domingo, 26 de janeiro de 2003

Quem sabe?

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Hoje, gostaria de falar não daquilo que sabemos, daquilo que podemos nos orgulhar de ter descoberto sobre o mundo, das conquistas da ciência, passadas e presentes. Mudando de direção, falarei do que não sabemos, ao menos de algumas das perguntas científicas que continuam sem resposta.

Antes de começar, é importante salientar por que essa ênfase no que não sabemos. Sem dúvidas, o conhecimento não avança. Perguntar é mais fundamental do que responder. (Mas responder é importante também.) Não me refiro a qualquer pergunta, mas àquela que tem a capacidade de abrir novos caminhos, de expandir as fronteiras do conhecimento. Falo das perguntas revolucionárias, que criam a necessidade de novas formas de pensar sobre o mundo.
Essas perguntas podem ter repercussões ligadas a avanços tecnológicos ou teóricos. (A distinção nem sempre é muito clara.) Um exemplo tecnológico é o dos transistores. Hoje, processadores de computador têm bilhões deles, encolhidos em chips menores do que uma moeda de 10 centavos. Essa miniaturização está por trás do incrível aumento na velocidade de processamento dos computadores, de telefones celulares com telas coloridas e por aí afora. Mas essa crescente miniaturização dos transistores tem um fim certo. Eles chegarão às dimensões atômicas (em uma década, possivelmente) e dali não passarão. Isso por que a física do átomo é muito diversa da que descreve esses aglomerados de transistores. A questão, então, é: como será o computador do futuro? Sem dúvida, ele terá de utilizar aspectos da física atômica, e muitos pesquisadores se ocupam hoje dos "computadores quânticos", que, por enquanto, existem só em teoria. Algo de novo será necessário, algo que revolucionará a tecnologia do século 21, do mesmo modo que o transistor revolucionou a do século 20. Fala-se até em computadores cujos chips são feitos de moléculas orgânicas, isto é, contendo átomos de carbono, como em seres vivos.

Outro exemplo é a questão da inteligência artificial. Será possível construirmos computadores inteligentes, tão ou mais do que nós? Computadores atuais que parecem ser inteligentes, como o Deep Blue que derrotou Kasparov, o mestre de xadrez, não são. Eles são apenas rápidos, tão rápidos que podem testar metodicamente bilhões de jogadas por segundo e avaliar as suas repercussões. A questão da inteligência artificial permanece em aberto. Imagine uma máquina capaz de criar obras de arte inovadoras, de fazer perguntas jamais feitas, de se apaixonar e sofrer como humanos.

Uma vez, assistindo a uma palestra de Marvin Minsky, um dos pioneiros da inteligência artificial, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), perguntei se, no caso dessas máquinas serem construídas no futuro, elas desenvolveriam também patologias mentais, como depressão ou psicose. Minsky respondeu que "sem dúvida, precisaremos de toda uma nova psicologia para lidar com esses problemas". Essa questão dá origem a outra: se, de fato, essas máquinas vierem a existir, elas poderão ser mais inteligentes do que nós. Nesse caso, nos tornaríamos obsoletos, ultrapassados evolutivamente. Estaríamos, ao criar essas máquinas, decretando a nossa extinção? Quem sabe?

O que me leva à questão da origem da mente. De onde vem o que chamamos de consciência? Os antigos chamavam de alma essa misteriosa chama interna que parece iluminar a nossa existência. O mundo que chamamos de externo é criado por um constante influxo de informação sensorial, integrada em nossos cérebros. A realidade é apenas isso, resultado dessa integração. Se falha algum elemento na integração, a realidade fica distorcida, às vezes a ponto de se tornar irreconhecível, como no caso de alucinações. Muito possivelmente, só seremos capazes de criar máquinas inteligentes quando respondermos à questão da origem da mente. Como recriar aquilo que não entendemos? Meu espaço acabou e nem comecei a falar sobre duas outras questões, a origem da vida e do Universo, ambas foco de muita pesquisa. Quem sabe?

domingo, 19 de janeiro de 2003

As inconstantes constantes da natureza

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A descrição dos fenômenos naturais, ao menos daqueles que fazem parte da física, depende de um punhado de números, chamados constantes fundamentais da natureza. Por exemplo, a força gravitacional, que descreve a atração entre corpos maciços como o Sol e a Terra ou o leitor e a Terra, depende da constante de Newton, cujo valor determina o teor (bastante fraco) da força gravitacional. Já a atração entre um elétron e um próton no núcleo atômico depende de uma outra constante, a carga elétrica do elétron. Cada uma das quatro forças fundamentais da natureza -gravitacional, eletromagnética, e as forças nucleares forte e fraca- tem a sua constante.
Essas constantes, e outras extremamente importantes, como a velocidade da luz no vácuo ou a constante de Planck -que determina as trocas de energia em processos atômicos-, são, como já diz o nome, supostamente constantes: seus valores independem do tempo e do espaço, sendo os mesmos em qualquer lugar do Universo ou em qualquer momento.

Ao menos esse é o arcabouço tradicional da física. Na verdade, a situação é um pouco mais sutil. As constantes que mencionei acima têm unidades físicas, que, em geral, dependem de medidas de distância, tempo e massa. (Para quem lembra, temos sempre de especificar se trabalhamos, por exemplo, no sistema MKS -metro, quilograma, segundo; ou CGS- centímetro, grama, segundo.)

Sem querer complicar muito as coisas (mas complicando um pouco), existem dois tipos de constantes fundamentais: as discutidas acima, que têm unidades físicas (como a velocidade da luz, de aproximadamente 300 mil km/ s), e as constantes construídas de modo a não ter unidades físicas, obtidas dividindo e multiplicando constantes com unidades. A mais famosa dessas constantes é a "constante de estrutura fina", obtida a partir de uma combinação da carga do elétron, da velocidade da luz, e da constante de Planck. O valor é, hoje, 1/137.
Existem duas grandes questões sobre essas constantes da natureza. A primeira, claro, é se é possível entendermos a origem de seus valores. Ou seja, por que a velocidade da luz ou a carga do elétron têm o valor que têm? Em princípio, gostaríamos de poder calcular esses valores a partir de uma teoria mais fundamental, em vez de simplesmente usarmos os valores medidos no laboratório. Caso isso venha a ser possível, estaremos obtendo uma visão muito mais profunda da natureza, o sonho de qualquer cientista.

A outra grande questão concerne à constância dessas constantes. Será que elas são mesmo constantes no espaço e no tempo? Por exemplo, será que a carga do elétron ou a velocidade da luz podem ser diferentes em outras partes ou épocas do Universo? Afinal, só sabemos aquilo que medimos, e o que pode parecer constante aqui e agora pode não ser em outros lugares ou eras. Essa possibilidade é bem interessante para os físicos teóricos. Isso porque uma variação temporal em algumas das constantes representa uma janela para uma nova física, muito possivelmente ligada com a resposta à primeira grande questão, a origem dos valores dessas constantes. E física, como qualquer outra ciência, é essencialmente sobre abrir novas janelas para o mundo.

Existem inúmeras teorias que prevêem variações temporais das constantes fundamentais (variações espaciais são, em geral, vetadas). Entre elas, existem teorias de unificação das forças, que visam descrever as quatro forças da natureza mencionadas acima como oriundas de uma força só. As mais promissoras são teorias que supõem que o espaço tem mais de três dimensões (altura, largura, profundidade). Recentemente, astrônomos mediram uma pequena variação temporal na velocidade da luz: o comportamento de átomos durante a infância do Universo, há aproximadamente 10 bilhões de anos, parece indicar que era menor no passado. Caso essa observação seja confirmada, o que deve ser feito com muito cuidado, abre-se uma janela para uma nova física. Talvez apontando para um cosmo com mais de três dimensões, talvez não. O novo nem sempre é previsível. Mas é sempre fascinante.

domingo, 12 de janeiro de 2003

Pragmatismo e sonho

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Qual é a origem da criatividade científica? Essa pergunta, como tantas outras, tem muitas respostas. O que, na opinião de alguns, significa que nenhuma delas é muito satisfatória. Eu discordo. A pergunta é que está mal formulada.

Discutir criatividade em ciência não faz sentido. O que faz sentido é discutir a criatividade dos cientistas. Existem os mais pragmáticos, que equacionam fazer ciência com a aquisição e organização de dados obtidos no laboratório ou por meio de observações de fontes longínquas, como em astronomia. Para esses, o progresso em ciência depende da precisão dessas medidas, o que implica uma íntima relação entre o progresso tecnológico e o científico. Sem novas máquinas e aparelhos de medição, a ciência não avança.

Existem também os sonhadores, aqueles cuja criatividade brota de uma pré-concepção de como o mundo deve ser organizado, em geral inspirada por conceitos estéticos, como simetria e beleza. "Sonhadores" talvez seja uma caracterização exagerada. Mas o ponto é que, sem a impetuosidade, às vezes quase que irracional, que vem da inspiração, fica difícil desvendar os mistérios mais profundos da natureza. Ou seja, para os sonhadores, acreditar na verdade de suas idéias é fundamental, mesmo que elas sejam inicialmente ridicularizadas por outros sonhadores ou por pragmáticos.

Claro, o adjetivo "sonhador", aqui, deve ser interpretado dentro de parâmetros científicos. Sonho não significa a atividade onírica comum a todos, mas a inspiração que leva à construção de teorias cujas previsões devem ser testadas cuidadosamente. Afinal, está se falando de criatividade em ciência e não se deve perder de vista que sua missão é explicar o funcionamento do mundo à nossa volta (e o que existe dentro de nós).

Existem inúmeros exemplos na história da ciência de pragmáticos e sonhadores. Mas poucos ilustram tão bem a diferença entre os dois processos criativos quanto as histórias do dinamarquês Thycho Brahe (1546-1601) e do alemão Johannes Kepler (1571-1630).

Brahe transformou a astronomia com a introdução de instrumentos de altíssima precisão, no final do século 16. Ele morreu oito anos antes da introdução do telescópio como instrumento astronômico. Portanto, todas as suas medidas das posições dos astros celestes, de planetas e cometas a estrelas e "estrelas novas" (hoje chamadas supernovas), foram realizadas a olho nu.

Na época, o modelo introduzido por Copérnico em 1543, que tinha o Sol e não a Terra no centro do cosmo, ainda não era universalmente aceito. Brahe, armado de seus instrumentos, entendeu que a questão só seria resolvida definitivamente a partir de dados extremamente precisos.
Como tinha dinheiro, pôde financiar a construção de instrumentos que foram então usados na coleta de dados. Mas a Brahe, brilhante observador, faltava o talento que poria então esses dados em ordem, montando o arcabouço teórico que explicaria a estrutura do cosmo. Aqui entra Kepler, o sonhador.

Kepler foi convidado por Brahe para ser seu assistente no início de 1600. Mesmo sem dados precisos, ele já havia "adivinhado" a estrutura do cosmos. Para ele, apenas a geometria poderia fornecer uma resposta precisa. Isso porque Kepler era herdeiro das idéias dos pitagóricos, que viam a organização cósmica como sendo dependente dos arranjos dos números e das formas geométricas. Para Kepler, Deus era um geômetra, que certamente usou essas proporções estéticas no desenho do cosmo. A questão era encontrar o arranjo preciso. E, para isso, Kepler precisava de dados.

O encontro entre os dois, apesar de muito tempestuoso, mudou a história da astronomia. Com os dados de Brahe, Kepler obteve as três leis que regem o movimento dos planetas em torno do Sol, confirmando definitivamente o sistema copernicano e fornecendo os elementos matemáticos que Newton mais tarde usou em sua Teoria da Gravitação Universal. A moral da história? Sem dados não há ciência; sem sonhos ela pode dar passos, mas não grande saltos.

domingo, 5 de janeiro de 2003

A realidade e o quantum

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Segundo o dicionário, realismo é a doutrina filosófica de acordo com a qual objetos materiais existem por si mesmos, independentemente da mente ter consciência deles. Já o oposto, o idealismo, supõe que as coisas existem apenas como idéias na mente.

Eis um exemplo bastante conhecido, que ilustra bem os dois pontos de vista. Imagine que atrás da sua casa exista um bosque, cheio de árvores. Você sabe que o bosque existe porque você passeia frequentemente por lá. Segundo a posição realista, esse bosque existe mesmo se você ou outra pessoa nunca o tenha visto.

Ele é tão real para os mosquitos e as borboletas voando lá quanto para você. Já o idealismo diria que o bosque só existe na sua cabeça, pois a mente fabrica a nossa percepção do real através de sinais sensoriais processados no cérebro.

Se um belo dia uma das árvores do bosque cair, os realistas diriam que ela caiu, mesmo se ninguém a visse caída, enquanto os idealistas só admitiriam que ela caiu caso eles a tenham visto no chão, ou a ouvido caindo. Os idealistas mais radicais diriam ainda que a árvore só caiu dentro da sua cabeça, pois foi a sua mente que construiu o evento.

Essas duas correntes filosóficas estão muito ligadas com a interpretação do mundo segundo a física. A física clássica, que descreve a realidade em que vivemos o dia-a-dia, toma uma posição realista; o mundo esteve aqui bem antes de existirem pessoas com consciência disso.

Afinal, se o Universo existe há 14 bilhões de anos, a Terra há 4,6 bilhões e o Homo sapiens há menos de 200 mil, claramente a realidade é mais velha do que nós. Em outras palavras, a realidade existe independentemente da presença de um observador consciente para medi-la.
O mundo está aí, pronto para ser medido e observado por nós, ou por qualquer outra inteligência interessada em uma descrição quantitativa da natureza. No entanto, a confirmação final do que existe depende da observação; só sabemos o que existe no mundo se observarmos o mundo. Segundo a física clássica, o ato de observação não interfere com o observado; existe uma separação explícita entre observador e observado.

Duas pessoas, observando o mesmo fenômeno, com os mesmos instrumentos, obterão resultados idênticos. Aliás, é justamente isso o que garante a relatividade de Einstein: que dois observadores em movimento com velocidades (e acelerações) diferentes poderão comparar sem problemas as suas medidas.

Essa posição realista foi profundamente revisada com o advento da mecânica quântica durante as três primeiras décadas do século 20. No mundo do quantum, o mundo dos átomos e das partículas subatômicas, o que é ou não real deixa de ser tão óbvio. De fato, os próprios pioneiros da mecânica quântica, de Planck e Einstein à Bohr, Schrödinger e Heisenberg, debateram as implicações da nova teoria para a nossa compreensão do real sem chegarem a um consenso.

A teoria quântica abandona certas premissas básicas da física clássica como, por exemplo, o conceito de trajetória; um elétron viajando pelo espaço não percorre mais um caminho bem definido entre o seu ponto de partida e o de chegada; podemos apenas dizer qual a probabilidade dele tomar um dado caminho. No mundo quântico, a noção de caminho torna-se difusa, junto com a própria existência: afinal, se não podemos dizer por onde o elétron passou para ir de um ponto a outro, como garantir que ele existe entre esses dois pontos?

A salvação do caos completo vem com a idéia de medida. Para sabermos onde está o elétron, temos de interagir com ele. No processo de medida, fixamos a sua posição e, portanto, a sua existência. Ou seja, a realidade, no mundo quântico, depende do ato de observação: as coisas só são reais quando observadas.

Mais ainda, o resultado da observação depende do observador: duas medidas idênticas não darão necessariamente o mesmo resultado. No mundo quântico, vence o idealismo: as coisas existem ao serem medidas, o que, em última instância, depende do observador, seja ele inteligente ou uma máquina.