domingo, 29 de abril de 2001

Ver para crer

Em recente visita ao Brasil, fui convidado a participar de um programa de TV para jovens. O programa é ao vivo e, naquele dia, tratava de ciência: sua importância em nossas vidas, seu impacto em nosso futuro etc. No estúdio, além de convidados como os atores Carlos Palma e Oswaldo Mendes, do elenco da peça "Copenhagen", e dois jovens pesquisadores, estavam também uns 30 estudantes de ensino médio de uma escola particular da Grande São Paulo.

Durante o programa, a apresentadora fez uma pergunta à sua audiência: "Diga o nome de dois cientistas". Após um longo intervalo, um braço levanta-se corajosamente: "Graham Bell e Thomas Edison". "E aí Marcelo, vale?", pergunta a apresentadora. "Não", respondo, "ambos eram inventores e não cientistas." Finalmente, para alívio de todos, alguém responde: "Einstein e Rutherford".No final do programa, a apresentadora pede-me que faça duas perguntas para a audiência. "E agora?", reflito.

Esse programa é ao vivo, sem a garantia da edição. Bem, farei duas perguntas simples, para evitar problemas. Dirigindo-me à apresentadora, faço sinal de que estou pronto. Primeira pergunta: "O que causou a extinção dos dinossauros?" A resposta vem quase que imediatamente: "O impacto de um asteróide". "Muito bem", digo entusiasmado."Agora, a segunda pergunta: se você jogar uma pena e uma bola de boliche ao mesmo tempo do alto de um edifício, qual cairá primeiro?" A resposta veio em coro: "A pena! A pena!". Eu olho incrédulo para a apresentadora, para os atores e para os pesquisadores. "Como é, rapaziada?" -eu digo. "A pena?" -"É professor, a pena", insiste a turma.

Felizmente, um rapaz diz, meio encabulado, "as duas caem ao mesmo tempo". "É, se desprezarmos a resistência do ar, as duas caem ao mesmo tempo", respondo.O mais incrível, ou talvez triste, dessa história foi a razão que os estudantes me deram justificando sua resposta: "Ah, professor, essa deve ser uma pergunta com truque". Pergunta com truque. O que pode ser mais óbvio do que jogar uma pena e uma bola de boliche no chão?Eu não falei em resistência do ar ou qualquer outra complicação, apenas o simples e corriqueiro ato de jogar dois corpos no chão, que requer um mínimo absoluto de observação.

Mas a educação recebida por esses jovens, como é de praxe em tantas escolas, não favorece a observação, mas o "truque", isto é, a questão com um certo nível de raciocínio, desenhada para "pegar" aqueles mais inocentes nas provas de vestibular. Porque me pareceu claro que a atitude de desprezar o bom senso em nome da esperteza só pode ser consequência da filosofia de ensino adotada em nossas escolas, focada no formato das provas de vestibular e não no material didático em si.

Vamos contrastar as duas questões: ninguém estava presente quando os dinossauros foram extintos há 65 milhões de anos, mas a resposta veio imediatamente. Já jogar um objeto ao chão é algo que fazemos todos os dias. Uma bola de boliche e uma pena, qual cairá primeiro?A ciência tem de ser ensinada por meio de demonstrações em salas de aula. Em toda a minha carreira de estudante, jamais vi um professor demonstrar um conceito físico na sala. As aulas são todas teóricas, equações e problemas, enquanto medidas e demonstrações ocorrem nas aulas de laboratório.

Mas o que poderia ser mais eficiente, ao falar de um fenômeno natural, do que demonstrá-lo na sala de aula? Faça os alunos jogarem uma bola de gude e uma pena no chão com e sem (quando possível, usando um tubo ligado a uma bomba de vácuo) a resistência do ar.Uma das respostas que recebo de educadores quando faço esse comentário é a falta de recursos em muitas escolas, especialmente da rede pública.

Não tenho a menor dúvida de que esse é mesmo um problema sério. Mas, por outro lado, inúmeros conceitos em física e química podem ser demostrados com pedras, bolas de gude, barbantes, sal, bicarbonato de sódio, suco de limão, elásticos e outros materiais que não custam caro e são de fácil acesso.O que é necessário é uma mudança na filosofia do ensino das ciências, focalizando mais a visualização do fenômeno do que sua discussão conceitual, até que se atinja um equilíbrio entre ambos. O velho adágio "ver para crer" deve ser aplicado mais enfaticamente nas nossas salas de aula.

domingo, 22 de abril de 2001

O debate Einstein-Bohr

Durante as primeiras três décadas do século 20, a física foi dominada por duas grandes personalidades, Albert Einstein e Niels Bohr. Einstein, conhecido pelas suas duas teorias da relatividade, a especial e a geral, teve também um papel fundamental no desenvolvimento da outra grande revolução conceitual da época, a mecânica quântica, que estuda o comportamento de sistemas atômicos e subatômicos.

Bohr, por outro lado, foi um dos arquitetos da revolução quântica, o primeiro a sugerir um modelo para os átomos que explicava uma série de descobertas experimentais que não se encaixavam dentro da descrição clássica da física. Mas Bohr fez muito mais do que sugerir a estrutura do átomo com um núcleo pesado cercado de elétrons em órbitas discretas, como os degraus de uma escada. Ele arquitetou a estrutura conceitual da mecânica quântica, que difere profundamente da concepção clássica da realidade. Foi essa interpretação que gerou o longo e frutífero conflito entre as duas grandes mentes.

A física clássica, desenvolvida durante os séculos 17 e 19, baseava-se em um determinismo explícito: é possível descrever o comportamento de um sistema individual a partir de algumas informações básicas, como sua posição e sua velocidade iniciais e as forças que atuam sobre ele. Se deixarmos uma bola cair de uma certa altura, ela será atraída pela força da gravidade e se chocará com o chão após um certo intervalo de tempo. (Na verdade, a situação é mais sutil. Certos sistemas clássicos são caóticos, e sua evolução temporal pode ser extremamente complexa.

Porém ela continua a ser determinista.) Esse determinismo clássico teve de ser abandonado na formulação da mecânica quântica. Átomos e partículas subatômicas não se comportam como bolas sendo atraídas por forças, revelando uma realidade intrinsecamente diferente da realidade clássica que dita o comportamento do mundo à nossa volta, ou seja, dos fenômenos que ocorrem na escala humana.Um exemplo ilustra o indeterminismo na mecânica quântica.

Considere uma amostra com um número bem grande de átomos radioativos, como o urânio ou o plutônio. Átomos radioativos desintegram-se "espontaneamente" em átomos menores e em outras partículas, após um certo período de tempo. Essa afirmação, segundo a mecânica quântica, é probabilística: dada uma amostra, metade de seus átomos irá decair após um certo tempo, a meia-vida do átomo (para o plutônio-241, a meia-vida é de 2,4 milhões de anos). É impossível prevermos quando um determinado átomo da amostra irá decair; podemos apenas afirmar que a probabilidade do decaimento de metade da amostra é dada pela sua meia-vida. O determinismo da mecânica clássica tem de ser abandonado ao tratarmos de sistemas atômicos e subatômicos.

Bohr, em sua interpretação da mecânica quântica, argumentou que esse indeterminismo não é uma "fraqueza" da teoria, mas uma propriedade intrínseca do mundo do muito pequeno. Einstein concordava que a mecânica quântica era uma teoria extremamente bem-sucedida, mas não que a natureza era intrinsecamente indeterminável. Para ele, uma teoria completa da mecânica quântica seria perfeitamente determinista, e o decaimento de um átomo individual poderia ser previsto com grande precisão.

A teoria quântica seria apenas uma aproximação dessa teoria final.Por trás das posições dos dois cientistas podemos discernir mais do que suas diferenças de opinião sobre a estrutura da mecânica quântica. Einstein acreditava profundamente na capacidade humana em obter uma descrição "completa" da natureza, do muito pequeno ao muito grande. Para ele, a atividade científica era investida de uma espiritualidade que refletia essa convicção. Não entender a razão de todas as coisas era uma derrota do intelecto humano que ele não estava disposto a aceitar.

Para Bohr, o sucesso da teoria era o sucesso de nossa razão. Por que forçar a natureza a ter o comportamento que corresponde aos nossos anseios espirituais? Se a natureza é intrinsecamente incerta, discreta e probabilística, nós devemos ter orgulho de termos descoberto essa sua sutileza. O debate só se encerrou com a morte de Einstein em 1955. Mas ele continua até hoje, essencialmente dentro das posições definidas pelos dois titãs. Por enquanto, vence Bohr, mas o futuro é indeterminado.

terça-feira, 10 de abril de 2001

Radiografando o Universo

Wilhelm Röntgen, o físico que descobriu a misteriosa radiação que ele chamou de raios X em 1895, certamente ficaria boquiaberto se soubesse o que aconteceu com a sua descoberta nos últimos 105 anos. As aplicações médicas foram apenas o começo, inspiradas pelas radiografias que o próprio Röntgen tirou do dedo de sua mulher e que, para seu completo espanto, revelavam os ossos com incrível clareza.

A "mágica" dos raios X, seu poder de atravessar os tecidos e serem refletidos pelos ossos, está em seu pequeno comprimento de onda: como todas as formas de radiação eletromagnética _a luz visível sendo uma delas_ os raios X são uma propagação no espaço de um distúrbio eletromagnético, em geral causado pelo movimento acelerado de cargas elétricas. Aliás, qualquer onda é uma forma de distúrbio. Por exemplo, pense no que acontece quando você atira uma pedra em um lago: a queda da pedra disturba a água e esse distúrbio _uma troca de energia_ se propaga como ondas concêntricas, além do ponto de impacto.

Uma carga elétrica, quando acelerada, faz o mesmo, dissipando sua energia por meio de um distúrbio eletromagnético, que se propaga no espaço na velocidade da luz _cerca de 300.000 km/s. A diferença entre a luz e os raios X está no valor do comprimento de onda, que é bem menor para os raios X. Com isso, eles podem penetrar em materiais de densidade baixa, que é o caso da pele e dos músculos. Já os ossos, com sua maior densidade, refletem os raios X do mesmo modo que a pele reflete a luz visível.

Da medicina partimos para o Universo. As estrelas são fornalhas nucleares capazes de gerar quantidades enormes de radiação. As galáxias, que são aglomerados com milhões ou mesmo centenas de bilhões de estrelas, também emitem radiação. A que nós vemos, a radiação (luz) visível, revela apenas uma pequena parte do que realmente está acontecendo nesses objetos celestes. Quanto mais energia tiver a radiação, menor será seu comprimento de onda, e mais raios X serão emitidos. Daí que, ao olharmos para os céus com um telescópio sensível aos raios X, descobrimos os locais onde enormes quantidades de energia estão sendo emitidas.

A radiografia do Universo nos revela a física de seus membros mais exóticos, as estrelas de nêutrons e os buracos negros. Esses dois objetos astrofísicos têm uma coisa em comum: ambos representam os restos de uma estrela que esgotou seu combustível nuclear, sucumbindo à própria atração gravitacional. Em outras palavras, estrelas de nêutrons e buracos negros são estrelas que implodiram. Esse processo de implosão cria uma força gravitacional enorme, acelerando tudo o que passar por perto, inclusive cargas elétricas de uma estrela vizinha, ou da própria estrela que implodiu. Podemos visualizar o efeito gravitacional desses objetos como um ralo cósmico, sugando a matéria que estiver em sua vizinhança, tal como um ralo suga a água ao seu redor.

Esse processo cria uma enorme quantidade de raios X. Sob as lentes dos raios X, o Universo é composto apenas por buracos negros e outros objetos astrofísicos exóticos. Em 1999, a Nasa (agência espacial norte-americana) lançou o telescópio espacial Chandra, sensível apenas a fontes de raios X. O satélite tem uma órbita 200 vezes mais distante do que o telescópio espacial Hubble, viajando a um terço da distância até a Lua. A avançada tecnologia de detecção de raios X utilizada, com precisão equivalente a ler um sinal de "Pare" a uma distância de 18 quilômetros, permite a identificação de fontes extremamente distantes.

Como em astronomia toda a informação viaja na velocidade da luz, quanto mais distante for a fonte, mais tempo sua radiação leva para nos atingir. Olhar para o céu é olhar para o passado do Universo. Chandra identificou fontes a 12 bilhões de anos-luz de distância, quando as galáxias estavam nascendo, revelando um Universo pululando de buracos negros gigantescos, com massas milhões de vezes maiores do que a do Sol. Do dedo da esposa de Röntgen a buracos negros que emitiram sua radiação há 12 bilhões de anos é um pulo gigantesco, em apenas 105 anos. E são apenas as primeiras radiografias do Universo primordial. Para os sucessores de Chandra, as imagens atuais serão tão simples quanto as radiografias de um dedo

domingo, 8 de abril de 2001

Poeira das estrelas

Todas as noites, olhamos para o céu (ou se não o fazemos ao menos deveríamos) para confirmar que está tudo tranquilo lá em cima, que as estrelas continuam brilhando pacatamente, que as Três Marias continuam sendo três e não duas ou quatro e que a Lua ainda não nos abandonou. Essa imagem de tranquilidade, escuridão e sossego é um privilégio garantido pelas enormes distâncias cósmicas.

A luz que vem da estrela mais próxima do Sol, a Alfa Centauri, demora mais de quatro anos para chegar até nós e isso viajando a uma velocidade de 300.000 km/s. Não é à toa que a maioria das culturas antigas via o céu noturno como um bastião de regularidade, especialmente se deixarmos de lado os impetuosos planetas e cometas.Mas o céu não tem nada de pacato. Muito pelo contrário, se existe uma palavra que possa resumir a natureza física do cosmo, ela tem de ser transformação.

Na natureza, abreviando o dito do grande químico francês Lavoisier, tudo se transforma. E os grandes motores das transformações cósmicas -da criação e da destruição de mundos, da geração de elementos químicos que aparecem em planetas, sapos e pessoas- são as explosões que marcam o fim da vida das estrelas. Pode parecer estranho falar em vida das estrelas, como se elas fossem seres vivos, mas a verdade é que a analogia é muito apropriada. Estrelas também nascem, evoluem e morrem, e desse ciclo nascem outras estrelas e outros mundos. Podemos até imaginar que as estrelas são uma espécie de reciclador de material cósmico.

A partir de hidrogênio e um pouco de hélio, elas geram praticamente todos os outros elementos do Universo. Em outras palavras, o ferro, o carbono, o ouro e o urânio que encontramos aqui na Terra e em nossos corpos vieram da explosão de uma estrela em nossa vizinhança cósmica há 5 bilhões de anos.Quando uma estrela com massa superior a oito massas solares esgota o seu combustível nuclear, o seu fim é uma questão de pouco tempo. Em breve, ela será destruída por uma explosão de uma violência indescritível, liberando uma energia equivalente a 10 mil trilhões de trilhões de megatoneladas de TNT. (Ou, em notação mais compacta, 1028 megatoneladas de TNT). Como comparação, uma bomba nuclear produz algumas megatoneladas de TNT.

Uma supernova, como é chamada a estrela moribunda, pode brilhar mais intensamente do que toda uma galáxia contendo bilhões de estrelas.A energia gerada no coração das estrelas vem da transmutação entre os elementos químicos que ocorre através da fusão nuclear. Durante a fase mais longa da vida da estrela, hidrogênio funde-se em hélio, tal como no Sol hoje, contrabalançando a contração gravitacional forçada continuamente por suas camadas mais externas.

Eventualmente, o hidrogênio no coração da estrela se esgota, e hélio é fundido em carbono. A gravidade vai tentando comprimir a estrela ainda mais, e ela funde o que pode para resistir a sua própria implosão. A uma certa altura, o processo deixa de ser eficiente, as camadas externas da estrela despencam sobre a sua rígida região central e são ricocheteadas para o espaço sideral com velocidades que chegam a 50.000 km/s. Com isso, todos os elementos químicos que estavam sendo "cozinhados" no interior da estrela são espalhados pela sua vizinhança, como sementes em um jardim.

As supernovas irrigam o espaço à sua volta com os elementos químicos que darão origem a outros mundos.A cada segundo, uma supernova detona em alguma parte do Universo. Em nossa galáxia, temos de esperar de 30 a 50 anos para presenciar tal evento. Às vezes, uma explosão ocorre próxima o suficiente para ser observada a olho nu. Mas, nos últimos 2.000 anos, apenas seis foram registradas. A mais espetacular apareceu em 1054 na constelação do Touro.

Segundo registros do Observatório Imperial de Pequim, na China, essa supernova foi visível durante o dia por três semanas e à noite por um ano, desaparecendo tão misteriosamente quanto ela apareceu. Certamente, para os astrônomos imperiais e os outros observadores celestes que presenciaram essas aparições, as estrelas novas deviam ser mensagens dos deuses. E para nós? Talvez a sua mensagem mais importante seja a profunda união de todas as coisas cósmicas: que nós, como tudo o mais no Universo, somos poeira das estrelas.