domingo, 5 de julho de 1998

Os neutrinos como ponte entre o micro e o macro

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Outro dia, recebi um telefonema muito misterioso. Uma norte-americana dizia precisar de um físico de "cabeça aberta" para conversar sobre suas "técnicas curativas especiais". Em uma reportagem do prestigioso jornal americano "The New York Times", ela aparece junto a um cardiologista de excelente reputação. Segundo o artigo, pacientes que são tratados pelas técnicas da medicina convencional combinadas com as dessa mulher se recuperam bem mais rápido do que os que são tratados só com técnicas tradicionais.

Minha interlocutora buscava explicações científicas para sua técnica, que consiste em tocar ou massagear o paciente em determinados locais do corpo. "O poder da cura", dizia ela, "vem de algo que emana de minhas mãos. Estou convencida de que sou capaz de emitir raios de neutrinos por meus dedos. É essa a energia que ajuda o paciente em seu processo de cura".

O que mais me intrigou no telefonema de nossa curandeira foi a menção dos neutrinos como veículo de cura. Por que neutrinos e não outra particula subatômica? Após refletir sobre o assunto, encontrei a resposta. Os neutrinos são talvez as partículas mais intrigantes do mundo subatômico: elas não têm carga elétrica e, até muito recentemente, acreditava-se que, como os fótons -partículas de radiação eletromagnética-, os neutrinos não tinham massa.

Outra propriedade dos neutrinos contribui para seu mistério: eles interagem muito fracamente com outras partículas de matéria, sendo capazes de atravessar toda a Terra sem uma única colisão. Aliás, essa mesma propriedade destrói a hipótese de minha amiga curandeira. Claramente, seus poderes curandeiros não emanam de uma partícula que não interage com a matéria. O mistério, pelo menos nesse caso, permanece em aberto.

No início de junho, um grupo de cientistas japoneses e americanos anunciou que os neutrinos têm massa. Os neutrinos, que aparecem em três tipos, podem se transformar entre si em um processo que chamamos de oscilação. Essa descoberta, se verificada, terá importantes implicações para nossa compreensão não só do mundo subatômico, mas também dos processos que ocorrem dentro de estrelas ou mesmo da evolução do Universo como um todo.

Os processos que produzem a radiação que emana de estrelas estão entre os mais bem-conhecidos da astrofísica. A fusão de núcleos de átomos mais leves em núcleos mais pesados libera uma quantidade imensa de energia, parte dela transportada pelos fantasmagóricos neutrinos. Alguns desses neutrinos chegam aqui na Terra, em números que são calculáveis. O problema é que os cálculos, que assumem que os neutrinos não têm massa, prevêem um número maior de neutrinos do que o número observado. O mistério dos neutrinos solares vem desafiando astrofísicos por mais de duas décadas. Caso eles tenham massa, fica possível obter resultados compatíveis com as observações.

Mas o impacto mais dramático da massa dos neutrinos fica por conta da cosmologia. Observações astronômicas confirmam que o Universo está em expansão e, segundo o modelo do Big Bang, seu futuro é determinado pela sua quantidade de matéria. Quanto mais matéria, mais sua atração gravitacional atua como uma espécie de freio na expansão. Se a quantidade de matéria for maior do que um certo valor, a expansão poderá se converter em contração e o Universo vai de Big Bang para "Big Crunch".

Caso os neutrinos tenham massa, eles podem ser o componente principal da "matéria escura" -matéria que não pode ser vista, mas cujos efeitos são sentidos por meio de sua atração gravitacional. Propagando-se pelas vastas distâncias do Universo, esses minúsculos integrantes do mundo subatômico, habitantes da tênue fronteira entre o ser e o nada, são talvez a cola cósmica. No mínimo, eles curam muitas de nossas dúvidas sobre o Universo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário