domingo, 24 de junho de 2001

Viagem sem retorno

Nada no Universo, talvez com exceção do cérebro humano, é tão misterioso quanto um buraco negro. Acreditamos que todas as centenas de bilhões de galáxias, a parte visível de nosso Universo, tenham um desses corpos em seu centro, com massas milhões de vezes maiores do que a massa do Sol. Como sabemos disso? Examinando o movimento de estrelas próximas do centro das galáxias e inferindo que ele só pode ser explicado por uma enorme concentração de massa em um volume muito pequeno, justamente as propriedades de um buraco negro gigante. Para explorarmos um pouco da física dos buracos negros, precisamos de dois ingredientes: a descrição da vida e da morte de uma estrela e a teoria da relatividade geral de Albert Einstein, onde a gravidade é causada pela curvatura do espaço em torno de um objeto maciço.

Uma estrela é basicamente composta de hidrogênio. Sua existência depende de um equilíbrio dramático entre a força da gravidade, que tende a fazer com que a estrela "imploda" sobre si mesma, e a pressão liberada em seu interior devido à fusão nuclear de hidrogênio em hélio. O problema é que, um dia, a estrela consumirá quase todo o hidrogênio em seu interior e terá de fundir hélio em carbono para continuar a existir. Para estrelas com massas oito vezes maiores que a do Sol, essa cadeia de fusão em elementos mais pesados continua até chegar ao ferro. Com a interrupção do processo de fusão, a estrela perde a base e acaba expelindo grande parte de sua região externa, deixando no centro seus restos mortais.

Dependendo da massa da estrela original e da violência dessa explosão final, esses restos podem ser uma anã branca (no caso do Sol), uma estrela de nêutrons ou um buraco negro (no caso de estrelas com massas bem maiores que a do Sol). Se os restos da estrela têm uma massa acima de três ou quatro massas solares, ela continuará seu colapso. Com a massa permanecendo aproximadamente a mesma, quanto menor o raio da estrela, maior será a sua própria gravidade.

E, quanto maior a gravidade da estrela, maior a curvatura do espaço em volta. Finalmente, a situação torna-se insustentável: a estrela é tão pequena e compacta que o espaço se encurva sobre si mesmo, e nada, nem mesmo a luz, pode escapar. Ela virou um buraco negro. Todo buraco negro é circundado por uma região imaginária, que chamamos de horizonte. Se o Sol fosse transformado em um buraco negro, seu horizonte teria um raio de três quilômetros.

Tal como a fronteira de um redemoinho no mar, o horizonte marca o ponto além do qual não se pode mais retornar. Ali, o espaço passa a se comportar de forma semelhante ao tempo em nossa realidade. Do mesmo modo que, para nós, o tempo flui em uma única direção, dentro do horizonte é o espaço que se torna unidirecional. Dentro do horizonte, só se pode viajar em direção ao centro, onde a gravidade assume, teoricamente, um valor infinito. É uma viagem sem retorno. Claro, seria impossível chegarmos tão próximos do horizonte de um buraco negro.

Nenhuma tecnologia que possamos conceber no momento poderia resistir à tremenda pressão gravitacional ou ao bombardeio de radiação em torno do turbilhão cósmico causado pelo buraco negro. Uma imagem adequada, mas não muito poética, é a de um ralo, sugando matéria que desaparece em uma pequena região negra. Mesmo que o buraco negro em si seja invisível, a matéria sendo tragada para as suas profundezas emite radiação, que delata sua presença.

O horizonte nos protege dos absurdos que ocorrem perto da zona central do buraco negro, chamada de singularidade central. Como é possível ter uma região no espaço onde a gravidade assume um valor infinito? Nós ainda não sabemos. Na verdade, a singularidade central denuncia a quebra das leis da física, mantendo o mistério central do buraco negro intacto. Mesmo se hoje nós sabemos muito sobre a estrutura e as propriedades desses objetos, sua essência permanece desconhecida, apontando em direção a uma nova física e a novas concepções da estrutura do espaço e do tempo.

domingo, 17 de junho de 2001

O fóton, partícula de luz

O ano de 1905 é muitas vezes mencionado como milagroso na vida de Albert Einstein. Com apenas 26 anos, ele publicou, durante esse ano, quatro artigos que revolucionaram o desenvolvimento da física moderna. Em um deles, Einstein trata do chamado movimento browniano, a agitação que é observada quando pequenas partículas são postas em suspensão em um líquido. O efeito foi descoberto em 1827 pelo botânico inglês Robert Brown, enquanto observava grãos de pólen flutuando sobre gotas d'água. Einstein mostrou que o movimento em forma de ziguezague das partículas microscópicas (no caso de Brown, o pólen) é causado por colisões com as moléculas do líquido. Esse artigo abriu o caminho para a aceitação da existência dos átomos, que, até então, permanecia disputada por vários físicos e filósofos.

Dois dos artigos publicados por Einstein em 1905 tratam da teoria da relatividade especial, onde ele mostrou que medidas do comprimento de objetos e de intervalos de tempo são diferentes para observadores em movimento relativo. Isso porque a velocidade da luz é finita, mesmo que bastante alta (300.000 km/s), e idêntica para todos os observadores.

Mas hoje gostaria de me concentrar no quarto (na verdade o primeiro a ser publicado) dos famosos artigos, no qual Einstein avançou a hipótese de que a luz, ou melhor, a radiação eletromagnética, pode ser interpretada como sendo tanto composta por partículas como por ondas, propagando-se pelo espaço. Vale a pena lembrar que a luz visível é apenas uma pequena porção do vasto espectro da radiação eletromagnética. Ele vai das ondas de rádio, de baixa frequência e longo comprimento de onda, até os raios gama, de altíssima frequência e pequeno comprimento de onda, passando por radiação infravermelha, luz visível, radiação ultravioleta e raios X.

No artigo, Einstein propõe uma explicação revolucionária para o chamado efeito fotoelétrico, descoberto pelo alemão Heinrich Hertz (o mesmo que descobriu as ondas de rádio) em 1887. Imagine uma placa metálica eletricamente neutra. É possível eletrificar a placa, isto é, dar-lhe uma carga elétrica positiva, se a irradiarmos com certos tipos de radiação eletromagnética. Mas o efeito só ocorre se a radiação tiver frequência relativamente alta, do ultravioleta em diante. Se iluminarmos a placa com luz amarela, nada irá acontecer: sua carga seguirá neutra. E de nada adiantará aumentar a intensidade da luz. Mesmo com uma fonte de luz amarela extremamente intensa, a placa continuará neutra. As tentativas iniciais de explicar o efeito a partir da teoria ondulatória da luz falharam. A descoberta de Hertz criou um impasse na física. Einstein, em um ato de extrema coragem intelectual, supôs que a radiação eletromagnética fosse formada por pequenas balas de radiação, que ganharam o nome de fótons. Einstein propôs que a energia de um fóton fosse proporcional à sua frequência -quanto maior a frequência de um fóton, maior a sua energia. Portanto, um fóton de radiação ultravioleta tem energia maior do que um fóton de radiação correspondente a algum tom da cor amarela.

Essa simples relação explica por que a luz ultravioleta, e não a amarela, pode eletrificar a placa metálica. A placa é feita de átomos, que têm elétrons girando em torno do núcleo, em órbitas diversas. Esses elétrons, com carga negativa, são atraídos eletricamente pelo núcleo, que tem carga positiva. Imagine um fóton como um pequeno projétil que se chocaria com o elétron mais externo do átomo: se o fóton tiver energia suficiente, ele será capaz de arrancar o elétron do átomo, sobrepondo a atração entre o elétron e o núcleo atômico. Com isso, o átomo fica com um déficit de uma carga negativa (o elétron perdido), o que equivale a ganhar uma carga positiva.

Em 1914, o americano Robert Millikan, muito a contragosto, confirmou a expressão proposta por Einstein para explicar o efeito fotoelétrico. Diferentemente do que muitos pensam, Einstein ganhou o prêmio Nobel em 1921 pela sua explicação do efeito fotoelétrico e não pela teoria da relatividade. A natureza física da luz continuou a assombrar (e a inspirar) o gênio pelo resto de sua carreira. O que significa algo ser tanto partícula quanto onda? Por que a velocidade da luz é a mais alta possível? Para ele, esses mistérios deveriam ser explicados por teorias mais fundamentais da física. A procura por elas continua.

domingo, 10 de junho de 2001

Energia nas mãos do acaso

O país está passando pela pior crise energética de toda a sua história. Já não chega o fato de a energia elétrica no Brasil ser das mais caras do mundo. O racionamento de energia elétrica está sendo imposto sobre a população e a indústria, sob ameaça de multas altíssimas e do temido apagão. Por que isso está acontecendo?
Há várias respostas. A mais imediata é que o fornecimento de energia elétrica no Brasil depende pesadamente de fontes hidrelétricas, de água que cai. Aliás, a geração de energia elétrica a partir da queda d'água é um belo exemplo da conversão de energia potencial gravitacional (todo objeto que cai de certa altura tem energia "armazenada") em energia elétrica, passando por vários estágios intermediários. Mas acho que hoje não é o dia para falar disso.
Numa frase, economia e população cresceram, aumentando a demanda de energia, e as chuvas não vieram conforme "planejado". Ponho as aspas por dois motivos. O primeiro é que parte desse planejamento se baseia em estimativas de chuvas no Sudeste: se não chove o suficiente, as represas não atingem níveis acima do considerado seguro, 49%. Aparentemente, o nível médio atual está em 27%, o que causou o desespero na administração federal, provocando as medidas já conhecidas, anunciadas dia 18 de maio pelo presidente da República.
Qual o problema com esse planejamento? Não se pode confiar na regularidade climática, baseando uma grande porção do fornecimento de energia para a região com maior demanda no país no ritmo natural das chuvas, que são mais abundantes no verão. São, mas não foram. E, muito provavelmente, segundo as simulações que estudam as consequências climáticas do efeito estufa, a concentração de gases na atmosfera irá causar oscilações climáticas ainda maiores e mais imprevisíveis.
É extremamente arriscado basearmos fatia tão grande do abastecimento de energia em uma fonte que não tem um comportamento confiável. Certamente um país com uma rede hidrográfica como a do Brasil deve explorar ao máximo o seu potencial. Mas não quase que exclusivamente.
Infelizmente, com a nova administração americana plantada nos poços de petróleo do Texas, nada será feito para minimizar a concentração de gases na atmosfera, ao menos pelos próximos quatro anos. Mesmo que medidas sejam tomadas, seus efeitos não serão imediatos. É a atitude de agir só quando não houver mais escolha. Ironicamente, o rico Estado da Califórnia também está passando por uma séria crise no fornecimento de energia, com apagões já ocorrendo e aumento de preços muito além da inflação. Sem querer parecer a trombeta do Apocalipse, esse é um indício de que está na hora de rever políticas energéticas antes que seja tarde demais.
Mais especificamente, não existe solução única e perfeita para o problema da energia. Todas as fontes possíveis têm aspectos positivos e negativos, mesmo as renováveis, como a solar ou a eólica.
O fornecimento de energia tem de ser de acordo com as características locais. Em uma área com clima desértico, com baixa concentração populacional, a energia solar é uma ótima opção. Em outra com fortes ventos, a energia eólica deve ser explorada. Às vezes, o ideal é uma combinação de diversas fontes. Em princípio, seria ideal usar o Sol como nosso provedor primário de energia -afinal, a energia criada pela fusão nuclear no interior da estrela já é transformada em biomassa pelas florestas.
Porém, a tecnologia de produção das células fotoelétricas usadas na transformação de calor em eletricidade emprega cristais cujo processo de fabricação é altamente poluente. Triste, mas verdadeiro. Para fazer um uso melhor da energia solar, é necessário aumentar tanto a eficiência do processo de transformação como criar novas tecnologias de conversão de calor em eletricidade.
É fundamental que o governo entenda a necessidade da diversificação das fontes de energia. O planeta Terra é finito, mesmo que seus vários combustíveis fósseis -carvão mineral, petróleo, gás natural- ainda venham a durar por muitas décadas. Isso requer pesquisa e investimento tanto por parte do governo como da indústria privada. Certamente, essa escolha é bem mais promissora para o futuro do país do que acreditar na dança da chuva.

quarta-feira, 6 de junho de 2001

A corrida com o tempo

Durante o século 6 a.C., uma profunda revolução ocorreu na história da humanidade. Grandes pensadores apareceram em vários locais do mundo, propondo idéias que redefiniram o conhecimento. Na China, Lao-Tsé e Confúcio, na Índia, Sidarta Gautama -o Buda-, e, na Grécia, surgiram os primeiros filósofos pré-socráticos. Aliás, o primeiro dos pré-socráticos, Tales de Mileto, foi considerado por Aristóteles como o primeiro dos filósofos.

Na Itália, apareceu uma outra escola do pensamento grego, fundada pelo legendário Pitágoras. Muitas das idéias que até hoje influenciam o pensamento ocidental surgiram dos milésios (nome dado aos seguidores de Tales de Mileto) e, principalmente, dos pitagóricos.Nós todos ouvimos falar do teorema de Pitágoras na escola, aquele que diz que a soma dos quadrados dos catetos de um triângulo retângulo é igual ao quadrado da hipotenusa.

Para começar, parece certo que esse teorema não foi inventado pelo próprio Pitágoras, mas isso não é tão importante. O que Pitágoras e seus seguidores fizeram vai muito além desse belíssimo teorema. Para os pitagóricos, a estrutura do mundo natural, a ordem que percebemos nos fenômenos e objetos à nossa volta (e mesmo em nossas próprias mentes), pode ser reduzida a relações entre números.

Em particular, números inteiros. Segundo fontes secundárias (nenhum dos escritos de Pitágoras sobreviveu), Pitágoras descobriu uma relação entre as notas musicais e os números inteiros examinando como diferentes notas são criadas em um instrumento de cordas, como a lira ou o monocórdio, uma espécie de violão com uma corda só. É fácil fazer o teste com um violão: para obtermos uma oitava mais alta, soamos a corda na metade de seu comprimento, isto é, na razão 2/1.

Para uma quinta mais alta, soamos a corda a 2/3 de seu comprimento e assim por diante. Com isso, Pitágoras demonstrou a existência de uma profunda relação entre a música e a matemática. Mais ainda, são precisamente as notas que obedecem a essas razões entre números inteiros que são consonantes (esteticamente belas).

A união criada por Pitágoras foi além da relação entre a matemática e as notas musicais, trazendo em si o conceito de harmonia, uma palavra aparentemente criada pelos pitagóricos. Pitágoras abriu o caminho para a ciência como uma descrição quantitativa da natureza, baseada em um arranjo racional dos números inspirado por noções estéticas. Para os pitagóricos, os números representavam a ponte entre a razão humana e a razão divina, a linguagem de codificação do mundo externo e interno.

O seu objetivo era atingir o êxtase (outra palavra pitagórica) pela contemplação da dança dos números, a criação de ressonâncias entre as harmonias da natureza e as da mente.A idolatria de Pitágoras pela beleza das relações entre os números não se restringia à Terra. Para ele, o cosmo era um instrumento musical, cujas melodias eram entoadas pelo movimento dos planetas. As distâncias entre os planetas e a Terra obedeciam a razões entre números inteiros que podiam ser identificadas com as notas musicais.

O cosmo ressoava com a harmonia das esferas, que aparentemente só Pitágoras podia ouvir (tanto Milton quanto Shakespeare escreveram poemas sobre a harmonia das esferas, mais de 2.000 anos após Pitágoras).A ciência, herdeira de Pitágoras, procura sempre por essa harmonia entre os números e o mundo natural. São incontáveis os exemplos de cientistas inspirados por uma visão essencialmente pitagórica do mundo, por um desejo de estabelecer novas pontes entre a razão humana e a natureza. E cada descoberta, por menor que seja, tem o seu lado de agonia e o seu lado de êxtase.

É interessante que a própria idéia de ressonância ocupa um lugar essencial na física moderna, representando uma situação onde um sistema responde com tremenda intensidade a um estímulo causado por um agente externo a ele. É essa a ressonância que buscamos na natureza, nossas mentes tentando decifrar a música das esferas, em busca de uma harmonia maior com o cosmo em que vivemos.

A Primeira Causa

Em 1931, o padre e astrofísico belga Georges Lemaître propôs uma idéia que soava quase absurda: no início do tempo, o Universo teria sido um núcleo atômico gigantesco, prestes a se desintegrar, como os núcleos de átomos de urânio ou plutônio. Segundo Lemaître, esse núcleo deveria ser considerado como o estado inicial do Universo. Com o tempo ele teria se desintegrado, gerando vários tipos de radiação e partículas -os materiais constituintes do Universo primordial, muito anteriores à existência de átomos comuns, como o de hidrogênio.

Durante o processo de desintegração, o átomo e seus detritos radioativos teriam ocupado um volume cada vez maior, que Lemaître associou com o volume do Universo. Em sua "visão" da origem cósmica, o espaço e o tempo seriam criados conjuntamente com a desintegração do átomo primordial. Prudentemente, Lemaître não adiantou qualquer sugestão ou mecanismo para o aparecimento de seu átomo primordial.

Essa questão, conhecida como a Primeira Causa, continua sendo debatida até hoje: quem foi o "agente" ou a causa física que viabilizou todas essas outras causas? Lemaître se inspirou nos resultados do astrônomo americano Edwin Hubble, que em 1929 mostrou que o Universo está em expansão -quanto mais longe a galáxia, maior a velocidade com que ela se afasta. (Um observador em qualquer outro local concluiria o mesmo. Não existe um centro no Universo, todos os pontos sendo equivalentes, como é o caso na superfície de uma esfera.)

Portanto, raciocinou Lemaître, se olharmos para o passado da história cósmica, quanto mais jovem o Universo, mais aglomerada estaria a sua matéria. É possível imaginar um momento em que a matéria do Universo ocupou um volume mínimo, atingindo altíssima densidade: esse seria o átomo primordial de Lemaître. Na época, era perfeitamente razoável supor que a densidade máxima da matéria era a dos núcleos atômicos, de dezenas de bilhões de gramas por centímetro cúbico, equivalente a uma montanha espremida em um cubo de açúcar.

A idéia de um Universo com uma origem e uma evolução temporal inspirou alguns e causou aversão em outros. Em particular, três físicos da Universidade de Cambridge (Reino Unido) propuseram, entre 1948 e 1950, um modelo alternativo, o Estado Estacionário, no qual o Universo não teria tido uma origem: ele existiria eternamente e, em média, aparentaria ser sempre o mesmo. Ora, um Universo infinitamente velho não tem um momento de criação, o que resolve a questão da Primeira Causa.

O Estado Estacionário foi proposto na mesma época do modelo do Big Bang, uma adaptação mais concreta das idéias de Lemaître que inclui uma modificação fundamental: que, em sua infância, o Universo não só teria sido extremamente denso, mas, também, extremamente quente. Ambos os modelos fizeram suposições cruciais, justificadas apenas subjetivamente. O modelo do Estado Estacionário supõe que, para tornar a expansão do Universo compatível com a idéia de um Universo em média idêntico, a matéria teria de ser criada na mesma proporção em que a expansão a dilui (daí o nome, "Estado Estacionário").

Essa criação de matéria viola a lei da conservação de energia (energia e matéria aqui são usadas conjuntamente). O trio de ingleses argumentou que a violação era tão pequena que não poderia ser detectada. Como toda medida tem uma precisão limitada, só se pode afirmar que a energia é conservada dentro dessa precisão. Ou seja, talvez ela seja violada, mas não podemos sabê-lo. Já o modelo do Big Bang, conforme sua proposição por George Gamow e seus colaboradores, supõe uma receita para a matéria que preenchesse o Universo inicialmente (prótons, nêutrons, elétrons e radiação), sem se preocupar, tal como Lemaître, com a origem dessa matéria. Para eles, o importante era o que eles poderiam prever com o seu modelo. Portanto, enquanto um modelo tentou resolver a questão da Primeira Causa supondo um Universo infinitamente velho, o outro deixou a questão de lado, adotando uma postura mais pragmática.

Hoje, o modelo do Estado Estacionário foi deixado de lado, pois é incapaz de explicar certas propriedades do Universo. Já o modelo do Big Bang vem sendo coroado de sucesso. O que deixa, mais uma vez, a questão da Primeira Causa. Mas essa discussão fica para outra semana.

domingo, 3 de junho de 2001

O astrônomo e o papa

Poucos episódios na longa história de conflitos entre a ciência e a religião são tão conhecidos como o que ocorreu entre o grande cientista italiano Galileu Galilei e a Igreja Católica durante as primeiras décadas do século 17. De um lado, temos Galileu, o cientista mais respeitado da Itália, brilhante e arrogante, sua personalidade uma complexa mistura de um aguçado racionalismo e uma profunda fé. Do outro, a Igreja Católica, que na época passava por sérios problemas devido à emergência da Reforma protestante, que acusava o papa, os bispos e os cardeais de corrupção e decadência. Essa não era uma boa hora para desafiar a autoridade eclesiástica. Mas foi exatamente isso o que fez Galileu.

Em 1609, Galileu soube da invenção do telescópio por um fabricante de lentes holandês. Astutamente, apoderou-se da idéia, construindo seu próprio telescópio, bem mais potente do que os existentes na Holanda. Seu plano era vendê-lo para o Senado de Veneza, na época uma importante potência marítima. Galileu convenceu o Senado da importância do telescópio como arma de defesa, já que ele permitia a identificação de navios inimigos a distâncias bem maiores do que as perceptíveis a olho nu.

Mas Galileu não era apenas um bom homem de negócios. Ele foi o primeiro a apontar o telescópio para os céus, descobrindo mundos jamais vistos. Entre as suas descobertas cito apenas duas, as irregularidades na superfície da Lua e as quatro maiores luas de Júpiter.

Ambas descobertas iam de encontro às idéias de Aristóteles, que, mesmo tendo sido elaborados 2.000 anos antes, ainda eram fielmente ensinadas nas universidades. Mais ainda, a igreja havia forjado uma aliança com o aristotelismo, baseando sua teologia na premissa de que a Terra é o centro do cosmo e de que ela é imóvel. Segundo Aristóteles, a Lua, os planetas e as estrelas seriam feitos de éter, uma substância que não encontramos aqui na Terra. E todos os corpos celestes girariam em torno da Terra, carregados por esferas cristalinas, invisíveis aos olhos. Se a Lua tinha montanhas e vales, não poderia ser tão diferente da Terra, concluiu Galileu. E as esferas cristalinas certamente teriam sido estilhaçadas pelas luas de Júpiter.

Suas descobertas o convenceram da veracidade das idéias de Copérnico, de que o Sol era o centro do cosmo, e que a Terra era apenas um planeta entre os demais. (Se bem que Copérnico manteve as esferas cristalinas em seu modelo do Sistema Solar.) Como Galileu poderia conciliar o que seus olhos viam tão claramente com a estrutura dos céus apresentada pela igreja, baseada nas interpretações teológicas defendidas pelo clero? Como conciliar a fé e a razão?

Galileu não teve dúvida: use a razão para descrever a natureza e seus fenômenos e reveja, se necessário, as interpretações teológicas baseadas em observações errôneas do mundo. Afinal, argumentou Galileu, nossas interpretações da palavra de Deus podem estar equivocadas, mesmo que Ele jamais erre. Claro que os líderes eclesiásticos não gostaram de ter sua teologia ameaçada por um astrônomo -a autoridade da igreja já estava abalada o suficiente pela Reforma.

Mesmo após ter recebido uma ordem para abandonar tais opiniões em 1616, Galileu resolveu renovar o ataque quando seu amigo, o cardeal Maffeo Barberini, tornou-se o papa Urbano 8º. Seu plano era apresentar uma prova irrefutável do movimento da Terra, baseada em sua explicação das marés. Urbano concordou que Galileu escrevesse um livro sobre seus argumentos, contanto que ele incluísse a possibilidade de que Deus pudesse milagrosamente gerar as marés em uma Terra imóvel todos os dias.

Galileu pôs as opiniões do papa na voz de um personagem chamado Simplício, com o óbvio intuito de ridicularizá-lo. Como resultado, foi detido pela Inquisição e, em 1633, forçado (após visitar um calabouço com vários instrumentos de tortura) a renunciar a suas opiniões. A igreja venceu a batalha, mas, claro, perdeu a guerra: em 1642, ano em que morreu Galileu, nasceu Isaac Newton, que comprovaria as idéias do florentino.

Por que Galileu insistiu em contrariar a igreja? Ao que tudo indica, sua missão era dupla: fazer justiça às descobertas da razão e salvar a igreja de futuros embaraços. Para ele, a grandiosidade da obra divina não podia ser limitada por interpretações arbitrárias da Bíblia. Ela estava escrita nas estrelas.