domingo, 26 de novembro de 2006

Ateísmo radical



A ciência não deve se propor a tirar Deus das pessoas


Não é surpresa para ninguém que existem tensões entre ciência e religião. Santo Agostinho, o primeiro grande teólogo do cristianismo, afirmava que o pensamento aplicado à natureza leva ao pecado e à perdição; que, para obter a redenção, o importante é dedicar-se à adoração do eterno.

Mas a verdade é que a relação entre ciência e religião é bem mais complexa do que essa divisão superficial entre dois campos, o da razão e o do espírito. Infelizmente, volta e meia aparecem depoimentos que exacerbam exatamente essa polarização destrutiva. É o caso de três livros recentes: "O Fim da Fé" ("The End of Faith"), de Sam Harris; "Quebrando o Feitiço" ("Breaking the Spell"), de Daniel Dennett; e "A Delusão Divina" ("The God Delusion"), de Richard Dawkins. É sobre o livro de Dawkins, o mais virulento de todos os três, que escrevo hoje.

Primeiro, vamos às apresentações. Richard Dawkins é um biólogo especializado na teoria da evolução, professor em Oxford, Inglaterra, e um dos divulgadores de ciência mais famosos do mundo, com best-sellers como "O Gene Egoísta" e "O Relojoeiro Cego". Dawkins é um ateu declarado. Até aí tudo bem; muitos cientistas o são. Para muitos, mas não todos, é importante frisar isso: a conciliação entre uma descrição científica do mundo -baseada na obtenção de informação empírica da natureza por meio de experimentos e observações quantitativas- e a aceitação de uma realidade sobrenatural, inescrutável à razão humana, é impossível. Já para alguns, o estudo da ciência serve para comprovar a beleza da criação. Imagino que Dawkins considere esses cientistas religiosos no mínimo incompetentes.

Para ele, a ciência é um clube fechado, onde só entram aqueles que seguem os preceitos do seu ateísmo, tão radical e intolerante quanto qualquer extremismo religioso. Dawkins prega a intolerância completa no que diz respeito à fé, exatamente a mesma intolerância a que se opõe.
Vejamos um de seus argumentos. Se a complexidade do mundo foi criada por uma divindade, esta deve ser necessariamente mais complexa do que tudo o que criou. Porém, segundo a teoria da evolução, isso é impossível: a complexidade é produto da evolução. A divindade criadora deveria ter sido a última e não a primeira a surgir.

A quem Dawkins dirige um argumento desses? Certamente não aos religiosos. Qualquer pessoa que conheça um mínimo de teologia sabe muito bem que a idéia fundamental das religiões é que o divino não segue as regras causais que regem o mundo material. Deuses não evoluem; são absolutos, existem fora do tempo. Ele afirma que seu alvo são os "indecisos", que não acreditam em causas sobrenaturais mas não se declaram ateus. Será esse o modo de resolver o embate entre ciência e religião?

Na minha humilde opinião, absolutamente não. A atitude belicosa e intolerante do cientista britânico só causa mais intolerância e confusão. Seu grande erro é negar a necessidade que a maioria absoluta das pessoas tem de associar uma dimensão espiritual às suas vidas.
Um erro meio parecido com o do materialismo dialético dos comunistas, em que tudo é atribuído a causas materiais. Tirar Deus das pessoas e colocar um líder fascista no seu lugar não dá certo. A ciência não deve se propor a tirar Deus das pessoas. Se é essa a sua guerra, então ela já perdeu.

O que a ciência pode fazer é proporcionar outra forma de espiritualidade, ligada ao mundo natural e não ao sobrenatural, à cativante magia da descoberta. É esse naturalismo, essa entrega à natureza e aos seus mistérios, que dá à ciência a dimensão espiritual que a torna humana.

domingo, 19 de novembro de 2006

O humanismo de Darwin



O projeto darwiniano é explicar a vida a partir padrões fundamentais


Para muitas pessoas, especialmente as mais religiosas, as idéias de Charles Darwin, o naturalista inglês que no século 19 propôs a teoria da evolução pela seleção natural, são um ultraje: afirmar que nós, homens e mulheres, sofisticados e conscientes, somos nada mais do que macacos evoluídos é inaceitável.

Especialmente ao contrastarmos esta visão "vil" da humanidade com a da Bíblia, que nos coloca tão perto de Deus, criados por Ele à sua imagem e semelhança. De semideuses a macacos é um pulo enorme. Darwin conseguiu, em apenas uma geração, virar ao avesso milhares de anos de crenças.

Como não podia deixar de ser, as idéias de Darwin criaram imensa controvérsia. Ele mesmo preferiu evitar a exposição e as disputas públicas, deixando que outros o defendessem, como é o caso de T. H. Huxley, o biólogo que tornou-se "buldogue" de Darwin.

Em ensaio recente para a revista "The New Yorker", Adam Gopnik refaz a trajetória literária de Darwin, mostrando que mais do que um naturalista, Darwin era um romancista da ciência: seu modo de escrever ia além da simples exposição de fatos e conclusões. Existia uma estratégia literária, com o objetivo de tornar o relato tão natural que a conclusão final fosse absolutamente óbvia e inevitável, quase desnecessária. Darwin sabia muito bem que suas idéias encontrariam resistência acirrada.

Na "Origem das Espécies", por exemplo, Darwin passa grande parte do livro discursando sobre as técnicas dos criadores de pombos, cachorros e outros animais domésticos, mostrando como a reprodução controlada fixa características desejadas na prole, um fato mundano ao qual ninguém pode se opor. Darwin então mostra que, mesmo se não forçadas pelos criadores, mudanças ocorrem por si mesmas a partir da variação natural entre os indivíduos de uma dada população; o ambiente faria o papel da mão humana, selecionando certos traços.

Para ele, a incrível variação da vida é conseqüência essencialmente de dois fatores: intervalos de tempo geológicos, muito além dos que contemplamos nos 70 ou 80 anos que vivemos, e mudanças que podem ser passadas de geração em geração. Darwin não conhecia as mutações genéticas, mas sua teoria antevê o mecanismo básico das transformações entre animais responsável pela diversidade da vida.

O projeto darwiniano é explicar a imensa variedade da vida a partir de apenas alguns padrões fundamentais. É essa a função de qualquer teoria científica, seja ela em física, química ou biologia: descrever o maior número de fenômenos ou observações do mundo natural a partir do menor número de princípios sem qualquer intervenção de entidades sobrenaturais. Todas as respostas para os mistérios da natureza, da origem das espécies à formação do Sol e dos planetas, podem ser encontradas na própria natureza. O estilo de Darwin é o da insistência, a famosa frase latina "guta cavat lapidem" (água mole em pedra dura), exaustivamente anestesiando qualquer possibilidade de resistência por parte do leitor.

Em obras posteriores, Darwin argumenta que os homens são macacos evoluídos: "Aprendemos então que o homem descende de um quadrúpede peludo, dotado de orelhas pontudas e rabo, provavelmente arborícola, que habitava o Velho Mundo". Essa afirmação, claro, aparece só depois de centenas de páginas de exemplos comparando nosso comportamento sexual ao de animais. Em seus escritos, Darwin mostra que o homem não é mais apenas a medida de todas as coisas; todas as coisas podem ser medidas por ele. É essa dimensão humana que damos ao mundo que define a essência do humanismo.

terça-feira, 14 de novembro de 2006

MARCELO GLEISER ESCREVE LIVRO PARA HUMANIZAR IMAGEM DO CIENTISTA

Físico e escritor fala ao G1 sobre seu primeiro romance e aborda temas polêmicos, como a relação entre ciência e religião


Salvador Nogueira, do G1, em São Paulo entre em contato

O físico Marcelo Gleiser
Já famoso por seus livros de divulgação científica, o físico Marcelo Gleiser resolveu investir num novo gênero literário. Sua última obra, “A Harmonia do Mundo”, é um romance. Baseada em fatos reais, a narrativa retrata a vida do astrônomo alemão Johannes Kepler, o homem que, em pleno século XVII, descobriu que os planetas não orbitavam circularmente ao redor do Sol, mas sim seguiam órbitas elípticas (ovais).

Embora seja um dos maiores gênios de seu tempo, Kepler foi ofuscado por outros gigantes, como o italiano Galileu Galilei e o inglês Isaac Newton. “Pois é, essa é uma outra razão pela qual eu escrevi o livro”, explica Gleiser. “A vida do Kepler é muito mais interessante que a vida do Galileu e a do Newton. Só que as pessoas não dão muita bola para ele, eu nunca entendi exatamente por quê.”

Apostando na possibilidade de trazer essa história à tona, o físico brasileiro optou pela ficção, para atingir o maior número de pessoas possível. “Eu achei que romancear a história de um grande cientista ia não só levar essa história para um número maior de pessoas, mas também humanizar o cientista, mostrar que ele não é só uma máquina de fazer cálculos, mas que é uma pessoa, com ambições, com tristezas, com sucessos, com fracassos e tal”, diz.

A tônica do livro é a relação entre o pupilo, Kepler, e o mestre, Michael Maestlin, o homem que apresentou as controversas idéias copernicanas ao então jovem estudante de astronomia. Gleiser diz que há muito dele mesmo nesses dois personagens.

Essa ambivalência literária traz a inevitável pergunta: o que dá mais prazer, escrever romances ou livros de divulgação científica? Gleiser responde isso e fala de outros temas, como a relação da ciência com a religião, na entrevista que concedeu ao G1. Leia abaixo o bate-papo ou, se preferir, ouça o áudio, clicando aqui.

G1 - Por que um romance, de onde saiu a idéia de escrever um romance?
Marcelo Gleiser - Quando eu comecei a ler sobre a vida do Kepler com mais seriedade, que foi mais ou menos em 1995, quando eu estava escrevendo meu primeiro livro, "A Dança do Universo", percebi que a história da vida dele era uma grande história. Não só pelos feitos científicos dele, mas pelas coisas que aconteceram com ele, o que estava acontecendo na Europa naquela hora, guerra entre os protestantes e católicos, caça às bruxas e tal. E eu me lembro, em 1997, jantando com a minha mulher, quando eu estava lançando o "Dança" aqui, falei: "sabe de uma coisa, a história do Kepler dava um grande romance e daria um grande filme também", e essa coisa ficou na minha cabeça. E comecei a pensar em como fazer isso, e depois que lancei "O Fim da Terra e do Céu", em 2001, eu requisitei uma bolsa da universidade para poder ir para a Europa pesquisar um pouco sobre a vida dele, ganhei a bolsa e daí fiz as pesquisas e resolvi escrever esse romance. Fora esse lado, eu também pensei o seguinte: as pessoas que lêem livros de divulgação científica representam uma faixa pequena da população, uma faixa que tem interesse em ciência, "ah, saiu um livro sobre, sei lá, cosmologia, sobre buracos negros, sobre mecânica quântica, vou comprar, vou comprar". Mas eu acho que o número de pessoas que lê romances é maior, em geral. E eu achei que romancear a história de um grande cientista ia não só levar essa história para um número maior de pessoas, que em princípio não se interessariam por ciência, mas também humanizar o cientista, mostrar que ele não é só uma máquina de fazer cálculos, mas que é uma pessoa, com ambições, com tristezas, com sucessos, com fracassos e tal. Eu acho isso muito importante para mudar um pouco a percepção que as pessoas têm da ciência, de que a ciência é uma coisa fria e distante da sociedade.

G1 - E ao longo do trabalho de escrever esse livro, você acabou criando uma identificação com o personagem? Quanto existe do Gleiser no Kepler do seu livro?
Gleiser - Eu acho que você cria uma identificação com os seus personagens. Na verdade, certamente tem muito de mim no Kepler. Tem umas coincidências interessantes. Por exemplo: minha mãe também me levou para ver um eclipse quando eu tinha seis anos de idade. Isso é uma coisa que eu conto no livro que a mãe do Kepler também fez. Ele também teve dois casamentos, o primeiro não muito bom, o segundo muito bom. Então, quer dizer, existem certas coincidências. E, claro, todo cientista tem mentores. Uma das coisas importantes nesse romance é a relação entre o mentor e o pupilo. Então, o Maestlin, que é uma personagem importantíssima, talvez até mais importante do que o Kepler na estrutura do romance, também veio da minha cabeça. Ele também é uma figura de um mentor, e aí representando um pouco o drama de um cara mais conservador que tem que enfrentar idéias modernas, a história do gênio, da mediocridade, da mortalidade, da imortalidade quando você constrói uma grande obra. Então eu coloquei todos esses meus pensamentos, esses questionamentos sobre a relação mentor-aluno, na cabeça do Maestlin. Então, o Kepler tem coisas minhas, mas o Maestlin também tem coisas minhas. Todos eles são uma espécie de voz que sai da mesma cabeça, que é a cabeça do autor.

G1 - Você apresenta o Kepler como um cientista que busca a inspiração no divino para desvendar a natureza. Você acha que essa é uma abordagem possível na ciência hoje? Buscar inspiração numa estrutura mais avançada, superior, que tem uma lógica subjacente?
Gleiser - Então, você já respondeu à pergunta. Se Deus é entendido como uma metáfora, não como... até existem, devo dizer, existem. Vinte por cento, se não me engano, dos cientistas são pessoas religiosas, que vão à sinagoga, vão à igreja, aos templos que forem. Ou mais até. E são pessoas que dizem que a ciência deles simplesmente comprova ou reforça a fé que eles têm em Deus e na construção da natureza. Então, nisso eles são muito parecidos com Kepler, Newton e Copérnico, menos com Galileu, mas também um pouco. Agora, eu acho que o outro lado, quer dizer, essa metáfora de que a natureza é um grande enigma, um grande mistério, e que através da razão a gente pode tentar compreender, se não todo, partes desse mistério. Isso daí é uma definição da ciência que é essencialmente espiritual. O Einstein mesmo era um cara que dizia isso. Então, existe sim, eu acho, em muitos cientistas, não vou dizer em todos, esse apego à natureza como sendo um grande desafio, um mistério que cabe a nós decifrar. E nesse sentido eu acho que isso cria uma relação espiritual entre o homem e a natureza em que a ciência é a ponte. Mas você tem também os caras que são totalmente ateus e que não querem saber de nada disso, que fazem as contas deles completamente sem uma preocupação, digamos, mais metafísica do trabalho deles. Depende um pouco da área em que você trabalha. Eu acho que o pessoal que mexe com questões relacionadas com origem, o big bang, origem da vida, são pessoas que têm um interesse maior na repercussão filosófica da ciência do que o pessoal que trabalha com propriedades de laser, cristais, semicondutores, supercondutividade e coisas do gênero.

G1 - Embora o Kepler seja reconhecido pelos cientistas como o grande inovador de sua era na astronomia por trocar os círculos por elipses, que foi uma atitude muito corajosa, ele não é muito conhecido do público em geral. Por que você acha que Galileu e Newton acabaram muito mais conhecidos que Kepler?
Gleiser - Pois é, essa é uma outra razão pela qual eu escrevi o livro. A vida do Kepler é muito mais interessante que a vida do Galileu e a do Newton. Só que, como você disse, as pessoas não dão muita bola para ele, eu nunca entendi exatamente por quê. Mas acho que a maneira de responder isso é a seguinte: o Newton foi um fenômeno que não tem outro na história da ciência. O cara criou toda uma visão de mundo, um modo de pensar e construir a realidade física, que é o modo que a gente vê o mundo, na verdade. A física dele é uma física que unificou a física dos céus e a física da terra. É por causa do Newton que a gente sabe das três leis de movimento, da lei da gravitação universal. Ele realmente transcendeu o cientista. O cara virou assim: "ó, é assim que o mundo funciona". Então ele virou um superstar mesmo. E a capacidade intelectual dele era tão absurda que o cara é meio-deus, meio-gente. Então ele é um dos poucos que em vida já era um cara superfamoso. Então ele ofusca os antecessores dele, inclusive... todo mundo. (Risos) Basicamente, se você tiver que resumir a história da ciência, até Newton o mundo era aristotélico, depois de Newton o mundo virou newtoniano. Hoje o mundo é einsteiniano, mas ninguém sabe, porque os efeitos do Einstein não são perceptíveis no nosso dia-a-dia.
O Galileu é famoso obviamente por ter se tornado um mártir da ciência. Por causa da relação dele com a igreja, a inquisição, e aquela coisa da busca pela verdade e a repressão da igreja, que é toda uma distorção do que realmente aconteceu. Mas o que fica na percepção social do Galileu é que ele lutou contra a igreja, sozinho, pela liberdade das idéias. E não é nada disso, mas ficou isso, então ele ficou famoso como mártir da ciência. O Kepler vivia na mesma época que o Galileu, e tinha as lutas dele, e depois tinha outra coisa: o jeito do Kepler escrever sobre ciência não era um jeito moderno de se escrever sobre ciência. O Galileu, com os diálogos e tal, era um jeito mais moderno de escrever sobre ciência. O Newton certamente era. Ele escrevia de forma matemática. Se você ler o livro do Newton, é tudo assim: proposição, teorema, demonstração, corolário, é como se fosse um tratado de matemática. Tanto que chama "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural". Já o Kepler não. Ele misturava tudo, falava de misticismo, números, astrologia, os textos dele eram uma confusão danada. Ele era uma figura de transição entre o medieval e o moderno. E isso afastou muita gente das obras dele, inclusive o Galileu. E o Newton é que foi pescar nas obras do Kepler a importância dos resultados dele. Então, eu acho que o estilo do Kepler não era o científico moderno, e a própria personalidade dele também, e por isso ele ficou mais desconhecido das pessoas.

G1 - Como foi o trabalho de pesquisa? Você se divertiu pesquisando para esse livro, as viagens que você fez? Que tipo de relação você teve com o convívio do ambiente em que viveu Kepler?
Gleiser - Eu me diverti muito. Foi muito legal ter feito isso, quer dizer, eu basicamente fui da casa em que ele nasceu até onde ele morreu. Fui seguindo todos os passos dele, na Alemanha, na Áustria, em Praga. Foi sensacional. Até foi engraçado que, olha só que coincidência, no dia em que eu cheguei na cidade em que ele nasceu, em Weil, eu fui ao museu, a casa dele é um museu hoje, e a curadora lá do museu me recebeu, expliquei que eu era um professor nos Estados Unidos que estava escrevendo um livro sobre o Kepler. Ela falou, "ah, que ótimo! Hoje à noite vai ter uma festa na escola de ensino médio, então vem com a gente". Então ela pegou no hotel, era uma senhora, fui à tal da festa, não entendi nada, porque era em alemão e eu não sei alemão. Mas no meio da festa teve uma encenação de um diálogo entre o Tycho Brahe e o Kepler, os dois vestidos a caráter, porque o nome da escola era Gymnasium Johannes Kepler. Então foi muito legal, uma coincidência incrível no dia que eu chego lá ter isso. E a viagem foi muito boa. Eu tentei dentro do possível entrar na cabeça dele. Inclusive, no livro, o diário do Kepler é um diário que é fictício -- esse diário não existe. Foi uma maneira de eu criar um mecanismo para poder escrever na primeira pessoa, para poder descrever para as pessoas como o Kepler pensava, o processo criativo dele. E Praga é um lugar sensacional. Então, a viagem foi muito legal. E eu tive oportunidade em Tübingen, onde ele estudou, de sentar na mesa aparentemente onde ele sentava, pegar o livro-texto de astronomia que ele estudava, que era escrito pelo Maestlin. Então realmente eu tentei da melhor maneira possível recriar essa época e a maneira como as pessoas pensavam nessa época.

G1 - O livro deixa um mistério. A gente nunca sabe o que diz a carta do Kepler ao Maestlin. Você chegou a escrever essa carta ou era só um artifício para carregar o leitor até o final?
Gleiser - Era um artifício. E eu não escrevi a carta, mas eu pensei durante muitos meses sobre a carta. E eu resolvi não escrever, mas se você prestar atenção, nas últimas páginas, em que o Maestlin está pensando na carta, você vai ver que faz todo o sentido do mundo ele não ter aberto essa carta, porque a carta seria essencialmente uma carta em que o Kepler perdoaria o Maestlin, por tê-lo abandonado, por tê-lo deixado... uma carta de amor, vamos dizer assim, do pupilo ao mestre. E o Maestlin, depois disso tudo, ele não queria mais ser perdoado. Ele queria aceitar o fato de que ele abandonou e ele foi meio, vamos dizer assim, ele não queria que o Kepler perdoasse, ele queria aceitar a culpa, ele se julgou, se condenou como culpado, e a morte dele no final do livro é uma redenção. Então, eu acho que ter escrito uma carta dizendo, "olha, meu querido mestre, eu entendo que você tenha me abandonado, mas eu sempre te amei etc. etc.", ia perder a força dramática do livro e de certa maneira ia fazer com que o livro ficasse muito mais água com açúcar do que a história real deles foi.

G1 - Foi mais divertido escrever romance ou livro de divulgação?
Gleiser - Ah, romance. Não sei se é mais divertido, mas é muito mais intenso. É uma relação emocional com a obra muito maior do que quando você escreve um livro de não-ficção. E, eu vou dizer para você, é uma coisa muito sedutora.

domingo, 5 de novembro de 2006

A controvérsia das supercordas



Ou a teoria se prova correta ou nunca se provará incorreta


Os físicos teóricos estão em conflito; se não em conflito, ao menos divididos em campos de opinião. ("Guerra" é um termo forte demais para essa disputa acadêmica.) De um lado estão os teóricos que trabalham nas supercordas: não se equilibrando nelas, mas usando-as como alicerces de toda uma nova descrição da matéria. Do outro estão os seus críticos, físicos que acham que as abstrações envolvidas na teoria das supercordas são apenas isso, abstrações, que não têm nada a ver com a natureza. Toquei no assunto na coluna de 24 de setembro ("Entre a física e a metafísica") mas, devido a pedidos de vários leitores, volto a abordá-lo.

Eis uma breve história das supercordas. Uma das questões mais complexas da física de altas energias é a estrutura dos prótons e de outras partículas parecidas. Prótons são compostos por três partículas menores, chamadas quarks. O mistério é que ninguém vê quarks livres em experimentos, como vemos prótons ou elétrons. Quarks estão confinados nos prótons, como prisioneiros. Por que isso? Alguns modelos supõem que os quarks estão ligados por tubos ou cordas. Quanto mais distantes os quarks, mais tensão nas cordas e, portanto, mais difícil é separá-los.

Em meados dos anos 1980, dois físicos resolveram usar essas cordas num projeto bem mais ambicioso. Não para confinar quarks nos prótons, mas como base de uma teoria que unificaria toda a física de altas energias. A idéia é que essas cordas vibram em freqüências diversas, da mesma forma que as cordas de violão. Cada modo de vibração corresponde a uma energia e essa energia está associada a uma partícula fundamental. Portanto, elétrons seriam na verdade cordas minúsculas vibrando em certa frequência, quarks em outra e assim por diante. Como em física de altas energias as forças entre as partículas também são partículas (por exemplo, a atração entre cargas elétricas é conseqüência de partículas chamadas fótons), essas cordas fundamentais unificam matéria e força: todas as partículas de matéria e as quatro forças, inclusive a gravidade, são reduzidas a cordas vibrando. É uma bela idéia que atraiu multidões de jovens teóricos.

Os dois físicos demonstraram que, para que fizesse sentido, a teoria precisava ser formulada em dez dimensões: uma para o tempo e nove espaciais -seis a mais do que as que vemos. Esse foi o primeiro problema: prever um Universo com seis dimensões adicionais. Tudo bem -talvez elas sejam pequenas a ponto de serem invisíveis aos nossos experimentos, feito uma mangueira vista de muito longe, que parece uma linha e não um longo cilindro. Eu mesmo trabalhei nisso durante meu doutorado, tentando esconder as dimensões extra.

O formato ou geometria dessas dimensões afeta as previsões da teoria. E, claro, a idéia é reproduzir o mundo em que vivemos. Só que... aparentemente existe um número absurdamente grande de geometrias possíveis e ninguém sabe como selecionar uma delas. Ou seja, a teoria ainda não conseguiu, após mais de 20 anos, estabelecer contato com o mundo real. "É uma questão de tempo", dizem os teóricos das supercordas; "não, é uma enorme perda de tempo", dizem seus críticos, afirmando que os teóricos de cordas têm uma mentalidade de clã, cegos pelos seus dogmas.

O maior problema é que a teoria das supercordas é difícil de ser refutada; dá-se um jeito aqui ou ali, e a possibilidade de testá-la fica além dos experimentos. Portanto, ou damos sorte e ela é provada correta, ou jamais será provada incorreta. Clã ou não, a situação é delicada, especialmente se mais duas décadas se passarem e a teoria continuar sem confirmação.