domingo, 25 de março de 2001

Reflexões dominicais sobre ética e ciência

A ciência precisa de liberdade para progredir. É difícil imaginar que idéias possam fluir em uma realidade cheia de obstáculos morais e censuras legislativas. A ciência, aqui, não difere de cultura em geral: é difícil também imaginar que a produtividade cultural possa sobreviver apenas clandestinamente, se bem que esse foi e é o caso em ditaduras militares ou religiosas. A censura e a rigidez moral castram a criatividade, mas não conseguem destruí-la.
Por outro lado, se a ciência serve à sociedade, ela deve prestar contas ao cidadão. Afinal, ao menos em pesquisa mais básica, quem paga a conta são os governos, a partir da coleta de impostos. E, como quem paga os impostos é o cidadão, a produtividade científica é financiada, em grande parte, pela sociedade.

Claro, existe também a pesquisa financiada diretamente pela indústria, com fins lucrativos. Ou a pesquisa financiada pelo governo com fins militares. Com o desenvolvimento acelerado da tecnologia nos últimos 20 anos, essas linhas divisórias têm se tornado cada vez mais invisíveis. Um físico desenvolvendo um novo tipo de liga metálica pode estar interessado em suas propriedades a baixíssimas temperaturas (a ciência básica, pois baixas temperaturas não são viáveis comercialmente), ou na sua utilização na construção civil (a ciência aplicada), ou na sua utilização em mísseis intercontinentais (a ciência bélica). A liga metálica é a mesma, mas ela pode servir a propósitos completamente distintos.

Aqui surge um dilema para o cientista: até que ponto sua obrigação profissional deve interferir em sua atividade criativa? Será que o físico trabalhando em uma universidade, sabendo que sua nova liga metálica pode ser usada em mísseis, deve divulgar seus resultados?

Para citar um exemplo histórico, Leonardo da Vinci construiu várias armas de guerra para o seu patrono. Mas ele recusou-se a divulgar seus planos para a construção de um submarino, pois sabia que seu uso, aliado à perversidade do homem, provocaria mortes horrendas sob as águas. Da Vinci não queria ter seu nome associado a tal máquina de destruição. Hoje, apenas um submarino da Marinha norte-americana é capaz de carregar 24 mísseis nucleares de alcance intercontinental, suficientes para destruir uma boa fração da vida na Terra.

A lição dessa história é clara: nenhuma invenção permanecerá "escondida" por muito tempo. Alguém acabará por redescobri-la mais cedo ou mais tarde. Os norte-americanos ficaram completamente boquiabertos quando os soviéticos detonaram uma bomba atômica logo após o fim da Segunda Guerra, seguida de uma bomba de hidrogênio.

O Projeto Genoma, envolvendo centenas de cientistas espalhados pelo mundo, compete com laboratórios privados na corrida pelo mapeamento do genoma humano. A biotecnologia levanta uma série de novos desafios éticos, questões que a sociedade precisa confrontar. Este mês, um trio de médicos anunciou em Roma que a clonagem de humanos é uma questão de tempo. E não muito. Várias pessoas têm uma verdadeira aversão à idéia de que será possível construirmos cópias exatas de um ser humano. Mais ainda, com a manipulação direta do gene, será também possível "encomendar" uma pessoa, como encomendamos um terno no alfaiate. Essa cor de olhos, essa altura, essa cor de pele, um bom atleta, Q.I. alto.

A primeira reação é: "Mas que absurdo! Isso deve ser proibido!" Mas essa reação é inútil. Porque a pesquisa irá continuar, proibida ou não, do mesmo modo que jornalistas, músicos e cineastas continuam a trabalhar sob regimes de ditadura. Países irão adotar políticas diferentes, alguns mais liberais do que outros.

Veja o exemplo recente do Reino Unido, autorizando a pesquisa que usa embriões para buscar a cura de várias doenças. Portanto, fora laboratórios clandestinos, os cientistas podem sempre emigrar para países mais liberais. É fácil criticar os cientistas pela sua "ganância", por esse apetite de querer sempre ir em frente. Mas essa é justamente a força da ciência. Sem essa curiosidade, ela entra em estagnação. O que a sociedade deve exigir dos cientistas é um compromisso moral com a verdade, um franco diálogo em que as repercussões das pesquisas são discutidas abertamente. É hipócrita culpar o inventor da pólvora pela morte de todas as pessoas em guerras. Somos nós que vamos à guerra, nossos governos, nossos soldados, nossos cientistas.

domingo, 18 de março de 2001

A violenta ascensão e queda dos dinossauros

Hoje gostaria de abordar um tema que desperta o interesse de cientistas de várias áreas, desde a astrofísica e a geologia até a biologia e a paleontologia: o das causas violentas de ascensão e queda dos dinossauros. Como o leitor pode imaginar, qualquer tópico que misture tantas áreas diferentes de pesquisa cria também polêmica. O consenso vem apenas após muita briga, ou melhor, após pesquisa e discussão acadêmica.

Os dinossauros reinaram supremos sobre as outras espécies por mais de 100 milhões de anos. Há 65 milhões de anos, eles desapareceram em um intervalo curtíssimo de tempo. A evidência de que a extinção ocorreu rapidamente é baseada na espessura da chamada camada K/ T, que separa o Período Cretáceo do Terciário. Em termos geológicos, podemos imaginar que a superfície da Terra é como uma torta de várias camadas, cada uma com um sabor diferente. Do mesmo modo que, para preparar a torta, as camadas são superpostas uma após a outra, a superfície da Terra também retrata a ordem temporal com que as diferentes camadas de sedimentos foram depositadas. Quanto mais profunda for a camada, mais antiga ela é, funcionando como um calendário da história da Terra.

Vários estudos realizados dos dois "lados" da camada K/T mostram que, de fato, enquanto a camada correspondente ao Período Cretáceo é rica em fósseis de dinossauros, na camada do Terciário eles são quase que inexistentes. Essa conclusão não foi imediata: quando os fósseis são raros, a determinação de sua abundância é muito difícil. Fora isso, em 65 milhões de anos, um grande número de fósseis pode ter sido (e foi) destruído. Hoje está claro que os dinossauros desapareceram mesmo abruptamente há 65 milhões de anos.

A causa desse desaparecimento foi um dos focos das brigas, ou melhor, discussões acadêmicas, a que me referi acima. A maioria dos paleontólogos defendia a idéia de que a extinção dos dinossauros tivesse ocorrido gradualmente, devido a uma combinação de causas, incluindo atividade vulcânica, mudanças climáticas e desequilíbrio na cadeia alimentar. Dale Russell foi um dos poucos paleontólogos a propor um mecanismo diferente. Em 1971, junto com o astrofísico Wallace Tucker, Russell sugeriu que os dinossauros foram extintos devido à explosão de uma estrela (uma supernova) em nossa vizinhança, que bombardeou a Terra com doses letais de radiação.

O catastrofismo entrava triunfalmente na paleontologia.Durante a década de 80, ficou claro que 70% das espécies foram extintas há 65 milhões de anos devido ao impacto de um cometa ou um asteróide. A prova é baseada em dois fatos principais: primeiro, encontrou-se o elemento irídio na camada K/T em quantidades muito maiores do que o normal. Sabemos que esse elemento é bem mais abundante em asteróides e cometas do que na Terra. Segundo, a cratera causada pelo impacto foi descoberta na península de Yucatán, no México.

A extinção dos dinossauros permitiu que os mamíferos, até então bastante insignificantes, evoluíssem a ponto de, há 4 milhões de anos, surgirem os primeiros hominídeos. Sem o impacto, provavelmente não estaríamos aqui.A novidade maior é que, aparentemente, a era dos dinossauros também foi iniciada por um outro impacto cataclísmico. Na transição entre os Períodos Permiano e Triássico, há 250 milhões de anos, 95% das espécies foram dizimadas, tanto nos mares como em terra. Pelo que sabemos hoje, essa foi a maior extinção na história da vida na Terra. Ela foi também a extinção que criou as condições que facilitaram a evolução dos dinossauros. Recentemente, cientistas descobriram excesso de um composto de carbono chamado fulereno, que tem o formato de uma bola de futebol.

Como uma bola, essas moléculas bastante grandes podem armazenar gases em seu interior. Uma análise desses gases, principalmente hélio e argônio, mostrou que sua abundância relativa corresponde a quantidades observadas em meteoritos e não às encontradas na Terra. Ou seja, os fulerenos soterrados na camada P/T têm uma origem extraterrestre. Os dinossauros devem a sua ascensão e a sua queda à colisão de corpos celestes com a Terra. Nossa ascensão também se deve, em parte, ao mesmo motivo. Esperemos que não a nossa queda.

domingo, 11 de março de 2001

Réquiem para uma catedral do espaço

Dentro de poucos dias, o Pacífico Sul vai receber em torno de 40 toneladas de detritos fumegantes, os restos mortais da magnífica estação espacial russa conhecida como Mir. A maior parte das suas 135 toneladas será carbonizada durante a reentrada na atmosfera. Se tudo correr conforme o planejado, a reentrada se dará entre 13 e 18 de março, e o impacto, em uma área desabitada de 6.000 quilômetros por 200 quilômetros, entre a Nova Zelândia e a ilha de Páscoa.

Com o fim da estação Mir, se encerra uma página da história da exploração do espaço, o último capítulo da corrida espacial fomentada pela Guerra Fria.A estação Mir foi a primeira a ser construída a partir de módulos individuais, que podem ser conectados a uma estrutura principal. Essa arquitetura dá tremenda versatilidade à espaçonave, pois novos módulos podem ser adicionados já com a estrutura flutuando em torno da Terra.

Seu primeiro módulo, pesando 20 toneladas, com 13 metros de comprimento e 4,1 metros de diâmetro, foi posto em órbita no dia 19 de fevereiro de 1986, inaugurando 15 anos de exploração espacial, que incluíram a visita de 104 astronautas, russos e americanos, transportados em mais de 140 vôos e 60 missões de reabastecimento. Inúmeras experiências científicas foram realizadas na Mir, uma das mais importantes sendo o teste de como seres humanos se comportam em ambientes quase sem gravidade por longos períodos de tempo.

O médico russo Valeri Polyakov é o detentor atual do recorde de permanência, tendo ficado a bordo da Mir por 14 meses.Esse tipo de experimento é fundamental para o futuro do programa espacial, já que uma missão tripulada de ida e volta para Marte demoraria três anos (seis meses de viagem de ida, seis de viagem de volta e mais dois anos no destino, esperando o ponto justo entre as órbitas da Terra e de Marte que minimize a distância viajada e o combustível utilizado). Fora as mudanças fisiológicas causadas pela ausência prolongada de gravidade, os astronautas têm de lidar com as privações emocionais e o estresse causado ao enfrentarem situações de vida ou morte.

Outro problema é a exposição a doses bem mais altas de radiação do que as que recebemos aqui na Terra, protegidos pela atmosfera.Sem a experiência acumulada pelos russos com a Mir, a Estação Espacial Internacional (ISS), a nova catedral do espaço, não poderia ter sido construída. Sendo uma colaboração entre vários países, mas principalmente entre a Rússia e os EUA, a ISS também inaugura uma nova era no programa espacial, a da cooperação internacional. Se a queda do Muro de Berlim foi o símbolo terrestre do fim da Guerra Fria, a ISS é seu símbolo no espaço.

Na verdade, a ISS é um símbolo maior ainda, uma demonstração concreta da possibilidade de união entre os vários países e as diversas culturas da Terra em prol de um fim conjunto de interesse para toda a humanidade: nosso destino no espaço.A estação espacial Mir, em seus 15 anos de funcionamento, demonstrou a viabilidade de um programa prolongado de exploração espacial baseado em uma plataforma-mãe, um trampolim para o resto do cosmo.

Não é difícil imaginar um futuro onde teremos várias estações espaciais, ilhas espalhadas pelo Sistema Solar, onde missões vindas da Terra ou de outros planetas possam reabastecer seu combustível, sua tripulação possa "esticar as pernas" e dados científicos possam ser discutidos e analisados. Talvez, como no filme "Guerra nas Estrelas", algumas delas tenham até bares onde os astronautas possam beber uma cerveja e ouvir um jazz. Isso supondo que essas estruturas sejam capazes de gerar sua própria gravidade, o que é em princípio possível por meio de rotação ou aceleração (os leitores que assistiram ao filme "2001: Uma Odisséia no Espaço" devem estar lembrados de como a estação espacial girava).

Quando era garoto, eu estava convencido de que em 2001 estaríamos todos viajando em espaçonaves, quem sabe até explorando os mistérios do Sistema Solar em missões tripuladas. Mas os sonhos são assim mesmo, bem mais apressados do que a realidade. Hoje continuo convencido de que isso tudo irá acontecer. Só prefiro não arriscar quando. Mas seja lá quando for, espero que a velha e sábia Mir continue viva na nossa memória como tendo sido o primeiro trampolim para o espaço.

domingo, 4 de março de 2001

A estufa global

O astrônomo e divulgador de ciência norte-americano Carl Sagan foi o primeiro a propor uma explicação para a curiosa atmosfera de Vênus, um planeta coberto por uma espessa camada de gases que deixa o calor do Sol entrar, mas pouco dele sair. Podemos fazer uma analogia com cobertores. Nosso corpo irradia calor constantemente.

A função do cobertor, ou de um casaco, é manter esse calor perto de nosso corpo, de modo a evitar que ele resfrie. Quanto maior o número de cobertores, mais quente você se sentirá, pois menos calor poderá escapar. A atmosfera de Vênus, 90 vezes mais maciça do que a da Terra, funciona como um cobertor extremamente espesso, deixando pouquíssimo do calor perto da superfície escapar.Sagan argumentou corretamente que o problema com Vênus é a sua proximidade do Sol. Se puséssemos a Terra na posição de Vênus, a temperatura aumentaria dramaticamente, levando a uma maior evaporação dos oceanos. Mais ainda, rochas que retêm dióxido de carbono (CO2), o rei dos gases que causam o efeito estufa, liberariam o gás com maior rapidez, aumentando sua concentração na atmosfera.

O novo excesso de vapor d'água e de CO2 bloquearia o fluxo de calor da Terra para o espaço, aumentando ainda mais a temperatura na superfície. Esse aumento de temperatura desencadearia um efeito estufa acelerado (como se o cobertor engrossasse com o tempo), o que rapidamente transformaria a Terra em Vênus, que tem temperaturas de 450C, dia e noite. Um verdadeiro inferno.Felizmente, a Terra não está tão perto do Sol quanto Vênus. Infelizmente, nós estamos trabalhando arduamente para engrossar o nosso próprio cobertor, com o aumento desenfreado da quantidade de emissão de CO2 e outros gases que provocam o efeito estufa em nossa atmosfera.

Um estudo do Painel Internacional de Mudança Climática (IPCC), com a participação de 700 cientistas do mundo inteiro, acaba de publicar parcialmente os resultados de seu estudo, encomendado pelas Nações Unidas e o mais detalhado até o momento.As notícias, como era de esperar, são péssimas. Na coluna de 21 de dezembro de 1997, comentei sobre os resultados do mesmo Painel, divulgados em 1995. Os resultados atuais são muito mais precisos, devido a avanços na modelagem do fluxo de calor na atmosfera e ao poder dos computadores. Por exemplo, a estação de trabalho que eu usava em 1995 era a mais rápida do mundo, com processadores de 266 MHz. Hoje, é relativamente fácil comprar um PC com processadores de frequência três vezes maior.

Em 1995, o painel do IPCC estimava que, até o ano 2001, a temperatura média global aumentaria entre 1C e 3,5C. A estimativa agora é de que o aumento possa chegar a 10,4C nos próximos cem anos, o maior aumento de temperatura nos últimos 10 mil anos, que teria consequências climáticas gravíssimas para todo o planeta.Sem querer soar como o profeta do apocalipse (que, aliás, é o assunto de meu próximo livro), mudanças de temperatura a esse nível causariam secas devastadoras, enchentes, tempestades violentíssimas e um aumento geral da pestilência, principalmente da malária e do cólera. Vários cientistas alertam para outros tipos de doenças que se manifestariam mais agressivamente, com a proliferação de insetos transmissores.

E adivinhe quem sofrerá as piores consequências? Os países da África, da Ásia e da América Latina, aí incluído o Brasil.Alguns países industrializados, incluindo o maior poluente do mundo, os EUA, ainda não ratificaram o Protocolo de Kyoto de 1997, que requer um corte na emissão dos gases que causam o efeito estufa em 5%, tendo por base os níveis de 1990, até 2012. Nem isso. O que fazer?Alguns, inclusive cientistas, só acreditam vendo e não dão credibilidade ao IPCC. Eles são aqueles que só após a casa queimar se dão conta de que não vão ter onde morar. No mínimo, podemos agir localmente, comprando carros econômicos, indo junto com colegas ao trabalho, usando transportes públicos (quando seguro), usando menos energia em casa e no escritório e criticando aqueles que não o fazem. Caso contrário, estaremos contribuindo para tornar nossa Terra um lugar insuportável para as futuras gerações.