domingo, 24 de fevereiro de 2013

A partícula profeta do apocalipse


O bóson de Higgs, às vezes chamado de 'partícula de Deus', tem o destino do Universo em suas mãos

Como se já não bastasse a confusão causada quando chamam o bóson de Higgs de "partícula de Deus", eis que, recentemente, a mesmíssima partícula voltou à berlinda, agora como profeta do fim.
Isso mesmo, leitores, o destino do Universo está nas mãos dessa partícula ou, mais precisamente, no valor de sua massa.

Tudo começa na cozinha, que é um excelente laboratório. Como sabemos, as propriedades de uma substância, como a água, dependem de sua temperatura: muito frio, a água congela; muito quente, evapora. Essas mudanças são conhecidas como transições de fase.

Surpreendentemente, o próprio Universo -ou a matéria nele-passou por ao menos uma ou duas transições de fase. E talvez possa passar por mais uma.

A história cósmica começa no Big Bang, que marca o início do tempo. Logo após o "bang", o espaço começou a crescer feito um balão, e a matéria nele se resfriou.

Voltando à cozinha, vemos que a expansão do Universo funciona como uma geladeira, fazendo a temperatura baixar. Será que a matéria cósmica também pode passar por uma transição de fase?
Sabemos que sim. Logo no início, a temperatura era tal que as partículas não tinham massa. A única que tinha era o Higgs, mas ele não interagia com as outras partículas.

Quando a temperatura foi baixando, o Higgs passou a interagir com as partículas com maior intensidade, dando-lhes massa. Esse processo é uma transição de fase que ocorreu quando o Cosmo tinha um trilionésimo de segundo.

Em julho do ano passado, cientistas do laboratório europeu de partículas Cern (onde estarei durante toda a semana -podem esperar algo para domingo que vem) descobriram uma partícula com toda a cara do Higgs.  Ainda não temos certeza se é o mesmo Higgs que dá massa para todo mundo, mas tudo indica que sim. O problema é a massa dele, que é entre 124 e 126 vezes maior do que a do próton.

Dependendo da massa do Higgs, o Universo pode passar por outra transição de fase, como a água, que pode ir do estado gasoso ao líquido e do líquido ao sólido.

Se isso for verdade, estaríamos na fase líquida e poderíamos cair na fase sólida. Quando muda a fase -por meio do surgimento de bolhas da fase nova na fase antiga-, muda toda a física e não sobra ninguém para contar essa história. Seria o fim do Universo, ao menos como o conhecemos hoje.

Antes de causar pânico total, algumas boas novas. Os cálculos indicando que a massa do Higgs é próxima da que causa a instabilidade baseiam-se na suposição de que nenhuma nova física (outras partículas ou forças) aparece até as energias vigentes perto do Big Bang. Possível, mas pouco provável. Também dependem de valores muito precisos das massas de certas partículas, que ainda contêm erros. Os mesmos cálculos indicam que o tempo para que o Universo mude para a nova fase é de bilhões de anos.

Resumindo, a possibilidade de transição existe, mas nada é conclusivo e, se ocorrer, deve demorar.
Na semana que vem, falarei com os físicos responsáveis pelo cálculo para ver se têm algo novo. Talvez eu mesmo adicione algo à conta, quem sabe ajudando a salvar o Universo.

A partícula profeta do apocalipse


O bóson de Higgs, às vezes chamado de 'partícula de Deus', tem o destino do Universo em suas mãos

Como se já não bastasse a confusão causada quando chamam o bóson de Higgs de "partícula de Deus", eis que, recentemente, a mesmíssima partícula voltou à berlinda, agora como profeta do fim.
Isso mesmo, leitores, o destino do Universo está nas mãos dessa partícula ou, mais precisamente, no valor de sua massa.

Tudo começa na cozinha, que é um excelente laboratório. Como sabemos, as propriedades de uma substância, como a água, dependem de sua temperatura: muito frio, a água congela; muito quente, evapora. Essas mudanças são conhecidas como transições de fase.

Surpreendentemente, o próprio Universo -ou a matéria nele-passou por ao menos uma ou duas transições de fase. E talvez possa passar por mais uma.

A história cósmica começa no Big Bang, que marca o início do tempo. Logo após o "bang", o espaço começou a crescer feito um balão, e a matéria nele se resfriou.

Voltando à cozinha, vemos que a expansão do Universo funciona como uma geladeira, fazendo a temperatura baixar. Será que a matéria cósmica também pode passar por uma transição de fase?
Sabemos que sim. Logo no início, a temperatura era tal que as partículas não tinham massa. A única que tinha era o Higgs, mas ele não interagia com as outras partículas.

Quando a temperatura foi baixando, o Higgs passou a interagir com as partículas com maior intensidade, dando-lhes massa. Esse processo é uma transição de fase que ocorreu quando o Cosmo tinha um trilionésimo de segundo.

Em julho do ano passado, cientistas do laboratório europeu de partículas Cern (onde estarei durante toda a semana -podem esperar algo para domingo que vem) descobriram uma partícula com toda a cara do Higgs.  Ainda não temos certeza se é o mesmo Higgs que dá massa para todo mundo, mas tudo indica que sim. O problema é a massa dele, que é entre 124 e 126 vezes maior do que a do próton.

Dependendo da massa do Higgs, o Universo pode passar por outra transição de fase, como a água, que pode ir do estado gasoso ao líquido e do líquido ao sólido.

Se isso for verdade, estaríamos na fase líquida e poderíamos cair na fase sólida. Quando muda a fase -por meio do surgimento de bolhas da fase nova na fase antiga-, muda toda a física e não sobra ninguém para contar essa história. Seria o fim do Universo, ao menos como o conhecemos hoje.

Antes de causar pânico total, algumas boas novas. Os cálculos indicando que a massa do Higgs é próxima da que causa a instabilidade baseiam-se na suposição de que nenhuma nova física (outras partículas ou forças) aparece até as energias vigentes perto do Big Bang. Possível, mas pouco provável. Também dependem de valores muito precisos das massas de certas partículas, que ainda contêm erros. Os mesmos cálculos indicam que o tempo para que o Universo mude para a nova fase é de bilhões de anos.

Resumindo, a possibilidade de transição existe, mas nada é conclusivo e, se ocorrer, deve demorar.
Na semana que vem, falarei com os físicos responsáveis pelo cálculo para ver se têm algo novo. Talvez eu mesmo adicione algo à conta, quem sabe ajudando a salvar o Universo.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Universo ou universo?

Vejam só como uma questão de ortografia esconde muito mais do que apenas escolhas estilísticas.

Basta pegar alguns livros de divulgação científica, ou reportagens aqui mesmo na Folha, e o leitor se depara com a palavra "universo" ora com letra minúscula, ora com maiúscula. Existe algo nada sutil aqui, e que diz muito sobre como pensamos sobre o Cosmo.

 A posição mais comum, e que considero a pior, é simplesmente adotar "universo" indiscriminadamente. Mas que Universo é esse? Segundo teorias da cosmologia moderna, temos de tomar cuidado com referências ao Cosmo. Há vários "universos" e uma distinção é essencial. Ancorando a discussão no que temos de mais sólido, nossas observações, sabemos que podemos apenas "enxergar" -isso é, obter informação- de uma parte limitada do Cosmo.

Isso, por dois motivos. Primeiro, nada viaja mais rápido do que a luz, o que significa que a informação demora para vir de longe até nós. Segundo, porque o Cosmo tem uma existência finita, começando 13,7 bilhões de anos atrás. Juntando as duas coisas, vemos que no máximo podemos saber sobre objetos que nos enviaram informação (através de luz e outros tipos de radiação eletromagnética) há 13,7 bilhões de anos.

E, como estrelas e galáxias só surgiram uns 200 milhões de anos após o "bang" inicial, o limite que temos é em torno de 13,5 bilhões de anos. O que existe além dessa fronteira -chamada de horizonte- nos é inacessível. Falamos, então, do "universo observável", aquele que podemos medir. Este, prefiro chamar de Universo, já que temos confiança na sua existência e somos parte dela.

Ele é tudo o que há no nosso horizonte e, considerando o fato de o Cosmo estar em expansão, está a 42 bilhões de anos-luz de distância. É a fronteira do conhecimento astronômico. Mas o Universo não termina necessariamente no limite do que podemos ver. Muito provavelmente se estende além da fronteira do mensurável. Meio como o mar, que se estende além do horizonte que vemos da praia: sabemos que existe mais mar além da linha do horizonte, mesmo se não podemos enxergá-lo da nossa posição.

A essa continuação do Cosmo além do visível e que, em princípio, não é tão diferente do que podemos ver dentro do nosso horizonte, chamo de universo. Não merece o "U" pois não sabemos ao certo se está lá e o que existe por lá. Podemos especular que as coisas além do horizonte não são muito diferentes daqui, mais galáxias e estrelas, mas não podemos ter certeza disso. Daí o "u". Porém, o universo contêm o Universo. 

Temos que continuar. Afinal, hoje se especula que o Universo não é único, mas parte de algo mais vasto, uma entidade que pode conter muitos universos chamada de "multiverso". Claro, não sabemos se o multiverso existe. Pior, parece ser impossível confirmar sua existência, visto que sua extensão está além do nosso Universo.

No máximo, como calcularam alguns colegas, podemos ter informação de colisões de nosso Universo com universos vizinhos, caso tenham ocorrido no passado. (Até agora, nada de muito conclusivo.) Mas saber de um vizinho ou dois não é o mesmo do que saber de um país inteiro. De concreto, temos apenas o nosso Universo, já repleto de mistérios.

domingo, 10 de fevereiro de 2013

O baile do outro lado da galáxia

Enquanto no Brasil a folia só cresce em meio ao calor e ao suor tropical, aqui no norte da Nova Inglaterra (EUA) acabamos de passar por uma gigantesca tempestade de neve que soterrou carros e plantas sob um espesso manto branco.

 "Coitados", dizem vocês, bebendo cerveja, seminus na praia ou na avenida, festejando esse hedonismo tão nosso. Ledo engano, digo eu e diriam muitos aqui se soubessem desse outro mundo que existe ao sul do Equador. Não sabem mesmo.

São mundos paralelos, separados por uma enorme barreira cultural e outra, maior ainda, geográfica. A internet vai longe, mas não deixa ninguém tocar na neve. "Coitados", não, pois a beleza e o jeito de viver adotam várias formas, e supor que uma é melhor do que outra é, no mínimo, presunção. As aulas aqui foram canceladas porque os ônibus escolares não conseguem atravessar as ruas já cobertas de neve. Para as crianças, nada mais paradisíaco do que passar o dia construindo bonecos de neve com os amigos da vizinhança e inventando batalhas contra monstros invisíveis.

Depois, é se aconchegar em frente à lareira tomando chocolate quente com marshmallow. Os risos são os mesmos lá e cá. Qual criança ou adulto não gosta disso? E do outro lado da galáxia, o que anda acontecendo? Será que as crianças estão no baile, fantasiadas de alienígenas? Ou na neve, fazendo monstros com dois braços, duas pernas e uma cabeça? Imagine que horror, seres bípedes em vez de rastejantes feito elas. Os monstros de uns são os ídolos de outros.

 São cerca de 200 bilhões de estrelas na Via Láctea, dos quais pelo menos 20% têm planetas girando à sua volta, feito o nosso Sol. Se existem planetas, existem também luas, provavelmente em número ainda maior. Pense que só Júpiter tem mais de 60. Imagine a noite por lá, com um monte de luas no céu. Quando vemos a diversidade da vida na Terra e a diversidade cultural da nossa própria espécie, adaptada a climas e situações geográficas tão diferentes, como não pensar no que pode estar ocorrendo neste momento em outro canto do Cosmo? Vendo tudo isso aqui, como imaginar que a vida é rara e, a vida inteligente, mais rara ainda?

 O mais razoável é imaginar o oposto, que a vida, tal como ocorre por aqui, está por toda parte: no fundo do mar, sob quilômetros de gelo, no alto das montanhas, no ar. Junte-se a isso o fato de as leis da física e da química serem as mesmas pelo Universo afora e fica difícil achar que somos exceção e não a regra. No entanto, muito provavelmente, somos, sim, a exceção. Ao contrário do que muitos de meus colegas pregam, mais por preconceito do que por evidência, o Universo não abriga a vida de braços abertos. Basta olhar para os outros planetas e luas à nossa volta para constatar que são mundos inóspitos, onde a vida não tem chance.

 Se houver alguma forma de vida, quem sabe no subsolo marciano ou nos oceanos gelados de Europa, será primitiva, longe da sofisticação que vemos aqui. Se existem outros seres inteligentes na galáxia, nada sabemos deles. Ficamos nós aqui neste oásis, quente no sul e gelado no norte, com crianças pulando nos bailes ou na neve, celebrando nossa raridade. No calor ou no frio, a festa é de todos nós.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Sonhos de um visionário

Johannes Kepler, um dos personagens mais fascinantes da ciência, é também o mais desconhecido entre os grandes 

Dos grandes patriarcas da ciência, Johannes Kepler (1571-1630) é o menos conhecido. Os feitos de Isaac Newton e da sua lei da gravidade (e das leis de movimento, da ótica e a criação do cálculo), de Galileu e de suas descobertas com o telescópio (e da lei da queda livre, do movimento pendular), e de Copérnico, o homem que pôs o Sol no centro do Sistema Solar, são conhecidos.

E o pobre do Kepler? Temos de coçar a cabeça, tentando lembrar do que fez. Eu bem que tentei ajudar, escrevendo um romance sobre a vida e obra dele: "A Harmonia do Mundo". Mas o que um romance pode fazer contra o mártir da ciência (Galileu), o maior gênio de todos os tempos (Newton, talvez) ou o impetuoso herói que mudou nossa percepção do Cosmo (Copérnico)?

 Temos de resgatar a obra de Kepler, sem dúvida um dos personagens mais fascinantes da história da ciência. Kepler descobriu as três leis do movimento planetário: planetas giram em torno do Sol em órbitas elípticas; a linha imaginária que os liga ao Sol varre áreas iguais em tempos iguais; e o quadrado do período da órbita do planeta está para o cubo da distância dele ao Sol. Escrito assim, parece mesmo meio sem graça.

Mas, como tudo na vida, o que importa é o contexto. Kepler foi o elo entre a Antiguidade e a Modernidade, um visionário que sonhava em demonstrar que o Cosmo, em sua ordem, era produto de uma mente divina versada nas leis da geometria. Para ele, fiel ao que pregavam Pitágoras e depois Platão, apenas através da matemática seria possível descrever a harmonia da criação.

A relação entre o homem e o Cosmo respondia às mesmas ressonâncias que ditavam a beleza da música e o arranjo das órbitas planetárias. Nisso, Kepler via uma unificação profunda no universo, expressa através das interações entre o tempo, o espaço e a alma humana. O homem era parte indissolúvel dessa ressonância cósmica.

Na juventude, Kepler buscou justificar a astrologia através de leis ligando o homem ao Cosmo, algo que despertou grande inquietude em sua vida. Se sua espiritualidade nos parece hoje um tanto inocente, vale lembrar que o sonho de uma harmonia universal o inspirou por toda a vida e foi o responsável pelas suas incríveis descobertas: as primeiras leis matemáticas da astronomia baseadas em dados observacionais.

 Kepler descobriu a elipse não porque a procurava, mas porque era a única curva consistente com os dados em que baseava seus estudos, obtidos pelo excêntrico nobre e astrônomo dinamarquês Tico Brahe. Nisto, mostrou sua incrível modernidade científica: se uma teoria está em conflito com dados, mude a teoria. O círculo, após reinar por milênios, finalmente caiu.

 Mesmo que sua busca por uma harmonia cósmica, o "mistério cosmográfico", fosse mais um devaneio do que ciência, ela representava a aspiração mais nobre do ser humano: transcender sua existência em busca de um saber eterno. Hoje identificamos essa mesma vertente em teorias de unificação da física, também fundadas em aspirações de uma harmonia universal, agora baseada em vibrações de cordas fundamentais: a nova harmonia do mundo.

Como Kepler, sonhar é preciso. Como Kepler, o sonho só serve se, ao acordarmos, entendermos melhor o mundo real.