OWL (do inglês "Overwhelmingly Large Telescope", ou Telescópio Absurdamente Grande), da ESA (a agência espacial européia), com cem metros.

Esses telescópios são tão grandes que seus espelhos têm de ser segmentados em espelhos menores, cada um deles controlado individualmente por computador. O OWL, por exemplo, terá de ser segmentado em 1.600 pedaços, o que representa um grande desafio técnico para os cientistas da ESA.

Um dos objetivos mais interessantes dos telescópios gigantes é a busca por vida extraterrestre em planetas orbitando estrelas distantes. Ao passar em frente à estrela, o planeta e sua atmosfera bloqueiam parte de sua luz.

Mas ver um planeta passando em frente a uma estrela a 50 anos-luz de distância é equivalente a ver uma mosca passar em frente a um farol de carro a uma distância de um quilômetro.
Comparando a luz da estrela com e sem o planeta é possível deduzir a composição química da atmosfera do último. A presença de certas substâncias, como metano, vapor d'água e ozônio, é indicativo de uma possível atividade biológica no planeta. Para saber onde pode existir vida extraterrestre, basta olhar com olhos de gigante.