domingo, 27 de dezembro de 1998

A física, o futebol e o anti-reducionismo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Uma questão que tem sido muito discutida, nem sempre amistosamente, entre cientistas, é a validade das leis fundamentais da natureza na descrição de fenômenos em escalas diferentes, do micro ao macro. Há dois pontos de vista principais; um, o reducionismo radical, afirma que, se entendermos o comportamento das menores entidades materiais do mundo, as partículas subatômicas, poderemos extrapolar esse conhecimento a outros níveis, dos átomos às estrelas. Ou seja, em sua versão mais radical, o reducionismo diz que o todo é a soma das partes -basta entendermos as leis fundamentais das interações entre as partículas para, nas palavras de Stephen Hawking, "compreendermos a mente de Deus".

Na prática, reducionistas sabem que é impossível fazer essa extrapolação -o estudo das interações entre os quarks e os elétrons não vai ajudar na compreensão do comportamento do átomo de urânio e muito menos na replicação de DNA. Para eles, a posição reducionista é filosófica, um manifesto do que acreditam ser o objetivo final da ciência, a descoberta das leis que regem o comportamento submicroscópico da matéria.

No outro campo, encontramos os críticos dessa posição, que, por falta de nome melhor, chamarei de anti-reducionistas. Um dos mais influentes é o físico Philip W. Anderson, dos EUA, vencedor do Prêmio Nobel e professor na Universidade de Princeton. Em um artigo escrito em 1972, Anderson afirmou que "mais é diferente", ou seja, que o comportamento de sistemas físicos com um número grande de elementos pode ser totalmente diferente daquele com poucos elementos; que novas leis podem ser necessárias para fenômenos com muitos elementos.

Ao aumentarmos o número de elementos em um sistema físico, aumentamos também as possibilidades de interação dos elementos entre si. Essas interações podem dar origem a comportamentos coletivos do sistema que não poderiam ter sido previstos analisando apenas as interações individuais dos elementos, ou seja, pelo reducionismo.

Vamos ao estádio do Morumbi num domingo assistir a um jogo Corinthians x São Paulo. Dezenas de milhares de pessoas, os elementos individuais, fazem parte de nosso "sistema físico", o público. Nosso objetivo é estudar o comportamento do público como um todo. Antes de os times entrarem em campo, o comportamento do sistema pode ser descrito aproximadamente por leis "locais", pelo comportamento de cada pessoa, ou grupo pequeno de pessoas; conversas entre vizinhos próximos, a compra de um cachorro-quente etc. Nesse caso, podemos descrever o comportamento do sistema por meio do método reducionista, já que não existem efeitos envolvendo vários elementos. O fenômeno coletivo "torcida" ainda não ocorreu.

Mas, quando os times entram em campo, o comportamento do sistema muda completamente; fogos de artifício, bandeiras multicoloridas e cantos das torcidas se misturam em uma grande confusão. Um observador conclui que a entrada dos times em campo é equivalente a uma grande perturbação energética no sistema. Após a excitação inicial, o observador percebe o aparecimento de movimentos coletivos, que envolvem um número muito grande de elementos. Movimentos caóticos, isto é, brigas, ou movimentos organizados, como a famosa "onda", uma perturbação coletiva que se propaga no sistema. O observador obtém novas leis para descrever o sistema, leis que explicam suas manifestações coletivas. Essas leis são "não-locais" e não-reducionistas. Uma nova "interação", chamada torcida, gera novos comportamentos coletivos.

Ambas as posições são importantes na descrição de fenômenos naturais. Tudo depende do foco das pesquisas. O debate surge quando defensores de uma posição criticam a outra. Aí o fenômeno "torcida" atua novamente, com todos os efeitos coletivos, às vezes mais agradáveis.

domingo, 20 de dezembro de 1998

El Niño, o regulador climático do planeta

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Já que esta é a última coluna antes do Natal, quero manter a tradição iniciada no ano passado, escrevendo algo que esteja relacionado com presentes. Em particular, também como no ano passado, com os presentes que nós vamos deixar para as gerações futuras.

Muitos ouviram falar no fenômeno climático conhecido por "El Niño". O nome foi criado pelos pescadores da costa peruana para representar o aquecimento das águas do Pacífico que se dá periodicamente em torno do Natal. Em espanhol, "El Niño" se refere ao menino Jesus, uma outra razão para a presente escolha do tópico.

Hoje em dia, o termo se refere ao aquecimento em larga escala que ocorre em todo o Pacífico tropical aproximadamente a cada quatro anos, alternando-se com uma fase de resfriamento, conhecida como "La Niña". Essas oscilações de temperatura do Pacífico tropical têm um impacto global no clima do planeta: O El Niño pode causar tanto tempestades e enchentes no Equador ou nos EUA quanto secas na Indonésia ou na Amazônia.

Nas últimas duas décadas, cientistas, estudando as variações climáticas do planeta, descobriram que o fenômeno El Niño não ocorre sozinho; as variações de temperatura no Pacífico estão acopladas a variações de pressão atmosférica, conhecidas como "oscilações sulinas".
Essas oscilações foram descobertas em 1923 pelo climatologista britânico Gilbert Walker, que estava tentando entender por que a estação chuvosa conhecida como monção deixa de ocorrer na Índia em certos anos. Walker mostrou que existiam padrões irregulares de oscilação da pressão sobre o Pacífico que se propagavam de leste a oeste. Essa é a direção oposta do aquecimento das águas oceânicas que ocorre durante o El Niño.

O aquecimento das águas que afeta os pescadores peruanos está ligado com a estação chuvosa na Índia e no Sudeste Asiático por meio da interação entre a dinâmica dos oceanos e da atmosfera. Esse acoplamento dos oceanos com a atmosfera é um exemplo perfeito de como certos problemas científicos requerem um tratamento que envolve vários componentes ao mesmo tempo.

Para que possamos entender as variações climáticas que afetam um determinado local, como a Amazônia, não basta estudarmos apenas aquela região isoladamente. Precisamos estudar como o contexto climático global pode afetar um determinado local. Em estudos climáticos, como talvez em nenhum outro estudo, a Terra aparece como uma entidade única, em que efeitos locais podem influenciar o comportamento global e vice-versa.

O fenômeno acoplado do El Niño com a Oscilação Sulina ocorre, historicamente, com uma frequência média de quatro anos. Portanto, nos últimos 12 ou 13 anos, em média, o fenômeno deve ter ocorrido em torno de três vezes. No entanto, ele ocorreu seis vezes desde 1984, o dobro do número esperado. Mais ainda, sua última ocorrência foi a mais dramática: enquanto normalmente a variação de temperatura é de 1C ou de 1,5 C, no ciclo de 97 a 98 a temperatura subiu 4C acima da média!

Não é à toa que todos dizem que o clima tem andado meio louco. O inverno passado foi extremamente ameno no Hemisfério Norte e, ao que tudo indica, o mesmo acontecerá este ano (a temperatura em New Hampshire, o Estado americano em que eu moro, tem estado 20C acima da média!). O que está havendo?

Os modelos climáticos indicam que o culpado por essas oscilações é o efeito estufa. Eu digo "indicam" porque nem todos os cientistas concordam com essas conclusões. As incertezas vêm das limitações dos computadores em realmente simular o clima da Terra em detalhe. De qualquer forma, os dados climáticos não mentem e estão diretamente acoplados com a quantidade de gases poluentes na atmosfera. Acho que neste Natal devemos mais uma vez refletir sobre o presente que estamos deixando para nossos filhos.

domingo, 13 de dezembro de 1998

Catedrais em busca do desconhecido

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

A história da humanidade é pontuada pela construção de monumentos que visam estabelecer uma ponte entre o nosso mundo e outros. Os egípcios criaram as pirâmides, mausoléus que asseguravam a continuidade da vida após a morte, ligando nosso mundo ao do além. Com olhos modernos, podemos até ver as pirâmides como uma espécie de espaçonave que levava as múmias em seus sarcófagos até sua destinação final, o outro mundo. Ao nos depararmos com a grandiosidade das pirâmides, logo perguntamos: "Como teria sido possível construir tais monumentos sem tecnologias avançadas?".

Na Idade Média, as belíssimas catedrais góticas também funcionavam como um veículo de transporte de nossa esfera para a esfera divina. A verticalidade da arquitetura gótica induzia as pessoas a olhar para o alto com respeito e temor, em um rito de passagem entre o nosso mundo, com suas atribulações, e o paraíso medieval cristão, com sua promessa de uma vida eterna e livre de transtornos.

Nos séculos 15 e 16, nossos monumentos de exploração de novos mundos ganharam uma nova dimensão: a capacidade de nos transportar fisicamente, e não só espiritualmente, aos nossos objetivos finais. Simbolicamente, as caravelas representavam uma peregrinação espiritual, uma ponte entre o nosso mundo e o mundo do além, se bem que, na prática, os objetivos econômicos eram mais óbvios. A exploração de novos mundos, espirituais ou não, sempre representou um passaporte para uma nova vida, com todas as promessas e expectativas de liberdade e conforto que fazem parte de qualquer peregrinação.

Após buscarmos a comunhão com Deus por meio de nossas catedrais e a promessa de paraísos terrestres em nossas caravelas, neste final de milênio nos lançamos ao espaço, nossa nova fronteira. Nossas catedrais são as espaçonaves, as pontes entre o nosso mundo e esse vasto Universo do qual fazemos parte.

No dia 4 de dezembro, a espaçonave americana Endeavour iniciou sua missão mais importante: sua carga era o segundo módulo de construção da Estação Espacial Internacional (ISS), um dos projetos de engenharia mais ambiciosos de todos os tempos. Transportado pela Endeavour, o módulo americano, chamado Unidade, uniu-se ao módulo russo Zaria (Aurora), que já estava em órbita.

Quando terminada, em 2004, a Estação Espacial terá uma área equivalente a um campo de futebol, com um volume de cerca de dois Boeing-747, orbitando a Terra a uma velocidade de 26 mil quilômetros por segundo. Essa catedral flutuante está sendo construída por 16 países e terá um custo total em torno de US$ 60 bilhões. Um projeto dessa grandeza e custo não pode evitar um número infinito de complicações técnicas, financeiras e políticas. Críticos afirmam que essa quantidade absurda de dinheiro poderia ter sido dividida entre inúmeros projetos menores, que provavelmente produziriam resultados científicos muito mais relevantes do que os experimentos que serão realizados na ISS. Em um mundo ideal, a pesquisa teria um orçamento maior, a torta cresceria para alimentar mais pessoas. Me pergunto se os arquitetos egípcios e medievais sofreram também esse tipo de pressão, quando o faraó ou o rei e bispos esvaziaram os cofres públicos para construir seus veículos de peregrinação.

A estação espacial poderá alojar uma tripulação de sete astronautas, cuja função incluirá não só experiências científicas, mas também o planejamento de expedições tripuladas para a Lua e para Marte, no início do próximo século. Tal como suas nobres antecessoras, ela será nossa ponte para outros mundos, nosso instrumento de exploração de novas realidades e aspirações. Posso até imaginar arqueólogos do século 23 se perguntando, maravilhados, como que um monumento dessa grandiosidade foi construído com a rudimentar tecnologia do século 20.

domingo, 6 de dezembro de 1998

O computador como laboratório, na teoria e na prática

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Em linhas gerais, podemos dividir os cientistas, especialmente aqueles dedicados às ciências físicas, em dois grandes grupos, os teóricos e os experimentais. Os teóricos são aqueles que se dedicam principalmente ao desenvolvimento de modelos e explicações matemáticas de fenômenos observados tanto no laboratório como fora dele. Em muitos casos, a linha divisória entre o que chamamos de ciência teórica ou experimental não é muito óbvia.

Por exemplo, alguns teóricos trabalhando em simulações numéricas em computadores crêem estar desenvolvendo "experimentos". Na maioria dos casos, esses experimentos numéricos não são vistos como experimentos "de verdade", especialmente por cientistas que realizam seus experimentos com equipamentos envolvendo tubos, eletrônica, refrigeração etc.
Até que ponto podemos fornecer dados para uma máquina de modo que ela possa simular situações que ocorrem na natureza, ou melhor ainda, capacitar a descoberta de novos fenômenos? Se perguntássemos a um cientista dos anos 40 se algum dia máquinas baseadas em cristais de germânio e silício e eletricidade poderiam servir de laboratório de pesquisas, ele ou ela certamente cairia na gargalhada: "Só em ficção científica!".

Mas, nos últimos 20 anos, poderosas estações de trabalho capazes de realizar milhões de operações por segundo tornaram ficção científica em realidade. No mundo inteiro, computadores são usados para simular, ou recriar, situações experimentais, permitindo uma análise muitas vezes bem mais simples do que no laboratório. O ambiente experimental criado pelo computador tem a grande vantagem de ser "limpo", ou seja, de ser controlado inteiramente pela pessoa que escreveu o programa. Não existem contaminações externas devido a vazamentos em tubulações, controle de temperatura limitado ou mau alinhamento de lasers. Mas, por outro lado, o computador só pode "criar" o que já está de certa forma incluído no programa.

Em 1994, eu estava interessado em estudar a longevidade das chamadas "bolhas subcríticas", pequenas concentrações de matéria que aparecem, por exemplo, quando um sistema físico muda de uma fase para outra, como água em sua fase gasosa se transformando em água em sua fase líquida devido a uma queda de temperatura. A "bolha", no caso, seria a gota de água líquida, formada no interior da fase gasosa. "Subcrítica" refere-se ao fato de que apenas bolhas acima de um certo tamanho crescem; as bolhas menores, subcríticas, desaparecem após certo tempo. A questão é quanto tempo.

Resolvi então escrever um programa para estudar a longevidade das bolhas subcríticas. Para minha surpresa, várias dessas bolhas sobreviviam por um período extremamente longo, muito mais longo do que qualquer um poderia esperar. Essas pequenas concentrações de matéria oscilam internamente, usando suas interações em uma luta furiosa pela sobrevivência. Batizei essas bolhas de "oscilons", devido a essa oscilação que lhes é peculiar. Dois anos mais tarde, pesquisadores da Universidade do Texas, em Austin, estavam estudando as propriedades de grãos que são submetidos a vibrações regulares. Eles descobriram certos padrões de oscilação localizados que também chamaram de oscilons! Os oscilons que foram simulados no computador e os oscilons que foram criados no laboratório exibem propriedades semelhantes, indicando que a física que está por trás de ambos os fenômenos é talvez a mesma (se bem que os detalhes dessa ligação ainda estão em aberto).

De certa forma, os oscilons já estavam dentro de meu programa, mesmo que eu não os houvesse "visto". O computador me permitiu descobrir algo que surpreendeu a mim e a meus colegas. Apesar disso, uma "descoberta" feita com computadores não é plenamente aceita pela comunidade científica até que ela seja comprovada por experimentos "de verdade", realizados no laboratório. Pelo menos por enquanto, o computador sugere, mas não confirma.

domingo, 29 de novembro de 1998

Partículas violam a reversibilidade do tempo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Imagine se você gravasse em vídeo as cenas de um amigo seu pulando um obstáculo. Quando, por brincadeira, você resolve passar o vídeo de trás para a frente, seus olhos mal podem acreditar no que vêem. A ordem dos fenômenos se repete exatamente de forma inversa à original.

Claro, se algum fenômeno desse tipo lhe ocorresse, você iria imediatamente atribuí-lo a uma força sobrenatural, que violaria as leis básicas da física. Esse tipo de fenômeno é chamado de violação da reversibilidade temporal, isto é, a história de trás para a frente é diferente da história original.

Felizmente, ao menos este colunista nunca presenciou tais fenômenos ocorrendo em escalas macroscópicas. Mas, no mundo das partículas subatômicas, fenômenos como esse não só podem acontecer como foram observados recentemente.

Em 12 de outubro, Dia da Criança no Brasil, um grupo de físicos trabalhando em um laboratório de física de altas energias, conhecido como Fermilab, perto de Chicago (EUA), anunciou a observação de violação da reversibilidade temporal em certas reações envolvendo partículas conhecidas como "kaons neutros". Resultados anteriores, de menor precisão, renderam o Prêmio Nobel de Física a James Cronin e a Val L. Fitch em 1980.

Para entendermos melhor a importância dessa descoberta, é bom lembrarmos que a matéria é feita de vários corpúsculos que chamamos de partículas elementares, como o elétron ou os quarks, que compõem os prótons e os nêutrons. Uma partícula é elementar quando ela não pode ser dividida em outras menores. Várias partículas são instáveis, ou seja, podem decair em outras. O nêutron, quando está livre do núcleo atômico, decai em alguns segundos. O próton, de acordo com as teorias atuais das partículas elementares, também pode decair, mas seu tempo de vida é extremamente grande, muito maior do que a idade do Universo.

Fora essas partículas mais conhecidas, centenas de outras são produzidas durante colisões sob altas energias em aceleradores como o do Fermilab. Basicamente, a enorme energia de movimento das partículas é transmutada em massa, ou seja, em novas partículas durante colisões. Essas partículas são como os fragmentos de uma explosão voando em todas as direções, sendo então estudadas por detectores de partículas. A maioria é instável e decai em frações infinitesimais de segundo. O kaon neutro é uma delas.

Os cientistas do Fermilab estudaram milhões de decaimentos do kaon, prestando atenção em um tipo especial, cujo decaimento resulta em dois pares de partículas, o elétron e sua antipartícula, o pósitron, e um píon com carga positiva e sua antipartícula com carga negativa. (A geração de matéria e antimatéria, ou partículas e suas antipartículas, é normal em física de altas energias. Apenas no mundo à nossa volta é que a antimatéria está ausente, um mistério intimamente ligado a essa descoberta.) O kaon neutro, sem carga elétrica, decai em dois pares de partículas cuja carga total é também zero, conforme dita a lei de conservação da carga elétrica.

Esse decaimento do kaon é extremamente raro, ocorrendo uma vez a cada 3 milhões de decaimentos. Mas o time do Fermilab conseguiu observar 1.800 decaimentos desse tipo. O resultado que choca os físicos é que 14% desses fenômenos violaram a reversibilidade temporal. O kaon decai como uma bomba: as quatro partículas voando em certas direções. Essas direções, quando invertidas como num filme passado de trás para frente, não correspondem ao previsto pela reversão temporal; as partículas aparecem "de cabeça para baixo". Essa assimetria está ligada a uma desigualdade que existe entre matéria e antimatéria. Como nós somos feitos de matéria, esse experimento poderá nos ajudar a desvendar um dos mistérios mais básicos da física, ligado à nossa própria origem.

domingo, 22 de novembro de 1998

A misteriosa irreversibilidade do tempo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Todos sabem que o tempo anda sempre avante, indiferente aos questionamentos humanos. Seres vivos nascem, crescem, envelhecem e morrem, nenhum momento jamais se repete, cada segundo que passa é menos um segundo que temos de vida. A passagem do tempo é um assunto meio deprimente, mas também fascinante. Perante o tempo, somos todos impotentes. Sua passagem é democrática e, ironicamente, rígida e inflexível.
Entre as ciências, a que se preocupa com questões sobre a passagem do tempo ou mesmo com sua definição é a física. A questão do que vem a ser o tempo está, claro, intimamente ligada ao estudo do movimento.

Tempo é um conceito fundamental na descrição das mudanças que ocorrem no mundo. Em um mundo sem nenhuma transformação, a idéia de tempo não é necessária; tudo é e será como sempre foi, de modo que mudança é uma idéia irrelevante. Em religião, fala-se em deuses ou em um Deus onipresente, eterno, para o qual a passagem do tempo não existe. Mas mudanças e transformações são características fundamentais do mundo à nossa volta, e seu estudo necessariamente nos força a pensar na natureza do tempo.

Em nível mais simples, a física clássica usa o tempo meramente para descrever movimento. Quando falamos em movimento, pensamos em velocidade e aceleração. Curiosamente, um movimento em linha reta com velocidade constante é equivalente à ausência de movimento. Esse conceito, que confunde muitos principiantes da física, é na verdade simples. Quando falamos em movimento, estamos supondo a observação de algum objeto que está se movendo em relação à nossa posição no espaço. Imagine dois carros, um a 40 km/h e outro a 60 km/h. Os passageiros em cada carro verão o outro carro se movimentar em relação ao seu carro; um a 20 km/h para a frente e o outro a 20 km/h para trás! (Qual é qual?)

Agora imagine que o carro a 40 km/h aumenta sua velocidade até 60 km/h. Com os carros na mesma velocidade, os passageiros não poderão detectar movimento olhando para o outro carro (claro, olhando para uma árvore ou outro objeto externo, fica fácil detectar movimento).
Outro exemplo é um avião, em vôo perfeitamente calmo, com todas as janelas fechadas. Mesmo que esteja se movendo a centenas de quilômetros por hora, os passageiros não perceberão nada. Mas qual a relação dessa discussão com o problema da passagem do tempo? O problema é que, na física, o tempo pode passar tanto para frente quanto para trás! No exemplo dos dois carros, o sentido do tempo é irrelevante. E isso é verdade tanto na física clássica quanto para movimentos ocorrendo no mundo dos átomos ou das partículas elementares, embora nesse caso existam exceções.

O movimento dos planetas em torno do Sol pode, em princípio, ir em qualquer sentido; se filmamos esse movimento, podemos passar o filme em qualquer direção sem sabermos qual é a justa. Como a física explica a óbvia irreversibilidade do tempo? A resposta, mesmo que não completamente satisfatória, está na segunda lei da termodinâmica, que afirma que a irreversibilidade de um sistema está relacionada com sua "entropia", uma medida de sua complexidade.

Em um sistema reversível, os elementos podem retraçar seus passos da situação final até a inicial. O problema complica quando os vários elementos interagem. Nesse caso, a probabilidade de que todos os elementos do sistema possam retraçar seus passos é muito pequena, quase zero; o sistema é irreversível, e o tempo flui em uma direção. Os caminhos que as moléculas de um ovo percorrem para se tornar uma omelete são muito complexos. Reverter uma omelete a um ovo é possível, mas improvável. A irreversibilidade do tempo está relacionada à complexidade do mundo. Resta entendermos por que todos os sistemas no Universo escolheram a mesma direção.

domingo, 15 de novembro de 1998

Levitação, um efeito quântico de grandes proporções

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Imagine se fôssemos capazes de flutuar no espaço, aqui mesmo na Terra. Idéias sobre a "antigravidade", uma força produzida para cancelar o efeito da força da gravidade, sempre foi um sonho de muitos cientistas, profissionais e amadores. E não só de cientistas. Recentemente, o líder de uma seita religiosa no Reino Unido ofereceu US$ 1,5 milhão para quem inventasse uma máquina capaz de levitá-lo em frente a sua congregação (claro, ele não contou seus planos para seus inocentes seguidores. Quem quiser mais detalhes, pode consultar o endereço http://www.sci.kun.nl/hfml. levitationpubres.html). Várias pessoas juram ter visto algum guru indiano levitar por meio do poder da mente.

Será que é possível criar uma força capaz de cancelar a atração gravitacional, de modo a fazer com que objetos macroscópicos possam mesmo levitar? Descartando a possibilidade de usarmos a força do pensamento, a resposta é surpreendente: sim. A idéia é usarmos a força magnética para contrabalançar a força gravitacional. Nós sabemos que um ímã comum pode levantar facilmente um pedaço de ferro. Mas note que, assim que aproximamos o ímã do metal, o metal voa diretamente até o imã, ou seja, ele não levita. Mais ainda, pouquíssimos materiais são magnéticos como ferro ou níquel. A maioria é um bilhão de vezes menos magnética do que esses metais. Como, então, levitar um sapo, ou um ovo?

A resposta é encontrada na mecânica quântica, a parte da física que estuda o comportamento dos átomos ou de sistemas subatômicos. Numa aproximação bem simples, podemos imaginar o átomo como um minissistema solar, em que os elétrons viajam em órbitas ao redor do núcleo. Essas órbitas são concêntricas e os elétrons podem "pular" entre órbitas distintas Äo "salto quântico". Na presença de um campo magnético, os elétrons sofrem um reajustamento em suas órbitas e passam a funcionar como um material "diamagnético", que apresenta um pequeno campo magnético. Macroscopicamente, a substância passa a funcionar como um ímã, embora um ímã bastante fraco.

Apesar de o diamagnetismo ter sido descoberto em 1846 pelo grande físico inglês Michael Faraday, ninguém imaginou que o fenômeno fosse ter alguma relevância ou aplicação. Quanto à idéia de levitação, outro grande físico britânico, Lord Kelvin (William Thomson), disse: "Será provavelmente impossível observar esse fenômeno, devido à dificuldade de encontrarmos um magneto forte o suficiente (para induzir o diamagnetismo forte) ou uma substância diamagnética leve o suficiente, já que as forças magnéticas são muito fracas".

É possível mostrar que os campos magnéticos necessários para levitar objetos de dimensões relativamente pequenas, como uma amêndoa ou um sapo, têm uma intensidade apenas cem vezes maior do que um desses ímãs que usamos para pendurar recados na porta da geladeira. Mesmo que não seja possível fazer esses experimentos em casa (ainda), em um laboratório é possível adquirir o equipamento necessário por aproximadamente US$ 100 mil, soma razoável para testes nas ciências naturais.

Um grupo da Holanda conseguiu de fato levitar amêndoas, sapos, líquidos, fatias de pizza e outros objetos com alguns centímetros de diâmetro. Esses experimentos permitem simular um ambiente de "microgravidade" semelhante ao encontrado por astronautas no espaço. (Imagino que o astronauta americano John Glenn, 77, que voltou ao espaço recentemente, tenha achado a microgravidade um tanto incômoda.) Portanto, podemos estudar como plantas ou cristais cresceriam no espaço sem sairmos do laboratório, o que pode ser útil para projetos de exploração do sistema solar e mais além.

E a levitação de pessoas? Infelizmente, as tecnologias mais avançadas permitem apenas levitar um objeto com no máximo 15 centímetros. Mas, no futuro, quem sabe?

domingo, 8 de novembro de 1998

A importância do imperfeito na arte e na ciência

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

O conceito de perfeição é algo que guia muitas de nossas aspirações, tanto em nossas vidas privadas como no ambiente profissional. Falamos, ou ouvimos falar, de "relações perfeitas" entre duas pessoas como um modelo a ser seguido, ou de almejar sempre a perfeição no trabalho, "quanto mais perfeito, mais eficiente", etc. Na religião, aprendemos que nosso objetivo é chegar ao paraíso, lar da perfeição absoluta, final de jornada para aqueles que, se não conseguiram atingir a perfeição em vida, pelo menos tentaram. E, claro, o belo e o perfeito em geral andam de mãos dadas.

Como não poderia deixar de ser, muito da criatividade humana, nas artes ou nas ciências, é inspirado pelo ideal de perfeição. Mas nem tudo. Pelo contrário, várias idéias que revolucionaram nossa produção artística e científica vêm justamente da exaltação ou da percepção da importância do imperfeito.

O leitor pode pensar que estou enlouquecendo ou que acordei de mau humor. Mas não é por aí. Nas artes, exemplos do rompimento com a busca pela perfeição são fáceis de encontrar; de certa forma, quase toda a pintura moderna é ou foi baseada nesse esforço de explorar o imperfeito. Isso não significa que o imperfeito não seja belo. Por exemplo, quem já apreciou um quadro de Monet, em particular aqueles inspirados por seus jardins em Giverny, sabe que existe muita beleza no imperfeito. Talvez possamos até dizer que a pintura moderna tem como objetivo encontrar a estética do imperfeito. O mesmo com a música atonal ou esculturas abstratas. Hoje, o imperfeito é muito mais inspirador do que o perfeito.

Na física moderna, o imperfeito ocupa um lugar de honra. De fato, caso a natureza fosse perfeita, o Universo seria um lugar muito sem graça. Do microcosmo das partículas elementares da matéria ao macrocosmo das galáxias e mesmo do Universo, imperfeição é fundamental. Isso não significa que a idéia de imperfeição, ou matematicamente, de simetria exata, não seja importante na construção de nossas teorias. Sem a menor dúvida, o fato de muitos sistemas apresentarem um alto grau de simetria é fundamental para seu estudo. Por exemplo, a estrutura hexagonal dos flocos de neve é uma manifestação macroscópica de simetrias que existem em nível molecular. Mas, ao mesmo tempo, dois flocos de neve jamais serão iguais. A natureza cria uma variação sem fim em torno de um mesmo tema, ou simetria.

Segundo nossas teorias atuais, a geração de estruturas complexas a partir de componentes simples é um processo que depende fundamentalmente de alguma imperfeição. De modo geral, a coisa funciona assim: primeiro, construímos um modelo que exibe um altíssimo grau de simetria. Por exemplo, esse modelo pode descrever como as partículas elementares da matéria interagem entre si a energias muito altas, mais altas do que as que podemos simular em experimentos. Como consequência dessa simetria, o modelo exibe certas propriedades. A teoria da grande unificação diz que, em energias muito altas, as forças nucleares forte e fraca são unificadas com a força eletromagnética. A unificação das forças é consequência das simetrias exibidas com as interações das partículas com essas energias.

O segundo passo é dizer que a simetria é quebrada em energias mais baixas. Ou seja, em energia mais baixa, as forças forte, fraca e eletromagnética não se comportam mais de modo unificado ou simétrico. Em particular, esse é o caso das energias em que vivemos, em nossa realidade assimétrica. Durante a história do Universo, houve várias quebras de simetria. Como produto dessas imperfeições, apareceram as massas dos elétrons, prótons e nêutrons, as partículas que constituem a matéria. Vários outros "fósseis" das imperfeições cósmicas foram propostos nos últimos 20 anos. Cada vez fica mais claro que, a nova ciência, como a nova arte, precisa do imperfeito para criar.

domingo, 1 de novembro de 1998

O gene egoísta e a indiferença da natureza

MARCELO GLEISER
especial pata a Folha

Eu me lembro do choque e irritação que sentia, quando criança, ao assistir a esses documentários sobre a violência do mundo animal; batalhas mortais entre escorpiões e aranhas, ou centenas de formigas devorando um lagarto ainda vivo, ou baleias assassinas atacando focas e pinguins, ou leões atacando antílopes etc. E, para finalizar, apareciam as detestáveis hienas, "rindo" enquanto comiam os restos de algum pobre animal.

Como que a natureza pode ser assim tão cruel e insensível, indiferente a tanta dor e sofrimento? (Eu vou me abster de falar da dor e sofrimento que a espécie dominante do planeta, supostamente a de maior sofisticação, cria não só nos animais, mas também em si própria. Bem, acho que já falei.) Certos exemplos são particularmente horríveis: existe uma espécie de vespa cuja fêmea deposita seus ovos dentro de lagartas. Ela paralisa a lagarta com seu veneno, e, quando os ovos chocam, as larvas podem se alimentar das entranhas da lagarta, que assiste viva ao martírio de ser devorada de dentro para fora.

A resposta é que a natureza não tem nada a dizer sobre compaixão ou ética de comportamento. Por trás dessas ações assassinas se esconde um motivo simples: a preservação de uma determinada espécie por meio da sobrevivência e transmissão de seu material genético para futuras gerações. Portanto, para entendermos as intenções da vespa ou do leão, temos de esquecer qualquer tipo de julgamento que possamos fazer com relação à "humanidade" desses atos (aliás, não é à toa que a palavra "humano", quando usada como adjetivo, expressa o que chamaríamos de comportamento decente. Parece que isentamos o resto do mundo animal desse comportamento, embora seja óbvio o quanto é fácil para nós nos unirmos aos animais em nossas ações "desumanas").

O gene é um grande egoísta. O zoólogo e escritor inglês Richard Dawkins, um dos grandes divulgadores de ciência para o público não-especializado, usa frequentemente esse termo "gene egoísta", inclusive como título de um de seus livros. A idéia é que a preservação (pela sobrevivência do animal) e a transmissão (pela geração de uma prole) de DNA -material genético dos seres vivos- explicam vários "mistérios" do mundo natural, incluindo a sua aparente crueldade, que tanto nos choca nos documentários de TV.

Por exemplo, a plumagem às vezes excessiva nos machos de algumas espécies de pássaros, como o pavão, ou as complicadas e elaboradas danças de acasalamento de outras podem ser explicadas pelo egoísmo dos genes; o macho com melhor plumagem, o melhor dançarino ou o melhor cantor são, aos olhos da fêmea, os portadores dos genes mais saudáveis e, portanto, uma melhor escolha para o acasalamento. E quanto mais saudáveis os pais, mais saudáveis serão seus descendentes.

Como podemos ter certeza, ou ao menos defender, esse tipo de argumento? Um dos métodos é conhecido como "engenharia ao reverso": Ao analisarmos um par de predador e presa, como o leão e o antílope, vemos que ambos são equipados para cumprir suas missões; o leão, com suas garras, dentes e músculos, para perseguir, atacar e matar o antílope; o antílope, para escapar o mais rapidamente possível do leão. O equilíbrio é alcançado à medida que os números de animais das duas espécies vai se autocontrolando. Sem leões, as savanas africanas estariam abarrotadas de antílopes, e, sem antílopes, os leões morreriam de fome (claro, estou simplificando o sistema predador-presa para exemplificar o argumento).

Segundo esse prisma, a idéia de compaixão é puramente humana. Predadores não têm a menor culpa de matar suas presas, pois sua sobrevivência e a de sua espécie dependem dessa atividade. E na mesma espécie? Para propagar seu DNA, machos podem lutar até a morte por uma fêmea ou pela liderança do grupo. Mas aqui poderíamos falar também da espécie humana, não?

domingo, 25 de outubro de 1998

A busca da ciência pelas regras do xadrez cósmico

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Em 1789, o grande químico francês Antoine Laurent Lavoisier formulou sua famosa lei de conservação de matéria: "Nós devemos aceitar como um axioma incontestável que em todas as operações da natureza e da arte nada é criado; uma quantidade igual de matéria existe antes e depois do experimento". Tragicamente, Lavoisier foi decapitado aos 50 anos, por ter trabalhado como inspetor de impostos para o "ancien regime". Um apelo para salvar sua vida foi respondido com as infames palavras "La Republique n'a pas besoin de savants" (a República não precisa de cientistas).

A lei descoberta por Lavoisier expressa o caráter dinâmico da natureza, das transformações de elementos químicos entre si, de gases em líquidos, líquidos em sólidos ou, em nível subatômico, de partículas em outras partículas, em que a lei de conservação da massa é generalizada para a lei de conservação de energia e de momento, ou quantidade de movimento. O interessante é que uma lei que expressa as transformações na natureza é baseada em uma constante, no caso a quantidade total de massa.

Leis como essa são fundamentais para a descrição científica do mundo. De certa forma, podemos reduzir o trabalho do cientista, em particular do físico, em duas missões principais: primeiro, a busca por essas "leis de conservação", ou, mais ambiciosamente, leis naturais. Segundo, a aplicação dessas leis na descrição do maior número possível de sistemas encontrados no mundo, das partículas subatômicas aos aglomerados de galáxias ou ao Universo.

A propriedade mais importante dessas leis é sua universalidade. As leis da natureza são válidas em qualquer instante do tempo e em qualquer lugar do Universo (ou quase -talvez exceções existam no interior de buracos negros ou em situações muito exóticas). Elas fazem parte da linguagem universal da ciência, as regras com que explicamos a arquitetura e o funcionamento do mundo à nossa volta.

O físico norte-americano Richard Feynman ilustrou da seguinte forma essa busca pelas leis naturais: "Imagine que o mundo seja uma gigantesca partida de xadrez sendo disputada pelos deuses, e que nós fazemos parte da audiência. Não sabemos quais são as regras do jogo; podemos apenas observar o seu desenrolar. Em princípio, se observarmos por tempo suficiente, descobriremos algumas regras. As regras do jogo é o que chamamos de física fundamental".
Claro, a descoberta dessas regras e sua universalidade são alvo de constante verificação. Como podemos saber se a conservação de energia é válida em outros pontos do Universo, como a galáxia de Andrômeda, ou no interior do núcleo atômico? A resposta está na observação de fenômenos físicos nesses sistemas, que confirmem a validade de nossas leis.

Mas existem duas outras razões, fora seu absoluto sucesso até o momento, para nossa certeza de que essas leis naturais sejam o modo correto de se estudar o mundo: sua belíssima simplicidade e sua conexão com a simetria. A importância de uma determinada lei pode quase que ser medida pela sua simplicidade e pelo número de fenômenos que ela descreve; se duas leis descrevem adequadamente um determinado número de fenômenos, a mais simples é sempre a escolhida, um critério conhecido como "A Navalha de Occam", proposto em torno de 1320 pelo grande filósofo e teólogo inglês William de Occam. A relação entre leis de conservação e simetrias fica para uma outra coluna.

Mas qual é a origem dessas leis naturais? Por que o Universo funciona dessa forma, por meio de leis básicas e não de outra maneira? A ciência, pelo menos até o momento, não se propõe a explicar a origem de suas próprias leis, adotando uma postura descritiva: nós explicamos o mundo com essas leis, que são descobertas a partir de experimentos e observações. Se elas são ou não as regras do "xadrez divino", isso fica por conta de cada um.

domingo, 18 de outubro de 1998

A imaginação pré-socrática e a origem da ciência

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Aristóteles disse, inspirado por seu mestre Platão, que certas idéias tendem a reaparecer de tempos em tempos, que nós estamos fadados a redescobri-las devido ao seu incrível poder de sedução intelectual. O grande escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), em seu conto "O Imortal", explora justamente esse tema, o da criação do novo a partir da memória do velho. Criação passa a ser recriação; descoberta, redescoberta.

É como se a mente fosse um grande baú cheio de brinquedos, e nós fôssemos uma criança que, deslumbrada com tantos brinquedos, escolhe um para brincar, mas logo se cansa, jogando-o de volta no baú, para que uma outra criança o descubra no futuro. Nos olhos de cada criança, o mesmo brinquedo é sempre uma grande novidade.

Claro, às vezes algo de realmente novo e inédito aparece no panorama das idéias, um brinquedo novo no baú que vira foco de grande atenção durante um tempo, mas que aos poucos vai sendo posto de lado, pronto para ser redescoberto mais adiante. Levando essa analogia um pouco mais além, nossa mente é como um baú, que pode crescer para acomodar sempre mais brinquedos. Mas, como todos nós sabemos, alguns brinquedos, mesmo que velhos, serão sempre nossos favoritos.

Quando nos perguntamos de onde vieram as primeiras idéias filosóficas, as sementes do pensamento moderno ocidental, não temos a menor dúvida da resposta: da Grécia Antiga, em particular do período entre os séculos 4 a.C. e 6 a.C. O início dessa aventura intelectual é marcado pelo aparecimento dos filósofos pré-socráticos, que, segundo sabemos, foram os primeiros a tentar responder questões sobre a natureza usando a razão e não a mitologia ou a religião.

Esse apetite pelo saber racional, motivado pelo mesmo senso de mistério que motiva o pensamento religioso, está na raiz de toda a ciência. Às vezes ele é chamado de "encantamento jônico", celebrando os primeiro filósofos pré-socráticos que habitaram a Jônia, província grega na costa oeste da atual Turquia. Segundo Aristóteles, o primeiro deles foi Tales, que postulou, em uma visão profundamente orgânica da natureza, que a substância fundamental do cosmo é a água. Com esse esforço, nasce a idéia de se buscar por uma estrutura material unificada no mundo, algo que motiva o trabalho de cientistas em várias áreas distintas, da física de partículas elementares à biologia molecular e genética.

Para Tales e seus discípulos, a natureza é uma entidade dinâmica, em constante transformação, se renovando indefinidamente em novas formas e criações. Essa visão foi criticada por uma outra escola pré-socrática, a escola fundada por Parmênides, que acreditava exatamente no oposto: o que é essencial não pode se transformar. O que "é" simplesmente é. Nós podemos detectar aqui o germe da idéia de uma entidade eterna, transcendente, que está além das transformações naturais, que são necessariamente menos fundamentais. O debate entre o eterno e o novo, o Ser e o Vir-a-Ser, já havia começado então, há 2.500 anos. Ou, quem sabe, até antes disso. Pois esses são dois de nossos brinquedos preferidos.

A esse debate, podemos juntar a tradição pitagórica, que unia de forma mística o estudo da natureza por meio da razão e da espiritualidade. Para os pitagóricos, sem dúvida embriagados pelo encantamento jônico, os números eram mais do que números, suas razões e proporções uma espécie de escrita simbólica da razão universal. O estudo da natureza por meio dos números era o estudo dessa razão, o motivo mais nobre de dedicação do filósofo. Hoje, pouco resta de concreto dessas antigas tradições intelectuais. Mas, se os vários detalhes foram apagados pelo tempo, sua essência continua a nos inspirar, brilhando sempre um pouco mais do que os outros brinquedos no vasto baú da criatividade humana.

domingo, 11 de outubro de 1998

"Estrelomotos" e a nossa vizinhança cósmica

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Durante a noite do dia 27 de agosto, sete satélites de comunicação entraram misteriosamente em alerta vermelho: seus aparelhos foram desligados pelo computador central do satélite para que fossem protegidos de uma enorme onda de radiação eletromagnética, na sua maior parte de raios X. Rádios e telecomunicações na Terra, entre o Havaí e o Colorado, nos EUA, foram interrompidos ou sofreram forte interferência durante cinco minutos.

Cientistas especializados na ionosfera, a camada da atmosfera que é repleta de gases ionizados pela radiação ultravioleta proveniente do Sol, mediram que, durante a interrupção, a ionosfera baixou de sua altitude noturna, de aproximadamente 18 mil metros, até sua altitude diurna, de cerca de 12 mil metros.

Os leitores que são fãs do rádio sabem que à noite é possível receber transmissões de fontes mais distantes; isso porque a ionosfera é usada como uma espécie de espelho para refletir ondas de rádio de um ponto a outro na Terra. Portanto, quanto mais alta a ionosfera, mais longe as ondas podem viajar, explicando por que à noite as transmissões mais longas são mais eficientes. Que fenômeno pode ter causado o abaixamento da altitude da ionosfera em apenas uma porção da superfície terrestre?

Após um mês de muita pesquisa e especulação, foi achado o culpado da misteriosa interferência: uma estrela de nêutrons, localizada a 20 mil anos-luz da Terra, sofreu o que astrofísicos chamam de um "estrelomoto", uma espécie de terremoto extremamente violento, que rearranja a superfície da estrela. Estrelas de nêutrons são objetos muito exóticos, basicamente núcleos atômicos gigantes, com diâmetros em torno de 10 km e massas comparáveis à do Sol. Essa grande quantidade de matéria em um volume tão pequeno significa que a matéria que compõe a estrela de nêutrons é extremamente densa: uma colher de sopa pesa mais do que um Boeing-747, o famoso "Jumbo"!

Mas essa enorme densidade de matéria é apenas uma das várias excentricidades das estrelas de nêutrons. Como o nome já diz, elas são compostas principalmente de nêutrons, as partículas que, juntamente com os prótons, compõem os núcleos atômicos. Como a maioria dos objetos no espaço, estrelas de nêutrons também giram em torno de seus eixos. Mas, ao contrário da Terra, que completa uma rotação por dia, elas podem completar uma volta em menos de um segundo. Em certos casos, até em um milésimo de segundo! Imagine uma bola com 10 km de diâmetro, pesando tanto quanto o Sol, feita de nêutrons e girando mil vezes por segundo...

A matéria que compõe a estrela de nêutrons gera também fortíssimos campos magnéticos. A Terra também tem seu campo magnético, que usamos para nos orientar com nossas bússolas. Mas ele não se compara aos campos magnéticos encontrados em estrelas de nêutrons. Com a rotação da estrela, o campo magnético também gira, criando pulsos de radiação em uma direção fixa. Poeticamente, as estrelas de nêutrons são muitas vezes chamadas de "faróis cósmicos", seus feixes de radiação varrendo o cosmo como os faróis varrem os oceanos, alertando os marinheiros para a presença de rochedos.

Bem, há 20 mil anos a estrela de nêutrons conhecida como SGR-1900+14 sofreu um violentíssimo "estrelomoto", que provocou uma perturbação em seu campo magnético. Esse evento causou a produção de uma enorme quantidade de raios X e raios gama, que viajaram durante 20 mil anos pelo espaço, até atingir nossa ionosfera no dia 27 de agosto passado. Felizmente, ao chegarem, os raios X eram pouco intensos, comparáveis com os de um dentista. Mas o fenômeno mostrou pela primeira vez como eventos fora de nosso sistema solar podem afetar as condições ambientais aqui na Terra. As fronteiras de nossa vizinhança cósmica se estendem por uma distância muito maior do que imaginamos.

sábado, 3 de outubro de 1998

Do nariz de Tycho Brahe aos raios X do Universo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

O grande astrônomo dinamarquês Tycho Brahe tinha grandes problemas com seu nariz. Na verdade, seus problemas não eram pelo nariz, mas por sua falta; um golpe da espada de seu primo em um duelo levou-lhe a maior parte do nariz. Como não ter nariz não era aceitável para a corte dinamarquesa, ele moldou um a partir de uma amálgama metálica, cuja composição ele variava de tempos em tempos em seu laboratório.

Aparentemente, Tycho sofria muito com seu nariz; não só a visão de uma pessoa com um nariz metálico era, mesmo no século 16, bastante aterrorizante, como o contato da amálgama com a pele era muito desconfortável. Daí que Tycho procurava continuamente por uma fórmula mais suave para seu rosto. Na noite de 11 de novembro de 1572, quando voltava de seu laboratório alquímico, Tycho viu algo inesperado: aparentemente, uma nova estrela surgira na constelação de Cassiopéia, que tem a forma de um "W" (ou talvez um "M", dependendo do ângulo e da pessoa que a observa).

Na época, a idéia de que uma nova estrela poderia surgir nos céus era absurda. De acordo com a filosofia aristotélica, que ainda dominava o meio acadêmico, os céus eram imutáveis, qualquer transformação sendo relegada à esfera abaixo da órbita lunar. Ora, como uma estrela poderia então surgir do nada? Tycho demonstrou que a "estrela nova" estava muito além da órbita lunar. Mais ainda, essa "estrela" era especial, pois era visível até durante o dia! Ele acompanhou a estrela durante os quatro meses em que ela permaneceu visível a olho nu. (O telescópio só foi usado metodicamente em astronomia a partir de 1609).

Tycho havia observado uma explosão de supernova, o evento que marca a "morte" de estrelas com massas consideravelmente maiores do que a massa do Sol. Suas observações contribuíram para a lenta demolição do edifício aristotélico, abrindo as portas para uma nova astronomia, em que mudanças caracterizam não só os objetos celestes, de planetas a galáxias, mas o próprio Universo. Essa visão dinâmica se deve principalmente à existência de instrumentos cada vez mais poderosos, que permitiram observar fenômenos celestes a distâncias cada vez maiores e com precisão também maior. Essa corrida por visões cada vez mais distantes e precisas é uma busca sem fim, uma metáfora da nossa curiosidade em conhecer as esquinas mais reclusas do Universo que habitamos.

Recentemente, a Nasa, agência espacial dos EUA, lançou um poderoso telescópio, cuja órbita chega a distâncias até 1/3 da distância entre a Terra e a Lua. Esse telescópio difere dos telescópios orbitais, como o Hubble, pois ele não "vê" o Universo dentro de seu espectro visível; conhecido como "Chandra" -em homenagem ao astrofísico indiano Subrahmanyan Chandrasekhar (realmente, não dava para usar o nome inteiro), cujas contribuições foram fundamentais para a compreensão dos processos que determinam a estrutura e o colapso de uma estrela-, esse telescópio produz imagens em raios X, revelando processos que são invisíveis a olho nu.

Posso imaginar a alegria de Tycho Brahe, hoje na parte do Paraíso reservada aos grandes astrônomos, ao saber que a primeira imagem do Chandra foi também de uma supernova em Cassiopéia (não a mesma). E os resultados não poderiam ter sido melhores; as imagens revelam as ondas de material expelido durante a explosão, hoje viajando a velocidades de cerca de 15 milhões de quilômetros por hora. A propagação das ondas mostra como a matéria se espalha pelo espaço interestelar, que é o mecanismo aceito hoje para explicar a distribuição de elementos químicos na galáxia; os mais pesados são produzidos nos momentos finais do colapso que marca o fim da estrela, sendo então distribuídos pelo espaço. O ditado que afirma sermos poeira das estrelas é perfeitamente correto. Inclusive o nariz metálico de Tycho.

quinta-feira, 1 de outubro de 1998

Velocidade da informação desafia educação moderna

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Nós vivemos em um mundo cada vez mais globalizado, numa era onde as pessoas são atacadas por todos os lados com uma quantidade enorme de informação. As barreiras entre os povos e as culturas são constantemente perfuradas (mas quase nunca vencidas) pela força da mídia e do consumismo desenfreado. Hoje em dia, nada mais comum do que vermos um beduíno em seu camelo, com sua calça Levis e óculos Giorgio Armani, entoando uma canção de Elton John. Na testa do camelo, em árabe, vemos a escrita "Lady Di, nós te amamos".

OK, talvez eu esteja exagerando um pouco. Mas, sem dúvida, é indiscutível a importância que o controle dos meios de informação têm na sociedade moderna. E o mais impressionante é a velocidade com que essa informação é disseminada. Bilhões de pessoas em todo o mundo assistiram à final da Copa (infelizmente), e várias centenas de milhões participam rotineiramente de guerras ou da humilhação de presidentes, sentados confortavelmente em suas salas de estar.

Parece mentira que foi apenas em 1886 que as primeiras ondas de rádio foram geradas no laboratório pelo grande físico alemão Heinrich Hertz, ou que a primeira transmissão telegráfica através do oceano Atlântico foi enviada em 1901 pelo italiano Guglielmo Marconi. Atualmente, a disseminação de informação conta com toda uma rede de satélites, que, juntamente com incontáveis antenas de transmissão, cobrem praticamente toda a superfície do planeta.

Essa globalização da informação implica necessariamente a detenção do poder pelas pessoas com acesso, ou, mais ainda, pelas pessoas que criam e disseminam essa informação. Lembro-me do recente filme americano "Mera Coincidência" ("Wag the Dog"), em que um "tycoon" de Hollywood é chamado para desviar a atenção do público americano dos escândalos sexuais do presidente durante a campanha eleitoral (bastante profético, aliás, esse filme...). A solução dos produtores foi simples: inventar uma guerra em um país remoto para sensibilizar a opinião pública.

Informação é poder. E, sem educação, não é possível ter acesso à informação. Mas, simples acesso à informação não é tudo. É necessário que saibamos refletir ativamente sobre a informação recebida, e não só recebê-la passivamente. Caso contrário, podemos nos tornar alvo de uma "realidade fabricada", como aquela apresentada comicamente no filme.

Daí o papel do educador, não só de transmitir informação, mas também de convidar sua audiência à reflexão, ensinando tanto os métodos necessários para tal como também a arte de duvidar. Educação é um processo de colaboração ativa entre o educador e sua audiência. Na minha opinião, o educador mais bem-sucedido é aquele que desperta em sua audiência o desejo de querer sempre aprender mais e a capacidade de criticar racionalmente aquilo que se está aprendendo. Sob esse prisma, a educação moderna pode não só se beneficiar do fácil acesso à informação, como também "filtrar" a desinformação.

A globalização da informação provoca uma fragilidade em sua própria audiência. Nós nos tornamos alvo em uma galeria de tiro e só podemos nos safar se soubermos pensar por nós mesmos. Uma sociedade educada é a que poderá tomar decisões que afetam seu futuro de modo coerente. Eis aqui alguns exemplos, ligados à educação científica. Devemos ou não interceder nas pesquisas da engenharia genética, que, com o desenvolvimento de processos de clonagem ou de cirurgia genética em fetos, levanta sérias questões éticas para a sociedade? Devemos ou não apoiar o desenvolvimento de tecnologias nucleares no espaço? Devemos ou não interceder junto ao governo para um maior controle da emissão de gases industriais, de modo a evitar graves mudanças climáticas no futuro? E os asteróides? Vão cair ou não em nossas cabeças?


Marcelo Gleiser é professor de física teórica do

domingo, 27 de setembro de 1998

Em defesa do Big Bang

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Quando dou palestras sobre o Big Bang, uma das perguntas mais comuns é: "Mas como vocês podem saber se esse modelo está certo? Que provas existem?". Por incrível que pareça, não é só o público não-especializado que faz essa pergunta. Mesmo entre físicos a cosmologia é vista com uma certa suspeita.

Há razões para esse ceticismo. A história da cosmologia moderna é marcada por episódios que sem dúvida contribuíram para levantar as suspeitas. Um dos mais famosos aconteceu logo no início dessa disciplina. Em 1929, o astrônomo americano Edwin Hubble descobriu que o Universo está em expansão. Essa incrível descoberta é baseada em um efeito muito familiar, chamado de efeito Doppler. Quando uma fonte de som se aproxima, como uma sirene ou buzina, notamos que o tom sobe para frequências mais agudas; quando ela se afasta, o tom desce para frequências mais graves.

Esse fenômeno não é apenas típico de ondas de som. O mesmo ocorre para ondas de luz. Quando uma fonte luminosa se afasta, sua cor se desloca para o vermelho, que tem menor frequência; quando ela se aproxima, sua cor se desloca para o azul. Hubble percebeu que a luz de galáxias distantes se deslocava para o vermelho. Ele concluiu que as galáxias estão se afastando de nós, devido à expansão do Universo. Uma imagem muito usada é a de um balão com pontos pretos pintados em sua superfície. Quando o balão expande, os pontos se afastam uns dos outros. O mesmo acontece com as galáxias, "carregadas" pela expansão do Universo.
Bem, pensou Hubble, se as galáxias estão se afastando umas das outras com uma certa velocidade, em algum momento no passado elas estavam todas concentradas em um volume muito pequeno. Usando suas medidas, Hubble estimou que esse momento ocorreu há 2 bilhões de anos. Essa foi a primeira medida concreta da idade do Universo.

O problema é que já se sabia na época que a Terra tinha mais de 4 bilhões de anos. Como o Universo pode ser mais jovem do que a Terra? Esse foi um dos primeiros embaraços da cosmologia moderna. Sua resolução apareceu no início dos anos 50, quando medidas mais precisas do que as de Hubble mostraram que o Universo tinha no mínimo 10 bilhões de anos.

Esse tipo de problema não aparece só em cosmologia. É comum que medidas muito difíceis de ser efetuadas causem controvérsia. Na verdade, controvérsia é muito saudável em ciência, já que é a partir de uma atitude cética que se evitam erros e futuros embaraços. Mas, em cosmologia, a grandiosidade das questões aumenta o potencial para controvérsias e embaraços.
Em 1948, quando o modelo do Big Bang foi proposto, um grupo de físicos ingleses sugeriu outro modelo cosmológico, o modelo do "estado padrão". Segundo esse modelo, o Universo não teve nem início nem fim, mas sim uma existência eterna. Os dois grupos duelaram (academicamente, claro) por quase 20 anos, debatendo se o Universo está em expansão após uma origem muito densa e quente (Big Bang) ou se ele está em expansão, mas sem uma origem densa e quente (estado padrão).

Em 1965, dois astrofísicos americanos, procurando por sinais de rádio provenientes do espaço com uma enorme antena, descobriram um persistente chiado, um ruído que interferia com suas medidas. Ficou claro que o ruído vinha de todas as direções do céu e que não era causado por fontes terrestres.

Consultando seus colegas, o par constatou que esse ruído era previsto pelo modelo do Big Bang: microondas causadas durante a formação dos primeiros átomos, quando o Universo tinha apenas 300 mil anos. O "chiado" é uma fotografia do Universo quando bebê, um fóssil de sua infância. O Big Bang passou a ser o modelo aceito para descrever a evolução do Universo, e a cosmologia, pelo menos para a maioria dos físicos, deixou de ser objeto de suspeita.

domingo, 20 de setembro de 1998

A cosmologia e a origem da matéria

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Uma das questões mais profundas sobre o Universo é talvez uma das mais simples: Por que existe algo em vez de nada? Essa pergunta, tão antiga quanto a história nos permite saber, foi inicialmente respondida por meio da religião. Várias culturas criaram histórias, mitos de criação, com explicações sobre a existência do mundo material.

Como não podia deixar de ser, a cosmologia moderna também oferece explicações para a existência material do Universo, obviamente sem alçar mão de uma força sobrenatural. O que distingue as propostas modernas das anteriores é que elas são idéias testáveis, ou seja, elas obedecem aos rigorosos testes aplicados a teorias científicas, antes (e mesmo depois) de essas serem aceitas como explicações viáveis dos fenômenos naturais. Das várias explicações propostas, apenas uma (ou nenhuma!) será confirmada no futuro, por meio de observações e experimentos.

A idéia mais promissora, segundo este colunista, vem de uma modificação do modelo do Big Bang conhecida como universo inflacionário. O modelo do Big Bang descreve o Universo surgindo, há aproximadamente 15 bilhões de anos, de um estado extremamente denso e quente. Mas o que é esse estado inicial, denso e muito quente? Segundo o modelo inflacionário, no início nenhum tipo de matéria existia no Universo. Não existiam elétrons, fótons, prótons ou seus constituintes conhecidos como quarks. Apenas o que chamamos de "energia de vácuo" existia. O leitor pode pensar que "energia de vácuo é só um nome científico para Deus!". Nada disso. Vácuo significa o estado de menor energia possível de um sistema de partículas, em geral um estado "vazio", em que não há partículas de qualquer tipo. O vácuo da física é um nada material.

Como nos ensina a mecânica quântica, o vácuo absoluto, a ausência total de energia, não existe. Existirão sempre pequenas flutuações de energia, como pequenas ondas na superfície do mar, que podem, por instantes, ser transformadas em partículas, como explica a relação E=mc2. Essa dança de transformação de energia em partícula e de volta ao vácuo é chamada de flutuação de vácuo. Em física de partículas, o vazio absoluto não existe.

As teorias que descrevem como as partículas de matéria interagem admitem, em geral, dois (ou mais) tipos de vácuo, chamados de vácuo verdadeiro e vácuo falso. O vácuo falso é instável e, após algum tempo, "decai" no vácuo verdadeiro. Um exemplo familiar desse tipo de transformação ocorre quando resfriamos rapidamente o vapor d'água abaixo de seu ponto de condensação, de 100C. O vapor, nesse estado super-resfriado, está em seu vácuo falso. Aos poucos, gotas de água irão se formar em seu interior, e o vapor resfriado irá se transformar em água -o vácuo verdadeiro em temperaturas abaixo de 100C (mas acima de 0C!). Ao decair, o vácuo falso libera uma grande quantidade de calor.

Segundo o modelo inflacionário, o Universo primordial também surgiu de um estado de vácuo falso. Durante esse estágio, ele expandiu de forma extremamente rápida, daí o nome inflacionário. Após algum tempo, o vácuo falso decaiu e o Universo passou a habitar seu vácuo verdadeiro, como a água em seu estado líquido. Durante a passagem de um vácuo a outro, que é extremamente dramática e objeto de pesquisa deste colunista, uma quantidade enorme de calor foi liberada. Esse, segundo o modelo, é o calor do Big Bang! Para o Universo inflacionário, o Big Bang é produto do decaimento do Universo de seu vácuo falso em seu vácuo verdadeiro.

Resta compreendermos por que o Universo iniciou sua existência no estado instável. Várias idéias foram propostas, e algumas delas serão testadas nos próximos anos por meio de uma vasta rede de experimentos e observações astronômicas. Como toda boa teoria científica, a decisão final não fica por conta de sua beleza ou de nossa fé, mas por conta dos dados experimentais.

sexta-feira, 11 de setembro de 1998

A dualidade onda-partícula no mundo microscópico

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Outro dia, vasculhando velhos papéis de família, me deparei com um relatório de minha professora do maternal. Em clara e bela caligrafia, ela dizia: "Marcelo adora brincar com blocos de madeira. Sua outra atividade favorita é a bandinha de música". Tentando me lembrar de como eram as coisas quanto tinha 4 anos, percebi o quanto nós não mudamos. Eu continuo adorando música e brincando com blocos de armar, aspectos complementares de nossa descrição do mundo natural.

Nós representamos a estrutura da matéria em termos de seus "tijolos" ou blocos fundamentais, que chamamos de partículas elementares. Os mais familiares são os átomos dos elementos químicos, que, por sua vez, são compostos de elétrons em torno de prótons e nêutrons no núcleo. Já os prótons e nêutrons são compostos de partículas ainda mais fundamentais, os quarks. Portanto, dizemos que os tijolos fundamentais dos átomos são os quarks e os elétrons. O termo "fundamental" é usado quando a partícula não é composta por outras. No momento, conhecemos 12 partículas fundamentais.

Mas nenhuma construção pode existir sem uma cola. No caso das partículas, as "colas" são as interações entre elas, as forças que as partículas exercem entre si. Das quatro forças fundamentais da natureza, nós conhecemos bem duas; a força eletromagnética e a força gravitacional. Duas outras são ativas apenas em distâncias subatômicas; a força fraca -responsável, entre outras coisas, pelo decaimento radioativo- e a força forte -responsável por manter unido o núcleo atômico e também os quarks nos prótons e nêutrons.

As quatro forças também são descritas por partículas elementares. As partículas de força são "trocadas" durante uma interação entre as partículas de matéria, como jogadores passando uma bola entre si (essa imagem é sugestiva, mas não muito adequada). A mais famosa é o fóton, a partícula responsável pela transmissão da força eletromagnética. Quando dois elétrons sofrem uma repulsão elétrica (cargas iguais se repelem, cargas opostas se atraem), eles estão "trocando" fótons entre si. A física de partículas descreve o mundo por interações entre partículas de matéria, efetuadas por partículas de força. Mas essa é apenas a metade da história.

Na natureza, tudo vibra. Ondas ou vibrações estão presentes em todas as escalas, de oscilações atômicas ou moleculares, passando por ondas de som ou do mar, até oscilações em estrelas e outros objetos astrofísicos.

Com o desenvolvimento da mecânica quântica nas primeiras décadas deste século, ficou claro que as ondas aparecem até nos componentes fundamentais da matéria: as próprias partículas elementares, os blocos que usamos para construir o mundo, também podem ser descritos em termos de ondas! "Mas como?", pergunta, indignado, o leitor. "Onda e partícula são aspectos completamente distintos do comportamento da matéria: Uma partícula é uma entidade localizada, que ocupa um ponto ou pequeno volume no espaço. Já uma onda é o oposto, algo que se espalha no espaço. Como que um objeto pode ser ambos?"

Esse problema, conhecido como dualidade onda-partícula, é um dos aspetos mais fundamentais e intrigantes da mecânica quântica. A crise vem da nossa inabilidade de descrever sem matemática o comportamento bizarro dos objetos que habitam o mundo do "muito pequeno". Uma partícula se manifestará como partícula ou onda dependendo de como testarmos sua existência. Se, em uma experiência, os elétrons colidirem como bolas de bilhar, eles se comportarão como partículas. Se a experiência for de difração, passando os elétrons por fendas, eles se manifestarão como ondas.

Onda e partícula são representações da realidade física desses objetos, imagens mentais que usamos para organizar o que observamos. No final, voltamos aos nossos inocentes blocos de armar e bandinhas de música.

domingo, 6 de setembro de 1998

Ciência, fé e o sensacionalismo criado pela imprensa

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

No dia 20 de julho, a prestigiosa revista semanal "Newsweek", dos EUA, publicou um surpreendente artigo de capa, intitulado "A ciência encontra Deus". A capa mostrava o vitral de uma igreja, com santos substituídos por cientistas em seus jalecos brancos e cruzes substituídas por telescópios e microscópios. Planetas, estrelas e galáxias adornam a imagem central, emoldurada pela estrutura helicoidal de uma molécula de DNA.

Segundo o texto, um número cada vez maior de cientistas está descobrindo Deus por meio de suas pesquisas. E isso vai contra a idéia que temos da ciência moderna que, desde os tempos de Galileu e Newton, só tem se afastado da religião e da fé. Confesso que fiquei chocado com o artigo e com o perigo e confusão que textos como esse podem gerar.

Sem dúvida, é dever da imprensa buscar notícias interessantes e calcadas em fatos concretos. Apesar disso, jornais, revistas, rádio ou TV são empresas que visam maximizar seu lucro, enfrentando uma competição intensa. Esse é o desafio de um jornalista. A tentação de distorcer os fatos em nome do sensacionalismo fácil e rentável é grande. As empresas respeitáveis são justamente as que não sucumbem a essa tentação.

Quais são, então, os argumentos do artigo? Historicamente, a ciência sempre teve o papel de prover a luz nas trevas e propor explicações racionais para fenômenos que, sem ela, ficariam no terreno da superstição. Mesmo que a origem do questionamento científico tenha suas raízes muito entrelaçadas com a religião e a pseudo-religião, a evolução da ciência é marcada por um afastamento cada vez maior de suas origens. Com Galileu, Newton e o racionalismo que os seguiu, a ciência passou a existir independentemente da religião, em um divórcio marcado por conflitos muitas vezes trágicos.

Ao chegarmos no final do século 20, a ciência progrediu a ponto de poder encarar, com seus próprios métodos, questões que anteriormente eram exclusivas da religião, como a origem do Universo ou da vida. É aqui, segundo o artigo, na fronteira do conhecido e do desconhecido, que vários cientistas encontraram Deus. Exemplos são citados de cientistas que "desistiram" de entender as questões de forma científica, preferindo optar por uma solução religiosa. Há outros que vêem a manifestação de Deus em suas pesquisas ou na organização do mundo natural. O artigo sugere que a ciência precisa de Deus.

Será que essa tendência é assim tão nova? Absolutamente não! Durante a história da ciência encontramos vários cientistas que justificavam sua devoção à pesquisa de forma religiosa, ou que encontravam uma inspiração espiritual em seu trabalho. Desde Platão, a idéia de que a surpreendente ordem da natureza é obra de um arquiteto universal tem sido usada como metáfora para o trabalho científico. Conhecer a natureza e explorar suas leis é, para esses cientistas, aproximar-se de Deus ou da natureza divina do mundo. Kepler, Newton, Einstein e muitos outros responsáveis pelo desenvolvimento de nossa ciência usavam metáforas semelhantes às idéias platônicas ao justificar sua devoção ao trabalho científico.

Não existe nenhum conflito em uma justificativa religiosa ou espiritual para o trabalho científico, contanto que seu produto satisfaça às regras impostas pela comunidade científica. A inspiração para se fazer ciência é subjetiva e varia entre os cientistas. Mas o produto de suas pesquisas tem valor universal, o que separa claramente a ciência da religião. Quando tantas pessoas se afastam das religiões tradicionais em busca de outras respostas para seus dilemas, é muito perigoso colocar o cientista como o sacerdote da sociedade moderna. A ciência nos dá a luz para muitas trevas sem a necessidade da fé. Para alguns, isso já é o bastante. Para outros, só a fé pode iluminar certas trevas. O importante é que cada indivíduo possa fazer uma escolha consciente do caminho a seguir.

Ciência, fé e o sensacionalismo criado pela imprensa

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

No dia 20 de julho, a prestigiosa revista semanal "Newsweek", dos EUA, publicou um surpreendente artigo de capa, intitulado "A ciência encontra Deus". A capa mostrava o vitral de uma igreja, com santos substituídos por cientistas em seus jalecos brancos e cruzes substituídas por telescópios e microscópios. Planetas, estrelas e galáxias adornam a imagem central, emoldurada pela estrutura helicoidal de uma molécula de DNA.

Segundo o texto, um número cada vez maior de cientistas está descobrindo Deus por meio de suas pesquisas. E isso vai contra a idéia que temos da ciência moderna que, desde os tempos de Galileu e Newton, só tem se afastado da religião e da fé. Confesso que fiquei chocado com o artigo e com o perigo e confusão que textos como esse podem gerar.

Sem dúvida, é dever da imprensa buscar notícias interessantes e calcadas em fatos concretos. Apesar disso, jornais, revistas, rádio ou TV são empresas que visam maximizar seu lucro, enfrentando uma competição intensa. Esse é o desafio de um jornalista. A tentação de distorcer os fatos em nome do sensacionalismo fácil e rentável é grande. As empresas respeitáveis são justamente as que não sucumbem a essa tentação.

Quais são, então, os argumentos do artigo? Historicamente, a ciência sempre teve o papel de prover a luz nas trevas e propor explicações racionais para fenômenos que, sem ela, ficariam no terreno da superstição. Mesmo que a origem do questionamento científico tenha suas raízes muito entrelaçadas com a religião e a pseudo-religião, a evolução da ciência é marcada por um afastamento cada vez maior de suas origens. Com Galileu, Newton e o racionalismo que os seguiu, a ciência passou a existir independentemente da religião, em um divórcio marcado por conflitos muitas vezes trágicos.

Ao chegarmos no final do século 20, a ciência progrediu a ponto de poder encarar, com seus próprios métodos, questões que anteriormente eram exclusivas da religião, como a origem do Universo ou da vida. É aqui, segundo o artigo, na fronteira do conhecido e do desconhecido, que vários cientistas encontraram Deus. Exemplos são citados de cientistas que "desistiram" de entender as questões de forma científica, preferindo optar por uma solução religiosa. Há outros que vêem a manifestação de Deus em suas pesquisas ou na organização do mundo natural. O artigo sugere que a ciência precisa de Deus.

Será que essa tendência é assim tão nova? Absolutamente não! Durante a história da ciência encontramos vários cientistas que justificavam sua devoção à pesquisa de forma religiosa, ou que encontravam uma inspiração espiritual em seu trabalho. Desde Platão, a idéia de que a surpreendente ordem da natureza é obra de um arquiteto universal tem sido usada como metáfora para o trabalho científico. Conhecer a natureza e explorar suas leis é, para esses cientistas, aproximar-se de Deus ou da natureza divina do mundo. Kepler, Newton, Einstein e muitos outros responsáveis pelo desenvolvimento de nossa ciência usavam metáforas semelhantes às idéias platônicas ao justificar sua devoção ao trabalho científico.

Não existe nenhum conflito em uma justificativa religiosa ou espiritual para o trabalho científico, contanto que seu produto satisfaça às regras impostas pela comunidade científica. A inspiração para se fazer ciência é subjetiva e varia entre os cientistas. Mas o produto de suas pesquisas tem valor universal, o que separa claramente a ciência da religião. Quando tantas pessoas se afastam das religiões tradicionais em busca de outras respostas para seus dilemas, é muito perigoso colocar o cientista como o sacerdote da sociedade moderna. A ciência nos dá a luz para muitas trevas sem a necessidade da fé. Para alguns, isso já é o bastante. Para outros, só a fé pode iluminar certas trevas. O importante é que cada indivíduo possa fazer uma escolha consciente do caminho a seguir.

domingo, 30 de agosto de 1998

As ondas gravitacionais e a nova astronomia

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Um dos fenômenos físicos que mais observamos à nossa volta é a presença de ondas. A propagação do som no ar, movimentos na superfície de oceanos, a oscilação de folhas ao vento, o embalar de uma rede, ondas de rádio, são todos fenômenos que explicamos com a idéia de ondas.

Mas o que é, de forma geral, uma onda? Nada de muito misterioso. Uma onda é a resposta de um meio a uma perturbação. Imagine, por exemplo, uma pedra jogada em uma piscina. A energia de movimento da pedra é transferida para a água pelo impacto. Essa energia extra se manifesta por meio de ondas concêntricas, que transportam a energia transferida no impacto. Portanto, podemos dizer que a função da onda é dissipar a energia depositada na água após o impacto da pedra. Em vez do exemplo da pedra, podemos imaginar uma corda de violão ou o ar projetado pelos pulmões através de nossas cordas vocais. A idéia básica é sempre a mesma.

Existem dois outros tipos de ondas, talvez menos familiares: as eletromagnéticas e as gravitacionais. Ondas de rádio, microondas e raios X são exemplos de radiação eletromagnética que se propaga com a velocidade da luz (300 mil quilômetros por segundo). Ao contrário das ondas que mencionei anteriormente, que se propagam em um meio material como a água ou o ar, as ondas eletromagnéticas se propagam no vácuo. Caso contrário, não poderíamos ver a luz de estrelas distantes e o céu noturno seria totalmente escuro! Esse fato confundiu muitos físicos do século 19, que sugeriram a existência de um meio material, o éter, em que se propagavam ondas eletromagnéticas. Apenas no início deste século Einstein mostrou decisivamente que o éter não era necessário.

Einstein também propôs uma nova teoria da gravitação, a teoria da relatividade geral, em que sugere que a presença de matéria (ou energia) deforma a geometria do espaço e vice-versa. Imagine uma cama elástica, perfeitamente plana. Essa seria a geometria de um espaço (em duas dimensões) sem matéria. Uma bola de gude iria se mover em linha reta. Agora coloque uma bola de chumbo no meio da cama elástica. A bola de chumbo torna a cama curva, e as bolas de gude têm suas trajetórias afetadas pela curvatura da geometria. Para Einstein, o efeito da gravidade pode ser substituído pelo movimento das bolas de gude na geometria curva da cama elástica.

Já a presença de matéria (ou energia) afeta a geometria do espaço. Se a matéria estiver em movimento, a geometria do espaço também estará em movimento! Ou seja, o movimento de certas distribuições de matéria pode causar perturbações na geometria do espaço. E como essas perturbações irão se propagar? Você acertou! Por meio de ondas, chamadas ondas gravitacionais. E, como em relatividade o espaço e o tempo estão interligados, os distúrbios não serão só espaciais, mas também temporais: se estivermos em um local em que passa uma onda gravitacional, tanto nossas réguas (deformação do espaço) quanto nossos relógios (deformação no tempo) sofrerão alterações.

Posso já imaginar alguns leitores querendo surfar nessas ondas. Infelizmente (felizmente?), esses distúrbios são diminutos. Apenas eventos muito dramáticos, como a colisão de estrelas de nêutrons ou buracos negros, explosões de supernovas ou fenômenos da infância do Universo (pesquisa desse colunista), podem gerar ondas gravitacionais detectáveis na Terra. Mesmo assim, sua detecção é muito difícil. Uma supernova na constelação de Virgem gera aqui uma perturbação menor que um núcleo atômico. Grupos no mundo inteiro, inclusive no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), constroem "observatórios gravitacionais". Na próxima década, talvez possamos medir diretamente as primeiras ondas gravitacionais. Será o nascimento de uma nova astronomia, capaz de revelar muitos dos segredos da força mais comum e mais enigmática do Universo.

sexta-feira, 21 de agosto de 1998

Uma nova ciência para um novo milênio

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Se existe algo que nos impressiona ao refletirmos sobre o mundo que nos cerca é sua diversidade: o vivo e o não-vivo, animais e pedras, árvores e nuvens, se desdobram em incontáveis formas, expressões de uma criatividade que nos emociona e inspira

Nós também somos produto dessa criatividade. Ao que tudo indica (pelo menos em nossa vizinhança solar), somos a única espécie capaz refletir sobre si própria e o ambiente que a cerca.
É por meio da ciência que procuramos organizar o que aprendemos sobre a natureza, buscando sempre explicações simples e concretas dos fenômenos que observamos.

De certa forma, podemos medir o sucesso de uma teoria científica pelo seu poder de explicação. Quanto mais completa ela for, maior o número de fenômenos que ela poderá explicar, usando o menor número possível de princípios ou leis.

Historicamente, é na física que encontramos o modelo fundamental para a estruturação das teorias científicas. Durante o século 17, Galileu Galilei e Isaac Newton desenvolveram a mecânica, que estuda o movimento de corpos materiais no espaço. Em seu magnífico livro "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural", publicado em 1687, Newton estruturou toda a mecânica a partir de apenas três leis básicas, as famosas "leis do movimento".

Qualquer movimento que observamos na natureza, seja ele a órbita de um cometa em torno do Sol, a queda de uma gota de chuva ou o movimento de um ciclista em sua bicicleta, pode ser explicado aplicando-se uma ou mais leis de movimento (a mecânica newtoniana falha na descrição de movimentos muito rápidos, com velocidade comparáveis à da luz, ou na descrição de movimentos na escala atômica. Mas nossa vida diária é certamente newtoniana).

Para atingir esse enorme poder descritivo com apenas algumas leis, Newton reduziu o mundo a uma coleção de pontos materiais (como bolas de sinuca) agindo sob a ação de forças. Essa é uma descrição reducionista, uma estratégia amplamente adotada em todas as disciplinas científicas: dividir e simplificar ao máximo um sistema complicado, facilitando assim a descrição de seu comportamento.

O sucesso da descrição newtoniana do mundo foi tão imenso que o reducionismo tornou-se a pedra filosofal da ciência. E, sem dúvida, quando aplicado a outras disciplinas, o reducionismo também foi muito bem-sucedido. Em química, falamos de átomos e moléculas; em biologia, falamos de células e genes; e, em certos ramos da psicologia, falamos de categorias de comportamento ou da quantificação das várias formas de expressão, verbais e corporais.
Sem dúvida, nosso século será lembrado como o século de glória do reducionismo. As nossas vidas hoje são produto de inúmeros avanços em ciência e tecnologia, cujo sucesso é consequência direta da aplicação do reducionismo. Mas nem tudo é um mar de rosas, e esses avanços trazem seríssimos efeitos colaterais, como o poder destrutivo de nossas armas, a poluição desenfreada do meio ambiente, os perigos de manipulação da opinião pública pela exploração dos meios de comunicação. Como dizia o Buda, "onde existe luz, existe sombra".

Os tempos estão mudando; novas direções surgem em ciência, apontando para o oposto do reducionismo: o uso de técnicas globais na descrição de sistemas. Não dividir para entender, mas tratar o comportamento do todo como um todo; o todo é maior do que a soma das partes.
O cérebro não é o produto da soma de seus neurônios, a emergência da vida é um fenômeno coletivo, nosso planeta e todos os seus habitantes devem ser tratados como uma unidade, em que ações locais podem ter efeitos globais. Uma nova ciência para um novo milênio, onde o reducionismo e o "holismo" se complementarão em nossa descrição do mundo.

domingo, 16 de agosto de 1998

Miragens planetárias e fantasias sem base científica

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Às vezes, nossos sentidos podem nos iludir, "criando" imagens ou sons que simplesmente não existem. Quantas vezes nos assustamos com o movimento inesperado de uma sombra projetada contra a parede de nosso quarto, ou com um ruído estranho que não sabemos de onde veio. Quantos "fantasmas" não enfrentei, quando criança, nas trevas de meu quarto...

Aliados a limitações tecnológicas, nossos sentidos também podem criar ilusões e miragens. Vale a pena contar a história dos famosos "Canais Marcianos", que gerou, e de certa forma ainda gera, um enorme sensacionalismo em torno da possibilidade de vida inteligente em Marte.
Em 1877, aproveitando a aproximação de Marte durante um período de ótima visibilidade, o astrônomo italiano Giovanni Schiaparelli (1835-1910) observou certos detalhes do relevo marciano que ele descreveu usando a palavra italiana "canali". Mesmo que Schiaparelli estivesse apenas se referindo a longas depressões ou sulcos na superfície de Marte, certas pessoas acreditaram que o astrônomo italiano houvesse descoberto canais cruzando a superfície do planeta em padrões extremamente regulares.

Rapidamente os canais passaram a ser artificiais, cavados por uma antiga e sábia civilização para trazer água dos pólos para as cidades das áreas equatoriais, que estavam sendo castigadas pela seca. Centenas deles foram "observados" e batizados, mesmo recusando-se a aparecer em fotografias. Aparentemente, técnicas fotográficas, usando longa exposição, perdiam as sutis imagens dos canais devido a flutuações térmicas na atmosfera que comprometiam a visibilidade.

Vários astrônomos de excelente reputação acreditaram na história dos canais. Dentre eles, o milionário e astrônomo amador Percival Lowell (1855-1916) ficou fascinado com a possibilidade de vida inteligente em Marte. Em 1895, Lowell publicou um livro expondo suas idéias com grande convicção e autoridade. Seu entusiasmo foi suficiente para ele fundar um observatório em Flagstaff, no Arizona (EUA), inicialmente dedicado a observações da superfície de Marte. Não foi coincidência o livro "A Guerra dos Mundos", de 1898, de H. G. Wells, sobre uma invasão de marcianos.

Ainda mais dramático foi o programa de rádio produzido por Orson Welles em 1938, alertando os habitantes de Nova Jersey, nos EUA, para a invasão dos marcianos. As transmissões, na forma de boletins de notícias, causaram verdadeiro pânico na população local. Ou seja, as pessoas aceitaram passivamente a existência de uma civilização com tecnologia avançadíssima em Marte, com péssimas intenções com relação à Terra.

É importante analisar alguns dos ângulos dessa história, como o fato de que vários cientistas acreditaram em uma conjectura que não era muito convincente. Cientistas são seres humanos, e, às vezes, o desejo de acreditar em algo é grande o suficiente para afetar seu discernimento. A grande vantagem é que, na ciência, essa condição é geralmente temporária. As sondas Mariner e Viking provaram que os "canais marcianos" não existem. Os vales e antigos leitos de rio que existem são produtos da erosão da superfície marciana.

O que mais preocupa são os danos que a falta de informação científica pode causar. No caso de Marte, muita gente ainda crê que há vida inteligente no planeta mesmo após prova em contrário. Meios de comunicação, muitas vezes interessados apenas em lucros, exploram essa "vontade de acreditar" que todos temos, sem qualquer preocupação com as repercussões que isso possa causar. Uma das missões sociais mais importantes do cientista é divulgar para o público em geral as descobertas e métodos da ciência para evitar pânicos como o de 1938, ou mesmo manifestações de fanatismo religioso baseadas em pseudociência, como as que vêm causando tantos suicídios e mortes pelo mundo inteiro.

domingo, 9 de agosto de 1998

A perspectiva de um Universo inflacionário

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Em economia, o termo inflação, bastante conhecido nosso, significa uma taxa alta de crescimento dos preços e do custo de vida em geral. Em cosmologia, o termo também representa um tipo de aumento mais desenfreado do que em economia: o da taxa de expansão do Universo.

Segundo o modelo do Big Bang, o Universo surgiu de um estado muito quente e denso, há uns 15 bilhões de anos. Ainda não sabemos muito sobre os instantes iniciais de existência do Universo, mas podemos, com confiança, retraçar sua história um segundo após o "bang". Essa confiança não significa que temos todas as respostas e detalhes desde então, mas que temos modelos que descrevem razoavelmente bem como a sopa primordial de partículas, que existia em cerca de um segundo, se transformou no Universo em que vivemos hoje, com estrelas, galáxias e outras estruturas mais complicadas.

Mas uma descrição mais completa da história do Universo deve ser capaz de reconstruir também os primeiros instantes de sua existência. E aqui o modelo do Big Bang encontra sérias dificuldades, incorporadas no que nós (cosmólogos) chamamos de "parâmetros livres", números que são ajustados para que nossos modelos sejam compatíveis com as observações.

Esses parâmetros são relacionados com as limitações atuais do modelo do Big Bang. Por exemplo, o "problema da curvatura ou geometria do Universo", para a qual há três possibilidades. Ele pode ser plano, como a superfície de uma mesa, aberto, como a sela de cavalo, ou fechado, como uma bola (esses três espaços são bidimensionais. É mais fácil visualizar a superfície de uma bola em duas do que em três dimensões!). As três possibilidades são representadas por um parâmetro das equações que descrevem a evolução do Universo. O problema é qual das três devemos escolher.

A curvatura do Universo depende de sua densidade de matéria. Se a densidade for maior do que a chamada "densidade crítica" -cerca de um átomo de hidrogênio por metro cúbico-, o Universo é fechado. Se ela for menor, o Universo é aberto. Se ela for igual à densidade crítica, o Universo é plano. Observações atuais indicam que o Universo é aberto. A densidade de matéria observada, direta e indiretamente, está em torno de 30% da densidade crítica.

Mas essa medição não é nada fácil. É muito possível que a densidade seja maior que o valor medido atualmente. Para muitos cosmólogos, ela deve ser igual à densidade crítica. Sem dúvida, se um número que, em princípio, pode assumir qualquer valor fosse tão próximo de um valor simples (isto é, um), seria tão mais elegante se a Natureza tivesse escolhido esse valor!

Essa expectativa não é apenas estética. É possível mostrar que um Universo aberto ou fechado teria hoje uma densidade muito diferente da que medimos. Portanto, a menos que a Natureza esteja nos escondendo algo óbvio (o que é sempre possível), temos fortes razões para acreditar que o Universo é plano. Mas como explicar isso dentro do modelo do Big Bang?
O norte-americano Alan Guth e outros cosmólogos propõem que o Universo passou por uma fase de expansão muito mais rápida do que a taxa de expansão normal do modelo do Big Bang. Essa fase de expansão "inflacionária", de curtíssima duração, tem importantes consequências para a história do Universo.

Observe a curvatura de uma pequena região na superfície de uma bola. Imagine a bola ser inflada rapidamente. O que acontecerá com a região que você observou? Ela se tornará cada vez mais plana. Segundo Guth, o mesmo aconteceu nos primeiros momentos de existência do Universo. A expansão inflacionária fez com que sua curvatura diminuísse. Na maioria dos modelos, inflação implica um Universo plano, resolvendo o problema da curvatura. Mesmo que a palavra final seja das observações, em cosmologia inflação é coisa boa.

domingo, 2 de agosto de 1998

"Armageddon", palco da independência ou da morte

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Dia 4 de Julho é uma data especial nos EUA. É o Dia da Independência. O país inteiro se incha de patriotismo, bandeiras americanas adornam casas e jardins e as cores azul, vermelha e branca predominam nas festividades. Ao anoitecer, as pessoas se reúnem na praça central da cidade para assistir aos fogos de artifício decorando os céus com suas explosões multicoloridas e comoventes.

Recentemente, uma outra tradição passou a ser parte do Dia 4 de Julho: o lançamento de filmes cataclísmicos, de ameaça de destruição total da espécie humana e da Terra. Ano passado foi o lançamento de "Independence Day", com seres extraterrestres que tentam dominar o mundo, destruindo grandes cidades, pessoas morrendo por todo o lado como míseros insetos perante a absurda força de uma tecnologia de destruição que transforma nossas armas nucleares em meros "fogos de artifício".

Esse ano foi a vez do filme "Armageddon". O termo, que vem do Apocalipse, no Novo Testamento, indica o local do confronto entre as forças do bem e do mal no Juízo Final. Hollywood transpôs o apocalipse para a astrofísica, o Armageddon sendo o planeta inteiro, ameaçado de destruição pelo impacto com um asteróide "do tamanho do Texas". Segundo o diretor da Nasa (agência espacial dos EUA), "esse asteróide é o que chamamos de "destruidor global'. Nem mesmo bactérias sobreviveriam ao impacto e à era glacial que se seguiria".
O filme é (no mínimo) o terceiro de uma linha sobre o perigo do impacto com um asteróide. Lembro-me de pelo menos dois outros, "Asteróide" ("Asteroid", EUA, 1997) e o recente "Impacto Profundo" ("Deep Impact", EUA, 1998). Nesses filmes, heróis americanos (claro!) salvam o mundo e restauram a paz e a possibilidade de sermos livres para continuarmos a celebrar o Dia da Independência com paradas e fogos de artifício.

O filme "Armageddon" é carregado de simbolismo religioso e social. Os heróis que salvam o mundo (acho que não estou estragando a curiosidade do leitor que irá assistir ao filme. Claro que o mundo é salvo no final!) são profissionais especializados em prospecção de petróleo, capazes de cavar buracos em qualquer terreno. Em uma missão semidesesperada (como o ritmo absurdamente histérico do filme), eles são transportados em espaçonaves que se parecem com anjos para implantar um explosivo nuclear dentro do asteróide, um monstro metálico, negro e austero, um pesadelo visual digno da região mais inóspita do inferno. A ameaça dos asteróides é real. Mas não é a única.

Enquanto Hollywood nos faz olhar para os céus em busca de novos inimigos, algo de aterrorizador está acontecendo aqui na Terra mesmo: as mudanças climáticas devido à deposição absurdamente elevada de gases poluentes na nossa atmosfera.

Cientistas do mundo inteiro vêm alertando as autoridades políticas dos perigos dessas alterações climáticas: chuvas torrenciais, enchentes e secas devastadoras seguidas de incêndios, exatamente como os que estão acontecendo agora na Flórida. Invernos quentes (como o do ano passado no Hemisfério Norte) e verões chuvosos arruinarão a produção agrícola, e o degelo das calotas polares irá elevar o nível dos oceanos, causando sérios danos às comunidades de beira-mar.

Oponentes de modelos do efeito estufa citam flutuações estatísticas como a causa desses incidentes "isolados". Mas os incidentes climáticos recentes, talvez até o El Niño, não são incidentes isolados. São manifestações de um desequilíbrio climático potencialmente irreversível.

Está na hora de tomarmos conta da nossa casa, de nos defender não dos inimigos que vêm do espaço, mas dos que não medem as consequências de seus atos ou de sua ganância. Caso contrário, seremos nós os causadores do "Armageddon". E, desse, nem mesmo os heróis de Hollywood poderão nos salvar.

domingo, 26 de julho de 1998

A lança de Arquitas e a geometria do Universo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Onde "fica" o Universo? Qual é sua estrutura geométrica? Essas perguntas não são nada novas. Os antigos acreditavam que o fim do mundo era o fim da Terra, que se caminhássemos em linha reta, chegaríamos à sua borda. Como responderíamos hoje à pergunta: "O fim do mundo é o fim do Universo; se viajarmos sempre em linha reta, chegaremos à sua borda?". Por trás dessas perguntas se escondem mais de 2.500 anos de reflexão filosófica, religiosa e científica.

Até recentemente, era comum afirmar que o Universo está contido no espaço. Afinal, como podemos conceber algo que não exista "dentro" do espaço e com alguma duração temporal?
Tudo à nossa volta, de objetos inanimados a seres vivos, existe dentro de alguma região do espaço e durante certo intervalo de tempo. Falamos de uma gota de orvalho em uma flor de maracujá (sua posição), que se formou durante a madrugada (o início de sua "existência") e que será absorvida pela planta ou cairá na terra (o fim da "existência"). Ou falamos de algum parente que viveu durante 80 anos na mesma casa no interior.

Já que tudo ao nosso redor existe no espaço e no tempo, é natural pensarmos que o mesmo acontece com o Universo. Mas, se isso for verdade, o espaço que "contém" o Universo também deve ser parte dele, certo? E, se imaginarmos outro universo à sua volta, caímos em um círculo vicioso: o Universo passa a ser feito de universos sucessivamente dentro de universos. Parece que o problema aqui é com a idéia de que o Universo tem bordas. Se o imaginarmos sem bordas, o problema fica bem mais simples. Mas como?

Alguém que viaje sempre em linha reta chegará eventualmente à borda do mundo. E se ela atirar uma lança na direção dessa borda? O que acontecerá com a lança? Esse enigma, conhecido como o enigma de Arquitas, filósofo pitagórico do século 4 a.C., amigo de Platão, abriu as portas para um Universo infinito. Mas muito lentamente.

Várias respostas a esse enigma foram propostas no decorrer dos séculos. A mais antiga dizia simplesmente que a lança ricochetearia no muro que marca o fim do mundo. Já os atomistas, no século 5 a.C., usaram esse enigma para argumentar a favor de um mundo infinito. Nas palavras de Lucrécio, o poeta romano que escreveu a mais bela defesa da racionalidade científica contra a superstição causada pela ignorância: "Bem, onde vai parar a lança? Onde quer que você ponha o fim de todas as coisas, eu te perguntarei "e então, o que acontece com a lança?' Aprenda, portanto, que o Universo é infinito em todas as direções".

No final da Idade Média, Nicolau de Cusa usou argumentos teológicos para provar que o Universo não tem um centro físico ou bordas. Segundo Cusa, como o centro de um Universo esférico era um ponto perfeito, ele só poderia ser ocupado por Deus. Giordano Bruno, cujo trágico fim nas mãos da Inquisição permanecerá para sempre como símbolo da opressão contra a liberdade de expressão, acreditava não só que o Universo era infinito, mas também que ele era ocupado por infinitos mundos. Mesmo assim, o Universo fechado da teologia medieval cristã sobreviveria até a chegada da nova ciência, nas mãos de Galileu, Kepler e Newton, no século 17.

Hoje sabemos que o Universo não tem borda ou centro. Se caminharmos na superfície da bola, jamais encontraremos uma borda. O mesmo se dá com o Universo, que pode ser fechado, como a superfície de uma "bola em três dimensões" (nem de olhos fechados dá para visualizar isso), ou aberto, como uma "mesa ou uma sela de cavalo" em três dimensões (idem!).

Em um Universo aberto, a lança de Arquitas se perderia no infinito, enquanto em um Universo fechado, ela atingiria suas costas. Mas isso só ocorrerá quando o Universo implodir sobre si mesmo, nos instantes finais de sua existência.