domingo, 25 de junho de 2006

Conciliando ciência e religião

A função da ciência não é atacar Deus, mas oferecer uma descrição do mundo mais completa

Para muitos, ciência e religião estão permanentemente em guerra. Desde a famosa crise entre Galileu Galilei e a Inquisição, no século 17, quando o cientista foi forçado a abjurar sua convicção de que o Sol e não a Terra era o centro do cosmo, razão e fé aparentam ser incompatíveis. Aos crentes, a religião oferece não só apoio espiritual em momentos difíceis e uma comunidade fraterna e acolhedora mas também respostas à questões de caráter fundamental e misterioso, como a origem do Universo, da vida ou da mente.
Na sua maioria, as respostas são relatadas em textos sagrados, escritos por homens que recebem a sabedoria por meio de um processo de revelação sobrenatural, de Deus (ou dos deuses) para os profetas. Para as pessoas de fé, é absurdo contestar a veracidade desses textos, visto que são expressão direta da palavra divina.

A atitude descrita acima faz parte da ortodoxia de muitas religiões. Nem todos os crentes adotam uma posição tão radical com relação à veracidade, ou literalismo, dos textos sagrados. Uma posição mais comum é interpretar os textos como representações simbólicas, um corpo de narrativas dedicadas a construir uma realidade espiritual baseada em certos preceitos morais. Galileu criticou os teólogos católicos, dizendo que a função da Bíblia não é explicar os movimentos dos planetas mas como obter a salvação eterna. ("Não é explicar como os céus vão, mas como se vai para o Céu.")

A adoção de uma postura menos ortodoxa permite uma visão de mundo menos radical, onde a religião e a ciência podem viver em harmonia, cada uma cumprindo sua missão social. O conflito entre as duas não é, de forma alguma, necessário. Basta saber distinguir o que uma ou outra pode e não pode fazer. Isso serve também aos cientistas, em especial aos que têm atitudes ortodoxas contra a religião.

Acho extremamente ingênuo imaginar ser possível um mundo sem religião. Ingênuo e desnecessário. A função da ciência não é tirar Deus das pessoas. É oferecer uma descrição do mundo natural cada vez mais completa, baseada em experimentos e observações que podem ser repetidos ou ao menos contrastados por vários grupos. Com isso, a ciência contribui para aliviar o sofrimento humano, seja ele material ou de caráter metafísico.

A distinção essencial entre ciência e religião está no que cada uma delas pressupõe ser a natureza da realidade. Enquanto a religião adota uma realidade sobrenatural coexistente e capaz de interferir com a realidade natural, a ciência aceita apenas uma realidade, a natural. Aqui aparece a razão principal do conflito entre as duas. Para a ciência não é preciso supor que o que ainda não é acessível ao conhecimento necessite de explicação sobrenatural. O que não sabemos hoje pode, em princípio, vir a ser explicado no futuro. Em outras palavras, a ciência abraça a ignorância, o não-saber, como parte necessária de nossa existência, sem lançar mão de causas sobrenaturais para explicar o desconhecido.

Sem dúvida, esse tem sido o seu caminho: explicar de forma clara e racional um número cada vez maior de fenômenos naturais, do funcionamento dos átomos à formação de galáxias e a transmissão do código genético entre os seres vivos. As tecnologias que tanto definem a vida moderna, da revolução digital aos antibióticos, dos meios de transporte ao uso da física nuclear no tratamento do câncer, são fruto desse questionamento. Negar isso é tentar olhar para o mundo de olhos fechados.

A conciliação entre ciência e religião só ocorrerá quando ficar claro o papel social de cada uma. Negar uma ou outra é ignorar que o homem é tanto um ser espiritual quanto racional.

quinta-feira, 22 de junho de 2006

Matéria e energia



Existe algo muito belo nessa nova física, na qual matéria e energia são a mesma coisa


Talvez a equação mais famosa da física seja E=mc2, obtida por Einstein em 1905 em sua teoria especial da relatividade. Todo mundo gosta de repeti-la, afirmando com convicção que "matéria e energia são a mesma coisa". A verdade, como sempre, não é assim tão simples. O que não significa que não seja fascinante.

Vale começar com a física pré-einsteiniana, quando matéria e energia tinham uma relação bem diferente. Durante os séculos 18 e 19, os físicos reformularam as leis da mecânica em termos de relações entre tipos diferentes de energia que corpos materiais podiam ter. Energia não era só uma "coisa", mas uma coisa que corpos podem ou não ter.

Por exemplo, um carro viajando a uma certa velocidade tem energia cinética, isto é, energia de movimento. Quanto mais rápido o carro anda, mais energia cinética tem. Se o carro está parado, sua energia cinética é zero. (Para os leitores com espírito matemático, a energia cinética de um corpo varia com o quadrado de sua velocidade.) Isso vale para qualquer corpo em movimento, não só carros.

Outro tipo de energia é a energia potencial. Ela está armazenada de alguma forma e pode ser transformada em movimento. Por exemplo, uma pedra, quando largada de uma certa altura, vai ao chão. Existe aqui a tendência de movimento em potencial; daí o nome energia potencial. Claro, se a pedra está já no chão, sua energia potencial é igual a zero.

Note que, ao cair, a pedra adquire energia cinética. Portanto durante a queda existe uma conversão de energia potencial em energia cinética: à medida que a pedra cai, sua energia potencial decresce e sua energia cinética cresce. Quando ela chega ao chão e pára, ambas energias vão a zero.

Existem outros tipos de energia potencial. A que mencionei acima é a do tipo gravitacional. Encontramos outro tipo nas molas. Uma mola, quando comprimida, armazena energia potencial: se a soltarmos, ela se relaxará. Novamente, há uma conversão de energia potencial em energia cinética. Qualquer máquina que envolva movimento converte algum tipo de energia potencial em energia cinética.

Essa é a física familiar do nosso dia-a-dia. A partir de 1905, tudo mudou. Einstein mostrou que energia não é apenas uma coisa que corpos podem ou não ter. Segundo a relatividade especial, matéria e energia são interconversíveis: é possível transformar matéria (ou massa) em energia e vice-versa. Em vez de ser algo que corpos materiais têm, energia passou a ser algo que eles são. Massa é energia e energia pode ser massa. A sutileza está em como ocorre a interconversão.

Segundo a fórmula, a massa m de um corpo em repouso multiplicada pelo quadrado da velocidade da luz (c = 300.000 km/s) é a energia contida nessa massa. Seria genial se pudéssemos inventar uma máquina que transforma massa em energia; resolveria todos os problemas de combustível. O que complica as coisas é a enormidade da velocidade da luz. Se, por um lado, isso significa que existe muita energia armazenada na massa de um corpo, por outro é extremamente difícil extraí-la; para tal, são necessários processos a altíssimas energias.

Um exemplo é o que ocorre em usinas nucleares; núcleos atômicos pesados são fissionados (quebrados) em núcleos menores. Essa fissão libera a energia que ferve água e move turbinas.
Existe algo de muito belo nessa nova física, na qual matéria e energia são, essencialmente, a mesma coisa. Isso pode não ser aparente na nossa vida diária, mas está lá, no coração dos átomos, regendo as interações entre as partículas elementares da matéria.

domingo, 18 de junho de 2006

O "por quê?" e o "como?"

Nem sempre a ciência pode ou mesmo tenta ou deve explicar o porquê das coisas

Uma das percepções mais comuns da ciência é que ela tem o dever de explicar o porquê de tudo. Por exemplo, por que o céu diurno é azul e não amarelo ou laranja? Por que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário, como se pensava até 400 anos atrás? Por que existe vida na Terra e não em Vênus? Por que algumas pessoas têm olhos azuis e outras, castanhos?

Na prática, no entanto, a situação é mais complicada: existem dois tipos de pergunta, o "por quê?" e o "como?". Nem sempre a ciência pode ou mesmo tenta ou deve explicar o porquê das coisas. Perguntas do tipo "como" são, em geral, muito mais apropriadas à missão da ciência de descrever a realidade em que vivemos.

Eis um exemplo extremo. Por que o Universo surgiu? Não há como responder a essa questão cientificamente. E por que não? Porque a pergunta não é científica. Ela implica numa suposta intenção, uma teleologia que simplesmente não pertence ao discurso científico. Porém, a pergunta "como surgiu o Universo?" é bem mais apropriada, embora altamente complexa. Mesmo que não tenhamos uma resposta, não é absurdo achar que ela exista e que um dia seja encontrada.

Outro exemplo, mais concreto: no século 17, o inglês Isaac Newton desenvolveu uma teoria da gravidade baseada no seguinte fato: todos os objetos materiais no Universo, como você, os planetas e as estrelas, exercem uma atração sobre todos os outros objetos -atração esta proporcional à magnitude de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado da distância que existe entre eles.

Portanto, corpo A com massa MA e corpo B com massa MB exercem atração mútua com uma força proporcional a MAxMB, o produto das duas massas. Imagino que alguns leitores se surpreendam com isso e se perguntem: isso significa que estrelas distantes estão me atraindo e eu a elas? Sim. E por que não voamos na direção delas? Porque felizmente a força cai com o quadrado da distância. Para nós, seres terrestres, a atração da Terra domina de longe todas as outras.

A teoria de Newton é extremamente bem-sucedida, explicando uma série de observações e fenômenos que presenciamos no nosso dia-a-dia. Por exemplo, ela demonstra que a trajetória de uma bala de canhão ou de uma pedra atirada para frente é parabólica e que as órbitas dos planetas em torno do Sol são elipses. Com isso, é possível calcular com altíssima precisão os movimentos terrestres e celestes que dependem da força da gravidade. Mesmo assim, essa é uma teoria do "como" e não do "por quê".

Uma das críticas que se fez ainda no tempo de Newton é que essa atração à distância entre o Sol e os planetas, ou entre uma pedra e a Terra, é muito misteriosa. Quando perguntaram a ele por que massas se atraem, respondeu que preferia não inventar hipóteses sobre o assunto: uma teoria científica pode se contentar em descrever com alta precisão como os planetas seguem suas órbitas celestes ou qual a trajetória de um foguete sem ter que explicar por que massas se atraem.

Isso pode frustrar aqueles que precisam de uma explicação completa e absoluta de tudo, mas não frustra os cientistas. Essa diferença de opinião vem de uma expectativa distorcida do que seja a ciência. Muitos acham que, como a ciência explica racionalmente tantas coisas que antes eram "explicadas" pela religião, deveria mesmo explicar tudo, como o faz a religião.
No entanto, a proposta da ciência é bem mais humilde: basta explicar "como". O que fazemos é desvendar as regras que regem a realidade, não explicar por que elas existem.

domingo, 11 de junho de 2006

Brinquedos perigosos

Se somos controlados pelas forças de mercado, quanto tempo demorará para que a comercialização da genética seja feita?

Quando perguntaram a John von Neumann, um dos primeiros a desenvolver programas para computadores ainda na década de 1950 e inventor da teoria dos jogos, quantos computadores achava que haveriam nos Estados Unidos no futuro, o brilhante matemático respondeu "dezoito".

Von Neumann acreditava que computadores custariam mais caro na medida em que ficassem mais poderosos. (Só para constar, seu gigantesco cérebro eletrônico ocupava um enorme salão em Princeton e tinha memória de 4 kilobytes.) Para ele, apenas algumas organizações governamentais e privadas teriam recursos e necessidade de ter essas máquinas, que seriam usadas para cálculos extremamente complexos, como táticas de defesa global e meteorologia. O que Von Neumann não previu foi o que o físico e escritor Freeman Dyson chama de "domesticação" do computador, o fato de que computadores não só cresceriam em potência mas diminuiriam de preço, a ponto de hoje fazerem parte da vida de centenas de milhões de pessoas, dos três aos 90 anos de idade.

A plasticidade dos computadores se deve ao sucesso do que chamamos de interface, a maneira como homem e máquina se comunicam. Quanto mais acessível a máquina, mais desejável e, portanto, mais comercial, ela é. E, quanto mais comercial a máquina maior a demanda e menor o preço. Ademais, tecnologias evoluem de forma irreversível: seria impensável hoje um mundo sem TV, rádio ou internet.

Os computadores estão aqui para ficar. Nenhum veículo na história da humanidade trouxe voz para tantos. A internet é o instrumento democrático mais poderoso que existe. As pessoas trocam idéias (boas e más, mal e bem intencionadas) como nunca trocaram antes, rapidamente, eficazmente. Esse novo mundo dá vazão à criatividade, seja ela artística ou técnica. A digitalização da cultura permite que qualquer um vire artista, manipule imagens, áudio, pesquise textos, crie galerias de arte virtuais e salões de discussão.
A domesticação do computador mudou o mundo irreversivelmente.

Qual será o produto a ser domesticado no século 21? Muitos dizem, e eu concordo, que a ciência que mais crescerá será a biologia. Embora a tendência das ciências seja caminhar para uma interdisciplinariedade crescente, serão as questões da biologia, a origem da vida, a manipulação de genes de animais, pessoas e vegetais, o estudo da mente pela neuropsicologia, que provocarão as revoluções deste século. Dentre as novas tecnologias, a que mais tem causado estardalhaço é sem dúvida o seqüenciamento do genoma, humano e outros. As conseqüências são enormes, tanto em termos de promessas de uma nova medicina quanto em relação à questões éticas. O que fazer com alimentos transgênicos, com a clonagem de animais e de humanos, com o uso das células-tronco?

Em uma palestra recente, Dyson sugere que a tecnologia a ser domesticada será o seqüenciamento de DNA. Da mesma forma como os computadores ficaram acessíveis, a capacidade de manipular genes também ficará. Adolescentes poderão inventar seus animais de estimação, híbridos de sapo e beija-flor. Adultos poderão desenhar sua prole. Dyson, muito espertamente, deixa a questão ética e da regulamentação de lado. Mas o que sugere leva à reflexão. Se somos controlados pelas forças de mercado, quanto tempo demorará para que a comercialização da genética seja feita? E como ficará determinado quem poderá brincar com esse brinquedo perigoso?


domingo, 4 de junho de 2006

Horizontes perdidos

Será possível, com telescópios cada vez mais poderosos, observar a origem do tempo?

O mar não termina além do horizonte. Na verdade, o horizonte não existe: é apenas um círculo imaginário criado pela posição do observador devido à curvatura da Terra. Caso o observador mude de posição, o horizonte também muda, delimitando o que pode ser visto diretamente, um compromisso entre o fato de a Terra ser redonda e a trajetória reta da luz.

Em cosmologia também se define um horizonte, conforme descrito na coluna da semana passada: visto que o Universo tem uma idade finita, definida como o tempo transcorrido entre sua origem e hoje, em torno de 14 bilhões de anos, a distância ao nosso horizonte cósmico é de 14 bilhões de anos-luz, ou o que a luz percorre em 14 bilhões de anos. Como nada pode viajar mais rápido do que a luz, o horizonte cósmico determina uma fronteira absoluta do conhecimento: mesmo que algo exista além dele, não podemos receber informação a respeito. A situação é bem mais complexa -e interessante- do que ocorre com o mar. Afinal, com o mar podemos sempre mudar de posição para investigar o que existe adiante. Com o Universo a coisa é mais sutil. Devido ao fato de a velocidade da luz ser finita, 300 mil km/s, a informação de um objeto distante demora para chegar até nós. Por exemplo, se o Sol explodir agora, só saberemos em oito minutos, o tempo para a luz viajar do Sol à Terra.

Já as estrelas mais próximas estão a aproximadamente 4,5 anos-luz daqui, enquanto Andrômeda, nossa galáxia vizinha, está a 2 milhões de anos-luz. Ao observamos Andrômeda, estamos vendo-a como era há dois milhões de anos, quando os primeiros hominídeos caminhavam sobre a Terra: olhar para objetos cada vez mais distantes é olhar cada vez mais para o passado. Hoje, os astrônomos detectam radiação vinda de objetos a 13 bilhões de anos-luz de distância, menos de um bilhão de anos-luz da origem: o cosmo em sua adolescência, as primeiras galáxias nascendo, juntamente com seus milhões de estrelas. Será então possível, com telescópios cada vez mais poderosos, observar a própria origem do universo, a origem do tempo?
Infelizmente não. Um pouco antes do horizonte cósmico de 14 bilhões de anos-luz encontramos outro horizonte, a fronteira do que é observável diretamente. Para vermos um objeto, luz tem que viajar livremente entre ele e nossos olhos (ou telescópios, dá no mesmo). Considerando que o Universo está em expansão desde a sua origem, voltar à infância cósmica significa reverter a um passado onde galáxias que hoje estão separadas por distâncias de milhões ou bilhões de anos-luz estavam muito próximas.

Quando essas distâncias relativas encolhem a um fator de mil, o Universo era tão pequeno que sua temperatura era também em torno de mil vezes maior. Isso porque a temperatura aumenta quando a matéria é comprimida. A essas temperaturas, átomos são dissociados e seus componentes, elétrons e núcleos, passam a ser livres. Ou seja, quando o cosmo tinha um milésimo do tamanho, podia ser descrito como uma sopa de radiação, elétrons e prótons interagindo a temperaturas de milhares de graus. A radiação, cuja porção visível chamamos de luz, não podia mais viajar livremente, chocando-se constantemente com elétrons e prótons. O Universo deixa de ser transparente: durante sua infância o cosmo era opaco. Essa transição ocorreu 300 mil anos após o Big Bang. Esse período inicial só pode ser "observado" indiretamente, assim como os dinossauros: não precisamos estar lá para saber que existiram. O que não significa que não seria fantástico se pudéssemos. Sobre os possíveis fósseis cósmicos, fica para outra semana.