domingo, 26 de julho de 1998

A lança de Arquitas e a geometria do Universo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Onde "fica" o Universo? Qual é sua estrutura geométrica? Essas perguntas não são nada novas. Os antigos acreditavam que o fim do mundo era o fim da Terra, que se caminhássemos em linha reta, chegaríamos à sua borda. Como responderíamos hoje à pergunta: "O fim do mundo é o fim do Universo; se viajarmos sempre em linha reta, chegaremos à sua borda?". Por trás dessas perguntas se escondem mais de 2.500 anos de reflexão filosófica, religiosa e científica.

Até recentemente, era comum afirmar que o Universo está contido no espaço. Afinal, como podemos conceber algo que não exista "dentro" do espaço e com alguma duração temporal?
Tudo à nossa volta, de objetos inanimados a seres vivos, existe dentro de alguma região do espaço e durante certo intervalo de tempo. Falamos de uma gota de orvalho em uma flor de maracujá (sua posição), que se formou durante a madrugada (o início de sua "existência") e que será absorvida pela planta ou cairá na terra (o fim da "existência"). Ou falamos de algum parente que viveu durante 80 anos na mesma casa no interior.

Já que tudo ao nosso redor existe no espaço e no tempo, é natural pensarmos que o mesmo acontece com o Universo. Mas, se isso for verdade, o espaço que "contém" o Universo também deve ser parte dele, certo? E, se imaginarmos outro universo à sua volta, caímos em um círculo vicioso: o Universo passa a ser feito de universos sucessivamente dentro de universos. Parece que o problema aqui é com a idéia de que o Universo tem bordas. Se o imaginarmos sem bordas, o problema fica bem mais simples. Mas como?

Alguém que viaje sempre em linha reta chegará eventualmente à borda do mundo. E se ela atirar uma lança na direção dessa borda? O que acontecerá com a lança? Esse enigma, conhecido como o enigma de Arquitas, filósofo pitagórico do século 4 a.C., amigo de Platão, abriu as portas para um Universo infinito. Mas muito lentamente.

Várias respostas a esse enigma foram propostas no decorrer dos séculos. A mais antiga dizia simplesmente que a lança ricochetearia no muro que marca o fim do mundo. Já os atomistas, no século 5 a.C., usaram esse enigma para argumentar a favor de um mundo infinito. Nas palavras de Lucrécio, o poeta romano que escreveu a mais bela defesa da racionalidade científica contra a superstição causada pela ignorância: "Bem, onde vai parar a lança? Onde quer que você ponha o fim de todas as coisas, eu te perguntarei "e então, o que acontece com a lança?' Aprenda, portanto, que o Universo é infinito em todas as direções".

No final da Idade Média, Nicolau de Cusa usou argumentos teológicos para provar que o Universo não tem um centro físico ou bordas. Segundo Cusa, como o centro de um Universo esférico era um ponto perfeito, ele só poderia ser ocupado por Deus. Giordano Bruno, cujo trágico fim nas mãos da Inquisição permanecerá para sempre como símbolo da opressão contra a liberdade de expressão, acreditava não só que o Universo era infinito, mas também que ele era ocupado por infinitos mundos. Mesmo assim, o Universo fechado da teologia medieval cristã sobreviveria até a chegada da nova ciência, nas mãos de Galileu, Kepler e Newton, no século 17.

Hoje sabemos que o Universo não tem borda ou centro. Se caminharmos na superfície da bola, jamais encontraremos uma borda. O mesmo se dá com o Universo, que pode ser fechado, como a superfície de uma "bola em três dimensões" (nem de olhos fechados dá para visualizar isso), ou aberto, como uma "mesa ou uma sela de cavalo" em três dimensões (idem!).

Em um Universo aberto, a lança de Arquitas se perderia no infinito, enquanto em um Universo fechado, ela atingiria suas costas. Mas isso só ocorrerá quando o Universo implodir sobre si mesmo, nos instantes finais de sua existência.

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