domingo, 17 de dezembro de 2006

Sombra global

Se a temperatura está aumentando, algo deve ser feito logo

O debate sobre o aquecimento global vem, com o perdão do trocadilho, esquentando. Em questão estão as causas do aumento da temperatura terrestre, este sim, fora de discussão. As geleiras do Ártico e da Antártida estão derretendo; as neves do Kilimanjaro estão sumindo. Exemplos não faltam. Sabe-se que a última década foi a mais quente dos últimos 150 anos e que a tendência da temperatura média global é aumentar. Até recentemente, havia praticamente um consenso entre os cientistas de que o aquecimento global, o chamado efeito estufa, é causado pelo acúmulo de gases poluentes na atmosfera, em particular o gás carbônico ou CO2. Esse consenso está sendo posto em dúvida por alguns.

A idéia por trás do aquecimento global é simples: radiação vinda do Sol aquece a superfície terrestre. Devido à atmosfera, nem todo esse calor volta para o espaço. Essa retenção é extremamente importante para a nossa sobrevivência; sem ela, morreríamos de frio -ou, mais realisticamente, nem sequer haveria vida na Terra. Porém, tudo em excesso é ruim; a concentração de gases na atmosfera impede o escape eficiente de calor para o espaço, como quando nos cobrimos com cobertores pesados demais e começamos a suar. O manto de CO2 é como um cobertor retendo o calor aqui. A questão é o que vem causando o aumento de CO2 na atmosfera e o que pode ser feito para controlá-lo.

Alguns grupos dizem que flutuações na quantidade de radiação emitida pelo Sol podem ser responsáveis pelo aumento de temperatura nos oceanos. Esse aumento, por sua vez, causa a emissão de CO2 nos oceanos, aumentando ainda mais a temperatura. Cientistas que acreditam ser essa a causa principal do aquecimento global argumentam que, no último milênio, existiram períodos de aquecimento e resfriamento da Terra, como a mini-idade do gelo no final do século 18, causada possivelmente por instabilidades no Sol. Entretanto, existem várias dúvidas com relação à duração dessa mini-idade do gelo, que parece ter provocado uma queda de um 1C na temperatura média da Inglaterra.

Os que defendem que o aquecimento atual é provocado pelo passo acelerado da industrialização falam de uma correlação entre o aumento de temperatura e a emissão de gases poluentes; os da oposição apontam outras possíveis causas, como o Sol, vulcanismo, ou atividade tectônica. Muito possivelmente, a solução não será que o aquecimento é causado exclusivamente por causas naturais ou por causas humanas, mas por uma combinação de ambos. Transformar o debate sobre o clima, um problema científico, numa questão exclusivamente política é uma atitude injusta com as futuras gerações. Se a temperatura global está aumentando e se existem conseqüências sérias para o planeta, algo deve ser feito o quanto antes. Se as causas são múltiplas, as soluções também devem ser. Limites na emissão de gases poluentes devem ser impostos segundo as decisões do Protocolo de Kyoto. O que mais pode ser feito? Roger Angel, um astrônomo, sugeriu uma frota de um trilhão de miniguarda-chuvas, cada um com massa de um grama, em órbita entre a Terra e o Sol para bloquear parte da radiação. Outros sugerem soluções mais baratas (e não muito atraentes), como pintar parte da superfície terrestre de branco para refletir a luz solar. O importante é agir. Caso contrário, a Terra será um outro planeta daqui a 50 anos.

domingo, 10 de dezembro de 2006

O Erro (?) de Einstein



A força que se contrapõe à gravidade deve mesmo existir


Quem acredita que a ciência progride sempre a passos firmes vai achar a história que conto hoje interessante. Sendo uma criação humana, a ciência retrata as dúvidas, erros e preconceitos de seus criadores. O que a distingue das demais atividades que envolvem a criatividade, como a arte e a literatura, é que a ciência tem a preocupação de descrever quantitativamente a realidade em que vivemos. No máximo, o que podemos fazer é tentar construir uma visão de mundo que se aproxime, de maneira imperfeita, dos mecanismos da natureza.

Em 1915, Einstein concluiu sua teoria da relatividade geral, onde descrevia a gravidade como uma distorção na curvatura do espaço devido à presença de uma massa; quanto maior a massa, maior a distorção. Portanto, um corpo qualquer que passe perto de uma grande concentração de massa, como o Sol, será acelerado em sua direção devido à essa curvatura, tal como uma criança que cai escorregador abaixo. Quando a massa é relativamente pequena, como a da Terra ou a de uma pessoa, a teoria reproduz os resultados obtidos por Newton em 1686 que descrevem a gravidade como uma força atrativa entre dois ou mais corpos com massa.

Empolgado com sua nova teoria, Einstein resolveu aplicá-la ao Universo inteiro: se soubéssemos a massa total do cosmo poderíamos determinar sua geometria. Para simplificar as coisas, Einstein supôs que o Universo tivesse a geometria de uma esfera e que fosse estático. Porém, suas equações não tinham uma solução estável; esse universo colapsaria sobre si mesmo ou entraria em expansão. Na época, não havia qualquer evidência de que o Universo estivesse em expansão ou contração. Para remediar, Einstein adicionou um novo termo em suas equações que garantiria sua estabilidade. Era uma espécie de "antigravidade" que agiria da mesma forma sobre o cosmo inteiro. Esse termo ficou conhecido entre os físicos como "constante cosmológica".

No final dos anos 20, o astrônomo americano Edwin Hubble demonstrou que galáxias distantes estão se afastando mutuamente com velocidades que crescem com sua distância. Einstein, quando soube disso, descartou seu termo e, relutantemente, aceitou a expansão do Universo.
A constante cosmológica permaneceu esquecida durante um bom tempo. Assim funciona a ciência: teorias respondem às observações; se uma hipótese é demonstrada falsa, deve ser abandonada. Porém, observações são com freqüência extremamente complexas e sujeitas a erros.

No caso da astronomia extragaláctica, a dificuldade está em medir distâncias de milhões ou mesmo bilhões de anos-luz com precisão.

De certa forma, nossa visão do Universo é como a de um míope que vai melhorando seus óculos gradualmente. A cada novo par de óculos, inúmeras novas descobertas são feitas, criando a necessidade de abandonar idéias erradas e criar outras novas. Ou ressuscitar idéias antigas...
Em 1998, astrônomos demonstraram, para surpresa de muitos e constrangimento de alguns, que o Universo não só está em expansão, mas que essa expansão acelerou nos últimos bilhões de anos. Parece que quanto mais velho o Universo vai ficando, mais pressa ele tem. Passados oito anos, a hipótese mais aceita é a de que essa aceleração é causada justamente pela constante cosmológica. A idéia que Einstein descartou como erro pode não estar errada afinal. Resta entendermos porque essa constante existe e o que determina seu valor. Imagino que Einstein adoraria participar dessa discussão.

domingo, 3 de dezembro de 2006

Ateísmo (menos) radical



Sou um desses ateus liberais; o sobrenatural não faz sentido


Aos leitores que porventura estranharem o título desta coluna, explico: semana passada escrevi sobre o ateísmo radical de, entre outros, Richard Dawkins, o biólogo e divulgador de ciência inglês que publicou livros importantíssimos como "O Gene Egoísta" e "O Relojoeiro Cego". Raramente abordo o mesmo tema duas vezes seguidas. Porém, recebi tantas mensagens de leitores a favor e contra que optei por fazê-lo.

Antes, um breve resumo do que disse. Critiquei a postura de Dawkins, a quem admiro muito, por achá-la intolerante e radical. Dawkins essencialmente nega a religião, considerando-a uma crendice absurda, que escraviza as pessoas. Ele não é o primeiro a afirmar isso. Lucrécio, poeta romano que viveu um pouco antes de Jesus Cristo, escreveu: "As pessoas vivem aterrorizadas porque não compreendem as causas das coisas que acontecem na terra e no céu, atribuindo-as cegamente aos caprichos de algum deus".

A razão, leia-se ciência, é a luz que ilumina o obscurantismo da fé.

A maioria das mensagens que recebi defendem a postura de Dawkins. Guerra é guerra, e a religião está em guerra contra a ciência. Intolerância tem de ser enfrentada com intolerância. Em uma delas, Sam Harris, outro autor que defende uma postura anti-religiosa radical, é citado: "a religião bate sem dó e quer ser tratada com luvas de pelica".

Eu sou um desses ateus liberais que Dawkins critica. Para mim, não há absolutamente nenhuma dúvida de que o sobrenatural é completamente incompatível com uma visão científica do mundo, visão que costumo defender arduamente.

Conforme escrevi em várias ocasiões, o sobrenatural não faz qualquer sentido: se algo ocorre, seja lá o que for, desde uma erupção vulcânica a um suposto "milagre", esse algo passa a ser um fenômeno natural e, como tal, regido pelas leis da natureza. Quando as causas ainda não são conhecidas, o dito fenômeno ganha um ar de mistério, criando espaço para o obscurantismo. Mas o fato de elas não serem conhecidas não implica que devam ser atribuídas a causas sobrenaturais: o que a ciência (ainda) não explica não deve ser atribuído a seres divinos cujas ações estão além da razão.

A natureza é sutil; a elucidação dos seus mecanismos leva tempo e requer muita criatividade. O terror a que Lucrécio se refere vem da insegurança causada pela submissão ao desconhecido: tememos o que não conhecemos. Numa era científica, esse terror não deveria existir.
Se sou ateu; se fico transtornado quando vejo a infiltração de grupos religiosos extremistas nas escolas, querendo mudar o currículo, tratando a ciência em pé de igualdade com a Bíblia; se concordo que o extremismo religioso é um dos grandes males do mundo; se batalho contra a disseminação de crenças anticientíficas absurdas como o design inteligente e o criacionismo na mídia; por que, então, critico o ateísmo radical de Dawkins?

Porque não acredito em extremismos e intolerância. Porque não vejo o radicalismo criar amigos ou novos aderentes, apenas mais inimigos e ódio. Porque o extremismo é o pior dos diplomatas. Sei bem do preconceito contra os ateus, preconceito que vem da crença absurda (popular em alguns países, como os EUA) de que só as pessoas religiosas podem ser morais. É essa crença ignorante que deve ser combatida; ninguém precisa acreditar na Bíblia para saber que matar é errado, se bem que esses ensinamentos são esquecidos na brutalidade selvagem das guerras religiosas que pontuam a história. É a hipocrisia usada sob a bandeira da fé que deve ser combatida, não a fé em si.

domingo, 26 de novembro de 2006

Ateísmo radical



A ciência não deve se propor a tirar Deus das pessoas


Não é surpresa para ninguém que existem tensões entre ciência e religião. Santo Agostinho, o primeiro grande teólogo do cristianismo, afirmava que o pensamento aplicado à natureza leva ao pecado e à perdição; que, para obter a redenção, o importante é dedicar-se à adoração do eterno.

Mas a verdade é que a relação entre ciência e religião é bem mais complexa do que essa divisão superficial entre dois campos, o da razão e o do espírito. Infelizmente, volta e meia aparecem depoimentos que exacerbam exatamente essa polarização destrutiva. É o caso de três livros recentes: "O Fim da Fé" ("The End of Faith"), de Sam Harris; "Quebrando o Feitiço" ("Breaking the Spell"), de Daniel Dennett; e "A Delusão Divina" ("The God Delusion"), de Richard Dawkins. É sobre o livro de Dawkins, o mais virulento de todos os três, que escrevo hoje.

Primeiro, vamos às apresentações. Richard Dawkins é um biólogo especializado na teoria da evolução, professor em Oxford, Inglaterra, e um dos divulgadores de ciência mais famosos do mundo, com best-sellers como "O Gene Egoísta" e "O Relojoeiro Cego". Dawkins é um ateu declarado. Até aí tudo bem; muitos cientistas o são. Para muitos, mas não todos, é importante frisar isso: a conciliação entre uma descrição científica do mundo -baseada na obtenção de informação empírica da natureza por meio de experimentos e observações quantitativas- e a aceitação de uma realidade sobrenatural, inescrutável à razão humana, é impossível. Já para alguns, o estudo da ciência serve para comprovar a beleza da criação. Imagino que Dawkins considere esses cientistas religiosos no mínimo incompetentes.

Para ele, a ciência é um clube fechado, onde só entram aqueles que seguem os preceitos do seu ateísmo, tão radical e intolerante quanto qualquer extremismo religioso. Dawkins prega a intolerância completa no que diz respeito à fé, exatamente a mesma intolerância a que se opõe.
Vejamos um de seus argumentos. Se a complexidade do mundo foi criada por uma divindade, esta deve ser necessariamente mais complexa do que tudo o que criou. Porém, segundo a teoria da evolução, isso é impossível: a complexidade é produto da evolução. A divindade criadora deveria ter sido a última e não a primeira a surgir.

A quem Dawkins dirige um argumento desses? Certamente não aos religiosos. Qualquer pessoa que conheça um mínimo de teologia sabe muito bem que a idéia fundamental das religiões é que o divino não segue as regras causais que regem o mundo material. Deuses não evoluem; são absolutos, existem fora do tempo. Ele afirma que seu alvo são os "indecisos", que não acreditam em causas sobrenaturais mas não se declaram ateus. Será esse o modo de resolver o embate entre ciência e religião?

Na minha humilde opinião, absolutamente não. A atitude belicosa e intolerante do cientista britânico só causa mais intolerância e confusão. Seu grande erro é negar a necessidade que a maioria absoluta das pessoas tem de associar uma dimensão espiritual às suas vidas.
Um erro meio parecido com o do materialismo dialético dos comunistas, em que tudo é atribuído a causas materiais. Tirar Deus das pessoas e colocar um líder fascista no seu lugar não dá certo. A ciência não deve se propor a tirar Deus das pessoas. Se é essa a sua guerra, então ela já perdeu.

O que a ciência pode fazer é proporcionar outra forma de espiritualidade, ligada ao mundo natural e não ao sobrenatural, à cativante magia da descoberta. É esse naturalismo, essa entrega à natureza e aos seus mistérios, que dá à ciência a dimensão espiritual que a torna humana.

domingo, 19 de novembro de 2006

O humanismo de Darwin



O projeto darwiniano é explicar a vida a partir padrões fundamentais


Para muitas pessoas, especialmente as mais religiosas, as idéias de Charles Darwin, o naturalista inglês que no século 19 propôs a teoria da evolução pela seleção natural, são um ultraje: afirmar que nós, homens e mulheres, sofisticados e conscientes, somos nada mais do que macacos evoluídos é inaceitável.

Especialmente ao contrastarmos esta visão "vil" da humanidade com a da Bíblia, que nos coloca tão perto de Deus, criados por Ele à sua imagem e semelhança. De semideuses a macacos é um pulo enorme. Darwin conseguiu, em apenas uma geração, virar ao avesso milhares de anos de crenças.

Como não podia deixar de ser, as idéias de Darwin criaram imensa controvérsia. Ele mesmo preferiu evitar a exposição e as disputas públicas, deixando que outros o defendessem, como é o caso de T. H. Huxley, o biólogo que tornou-se "buldogue" de Darwin.

Em ensaio recente para a revista "The New Yorker", Adam Gopnik refaz a trajetória literária de Darwin, mostrando que mais do que um naturalista, Darwin era um romancista da ciência: seu modo de escrever ia além da simples exposição de fatos e conclusões. Existia uma estratégia literária, com o objetivo de tornar o relato tão natural que a conclusão final fosse absolutamente óbvia e inevitável, quase desnecessária. Darwin sabia muito bem que suas idéias encontrariam resistência acirrada.

Na "Origem das Espécies", por exemplo, Darwin passa grande parte do livro discursando sobre as técnicas dos criadores de pombos, cachorros e outros animais domésticos, mostrando como a reprodução controlada fixa características desejadas na prole, um fato mundano ao qual ninguém pode se opor. Darwin então mostra que, mesmo se não forçadas pelos criadores, mudanças ocorrem por si mesmas a partir da variação natural entre os indivíduos de uma dada população; o ambiente faria o papel da mão humana, selecionando certos traços.

Para ele, a incrível variação da vida é conseqüência essencialmente de dois fatores: intervalos de tempo geológicos, muito além dos que contemplamos nos 70 ou 80 anos que vivemos, e mudanças que podem ser passadas de geração em geração. Darwin não conhecia as mutações genéticas, mas sua teoria antevê o mecanismo básico das transformações entre animais responsável pela diversidade da vida.

O projeto darwiniano é explicar a imensa variedade da vida a partir de apenas alguns padrões fundamentais. É essa a função de qualquer teoria científica, seja ela em física, química ou biologia: descrever o maior número de fenômenos ou observações do mundo natural a partir do menor número de princípios sem qualquer intervenção de entidades sobrenaturais. Todas as respostas para os mistérios da natureza, da origem das espécies à formação do Sol e dos planetas, podem ser encontradas na própria natureza. O estilo de Darwin é o da insistência, a famosa frase latina "guta cavat lapidem" (água mole em pedra dura), exaustivamente anestesiando qualquer possibilidade de resistência por parte do leitor.

Em obras posteriores, Darwin argumenta que os homens são macacos evoluídos: "Aprendemos então que o homem descende de um quadrúpede peludo, dotado de orelhas pontudas e rabo, provavelmente arborícola, que habitava o Velho Mundo". Essa afirmação, claro, aparece só depois de centenas de páginas de exemplos comparando nosso comportamento sexual ao de animais. Em seus escritos, Darwin mostra que o homem não é mais apenas a medida de todas as coisas; todas as coisas podem ser medidas por ele. É essa dimensão humana que damos ao mundo que define a essência do humanismo.

terça-feira, 14 de novembro de 2006

MARCELO GLEISER ESCREVE LIVRO PARA HUMANIZAR IMAGEM DO CIENTISTA

Físico e escritor fala ao G1 sobre seu primeiro romance e aborda temas polêmicos, como a relação entre ciência e religião


Salvador Nogueira, do G1, em São Paulo entre em contato

O físico Marcelo Gleiser
Já famoso por seus livros de divulgação científica, o físico Marcelo Gleiser resolveu investir num novo gênero literário. Sua última obra, “A Harmonia do Mundo”, é um romance. Baseada em fatos reais, a narrativa retrata a vida do astrônomo alemão Johannes Kepler, o homem que, em pleno século XVII, descobriu que os planetas não orbitavam circularmente ao redor do Sol, mas sim seguiam órbitas elípticas (ovais).

Embora seja um dos maiores gênios de seu tempo, Kepler foi ofuscado por outros gigantes, como o italiano Galileu Galilei e o inglês Isaac Newton. “Pois é, essa é uma outra razão pela qual eu escrevi o livro”, explica Gleiser. “A vida do Kepler é muito mais interessante que a vida do Galileu e a do Newton. Só que as pessoas não dão muita bola para ele, eu nunca entendi exatamente por quê.”

Apostando na possibilidade de trazer essa história à tona, o físico brasileiro optou pela ficção, para atingir o maior número de pessoas possível. “Eu achei que romancear a história de um grande cientista ia não só levar essa história para um número maior de pessoas, mas também humanizar o cientista, mostrar que ele não é só uma máquina de fazer cálculos, mas que é uma pessoa, com ambições, com tristezas, com sucessos, com fracassos e tal”, diz.

A tônica do livro é a relação entre o pupilo, Kepler, e o mestre, Michael Maestlin, o homem que apresentou as controversas idéias copernicanas ao então jovem estudante de astronomia. Gleiser diz que há muito dele mesmo nesses dois personagens.

Essa ambivalência literária traz a inevitável pergunta: o que dá mais prazer, escrever romances ou livros de divulgação científica? Gleiser responde isso e fala de outros temas, como a relação da ciência com a religião, na entrevista que concedeu ao G1. Leia abaixo o bate-papo ou, se preferir, ouça o áudio, clicando aqui.

G1 - Por que um romance, de onde saiu a idéia de escrever um romance?
Marcelo Gleiser - Quando eu comecei a ler sobre a vida do Kepler com mais seriedade, que foi mais ou menos em 1995, quando eu estava escrevendo meu primeiro livro, "A Dança do Universo", percebi que a história da vida dele era uma grande história. Não só pelos feitos científicos dele, mas pelas coisas que aconteceram com ele, o que estava acontecendo na Europa naquela hora, guerra entre os protestantes e católicos, caça às bruxas e tal. E eu me lembro, em 1997, jantando com a minha mulher, quando eu estava lançando o "Dança" aqui, falei: "sabe de uma coisa, a história do Kepler dava um grande romance e daria um grande filme também", e essa coisa ficou na minha cabeça. E comecei a pensar em como fazer isso, e depois que lancei "O Fim da Terra e do Céu", em 2001, eu requisitei uma bolsa da universidade para poder ir para a Europa pesquisar um pouco sobre a vida dele, ganhei a bolsa e daí fiz as pesquisas e resolvi escrever esse romance. Fora esse lado, eu também pensei o seguinte: as pessoas que lêem livros de divulgação científica representam uma faixa pequena da população, uma faixa que tem interesse em ciência, "ah, saiu um livro sobre, sei lá, cosmologia, sobre buracos negros, sobre mecânica quântica, vou comprar, vou comprar". Mas eu acho que o número de pessoas que lê romances é maior, em geral. E eu achei que romancear a história de um grande cientista ia não só levar essa história para um número maior de pessoas, que em princípio não se interessariam por ciência, mas também humanizar o cientista, mostrar que ele não é só uma máquina de fazer cálculos, mas que é uma pessoa, com ambições, com tristezas, com sucessos, com fracassos e tal. Eu acho isso muito importante para mudar um pouco a percepção que as pessoas têm da ciência, de que a ciência é uma coisa fria e distante da sociedade.

G1 - E ao longo do trabalho de escrever esse livro, você acabou criando uma identificação com o personagem? Quanto existe do Gleiser no Kepler do seu livro?
Gleiser - Eu acho que você cria uma identificação com os seus personagens. Na verdade, certamente tem muito de mim no Kepler. Tem umas coincidências interessantes. Por exemplo: minha mãe também me levou para ver um eclipse quando eu tinha seis anos de idade. Isso é uma coisa que eu conto no livro que a mãe do Kepler também fez. Ele também teve dois casamentos, o primeiro não muito bom, o segundo muito bom. Então, quer dizer, existem certas coincidências. E, claro, todo cientista tem mentores. Uma das coisas importantes nesse romance é a relação entre o mentor e o pupilo. Então, o Maestlin, que é uma personagem importantíssima, talvez até mais importante do que o Kepler na estrutura do romance, também veio da minha cabeça. Ele também é uma figura de um mentor, e aí representando um pouco o drama de um cara mais conservador que tem que enfrentar idéias modernas, a história do gênio, da mediocridade, da mortalidade, da imortalidade quando você constrói uma grande obra. Então eu coloquei todos esses meus pensamentos, esses questionamentos sobre a relação mentor-aluno, na cabeça do Maestlin. Então, o Kepler tem coisas minhas, mas o Maestlin também tem coisas minhas. Todos eles são uma espécie de voz que sai da mesma cabeça, que é a cabeça do autor.

G1 - Você apresenta o Kepler como um cientista que busca a inspiração no divino para desvendar a natureza. Você acha que essa é uma abordagem possível na ciência hoje? Buscar inspiração numa estrutura mais avançada, superior, que tem uma lógica subjacente?
Gleiser - Então, você já respondeu à pergunta. Se Deus é entendido como uma metáfora, não como... até existem, devo dizer, existem. Vinte por cento, se não me engano, dos cientistas são pessoas religiosas, que vão à sinagoga, vão à igreja, aos templos que forem. Ou mais até. E são pessoas que dizem que a ciência deles simplesmente comprova ou reforça a fé que eles têm em Deus e na construção da natureza. Então, nisso eles são muito parecidos com Kepler, Newton e Copérnico, menos com Galileu, mas também um pouco. Agora, eu acho que o outro lado, quer dizer, essa metáfora de que a natureza é um grande enigma, um grande mistério, e que através da razão a gente pode tentar compreender, se não todo, partes desse mistério. Isso daí é uma definição da ciência que é essencialmente espiritual. O Einstein mesmo era um cara que dizia isso. Então, existe sim, eu acho, em muitos cientistas, não vou dizer em todos, esse apego à natureza como sendo um grande desafio, um mistério que cabe a nós decifrar. E nesse sentido eu acho que isso cria uma relação espiritual entre o homem e a natureza em que a ciência é a ponte. Mas você tem também os caras que são totalmente ateus e que não querem saber de nada disso, que fazem as contas deles completamente sem uma preocupação, digamos, mais metafísica do trabalho deles. Depende um pouco da área em que você trabalha. Eu acho que o pessoal que mexe com questões relacionadas com origem, o big bang, origem da vida, são pessoas que têm um interesse maior na repercussão filosófica da ciência do que o pessoal que trabalha com propriedades de laser, cristais, semicondutores, supercondutividade e coisas do gênero.

G1 - Embora o Kepler seja reconhecido pelos cientistas como o grande inovador de sua era na astronomia por trocar os círculos por elipses, que foi uma atitude muito corajosa, ele não é muito conhecido do público em geral. Por que você acha que Galileu e Newton acabaram muito mais conhecidos que Kepler?
Gleiser - Pois é, essa é uma outra razão pela qual eu escrevi o livro. A vida do Kepler é muito mais interessante que a vida do Galileu e a do Newton. Só que, como você disse, as pessoas não dão muita bola para ele, eu nunca entendi exatamente por quê. Mas acho que a maneira de responder isso é a seguinte: o Newton foi um fenômeno que não tem outro na história da ciência. O cara criou toda uma visão de mundo, um modo de pensar e construir a realidade física, que é o modo que a gente vê o mundo, na verdade. A física dele é uma física que unificou a física dos céus e a física da terra. É por causa do Newton que a gente sabe das três leis de movimento, da lei da gravitação universal. Ele realmente transcendeu o cientista. O cara virou assim: "ó, é assim que o mundo funciona". Então ele virou um superstar mesmo. E a capacidade intelectual dele era tão absurda que o cara é meio-deus, meio-gente. Então ele é um dos poucos que em vida já era um cara superfamoso. Então ele ofusca os antecessores dele, inclusive... todo mundo. (Risos) Basicamente, se você tiver que resumir a história da ciência, até Newton o mundo era aristotélico, depois de Newton o mundo virou newtoniano. Hoje o mundo é einsteiniano, mas ninguém sabe, porque os efeitos do Einstein não são perceptíveis no nosso dia-a-dia.
O Galileu é famoso obviamente por ter se tornado um mártir da ciência. Por causa da relação dele com a igreja, a inquisição, e aquela coisa da busca pela verdade e a repressão da igreja, que é toda uma distorção do que realmente aconteceu. Mas o que fica na percepção social do Galileu é que ele lutou contra a igreja, sozinho, pela liberdade das idéias. E não é nada disso, mas ficou isso, então ele ficou famoso como mártir da ciência. O Kepler vivia na mesma época que o Galileu, e tinha as lutas dele, e depois tinha outra coisa: o jeito do Kepler escrever sobre ciência não era um jeito moderno de se escrever sobre ciência. O Galileu, com os diálogos e tal, era um jeito mais moderno de escrever sobre ciência. O Newton certamente era. Ele escrevia de forma matemática. Se você ler o livro do Newton, é tudo assim: proposição, teorema, demonstração, corolário, é como se fosse um tratado de matemática. Tanto que chama "Princípios Matemáticos da Filosofia Natural". Já o Kepler não. Ele misturava tudo, falava de misticismo, números, astrologia, os textos dele eram uma confusão danada. Ele era uma figura de transição entre o medieval e o moderno. E isso afastou muita gente das obras dele, inclusive o Galileu. E o Newton é que foi pescar nas obras do Kepler a importância dos resultados dele. Então, eu acho que o estilo do Kepler não era o científico moderno, e a própria personalidade dele também, e por isso ele ficou mais desconhecido das pessoas.

G1 - Como foi o trabalho de pesquisa? Você se divertiu pesquisando para esse livro, as viagens que você fez? Que tipo de relação você teve com o convívio do ambiente em que viveu Kepler?
Gleiser - Eu me diverti muito. Foi muito legal ter feito isso, quer dizer, eu basicamente fui da casa em que ele nasceu até onde ele morreu. Fui seguindo todos os passos dele, na Alemanha, na Áustria, em Praga. Foi sensacional. Até foi engraçado que, olha só que coincidência, no dia em que eu cheguei na cidade em que ele nasceu, em Weil, eu fui ao museu, a casa dele é um museu hoje, e a curadora lá do museu me recebeu, expliquei que eu era um professor nos Estados Unidos que estava escrevendo um livro sobre o Kepler. Ela falou, "ah, que ótimo! Hoje à noite vai ter uma festa na escola de ensino médio, então vem com a gente". Então ela pegou no hotel, era uma senhora, fui à tal da festa, não entendi nada, porque era em alemão e eu não sei alemão. Mas no meio da festa teve uma encenação de um diálogo entre o Tycho Brahe e o Kepler, os dois vestidos a caráter, porque o nome da escola era Gymnasium Johannes Kepler. Então foi muito legal, uma coincidência incrível no dia que eu chego lá ter isso. E a viagem foi muito boa. Eu tentei dentro do possível entrar na cabeça dele. Inclusive, no livro, o diário do Kepler é um diário que é fictício -- esse diário não existe. Foi uma maneira de eu criar um mecanismo para poder escrever na primeira pessoa, para poder descrever para as pessoas como o Kepler pensava, o processo criativo dele. E Praga é um lugar sensacional. Então, a viagem foi muito legal. E eu tive oportunidade em Tübingen, onde ele estudou, de sentar na mesa aparentemente onde ele sentava, pegar o livro-texto de astronomia que ele estudava, que era escrito pelo Maestlin. Então realmente eu tentei da melhor maneira possível recriar essa época e a maneira como as pessoas pensavam nessa época.

G1 - O livro deixa um mistério. A gente nunca sabe o que diz a carta do Kepler ao Maestlin. Você chegou a escrever essa carta ou era só um artifício para carregar o leitor até o final?
Gleiser - Era um artifício. E eu não escrevi a carta, mas eu pensei durante muitos meses sobre a carta. E eu resolvi não escrever, mas se você prestar atenção, nas últimas páginas, em que o Maestlin está pensando na carta, você vai ver que faz todo o sentido do mundo ele não ter aberto essa carta, porque a carta seria essencialmente uma carta em que o Kepler perdoaria o Maestlin, por tê-lo abandonado, por tê-lo deixado... uma carta de amor, vamos dizer assim, do pupilo ao mestre. E o Maestlin, depois disso tudo, ele não queria mais ser perdoado. Ele queria aceitar o fato de que ele abandonou e ele foi meio, vamos dizer assim, ele não queria que o Kepler perdoasse, ele queria aceitar a culpa, ele se julgou, se condenou como culpado, e a morte dele no final do livro é uma redenção. Então, eu acho que ter escrito uma carta dizendo, "olha, meu querido mestre, eu entendo que você tenha me abandonado, mas eu sempre te amei etc. etc.", ia perder a força dramática do livro e de certa maneira ia fazer com que o livro ficasse muito mais água com açúcar do que a história real deles foi.

G1 - Foi mais divertido escrever romance ou livro de divulgação?
Gleiser - Ah, romance. Não sei se é mais divertido, mas é muito mais intenso. É uma relação emocional com a obra muito maior do que quando você escreve um livro de não-ficção. E, eu vou dizer para você, é uma coisa muito sedutora.

domingo, 5 de novembro de 2006

A controvérsia das supercordas



Ou a teoria se prova correta ou nunca se provará incorreta


Os físicos teóricos estão em conflito; se não em conflito, ao menos divididos em campos de opinião. ("Guerra" é um termo forte demais para essa disputa acadêmica.) De um lado estão os teóricos que trabalham nas supercordas: não se equilibrando nelas, mas usando-as como alicerces de toda uma nova descrição da matéria. Do outro estão os seus críticos, físicos que acham que as abstrações envolvidas na teoria das supercordas são apenas isso, abstrações, que não têm nada a ver com a natureza. Toquei no assunto na coluna de 24 de setembro ("Entre a física e a metafísica") mas, devido a pedidos de vários leitores, volto a abordá-lo.

Eis uma breve história das supercordas. Uma das questões mais complexas da física de altas energias é a estrutura dos prótons e de outras partículas parecidas. Prótons são compostos por três partículas menores, chamadas quarks. O mistério é que ninguém vê quarks livres em experimentos, como vemos prótons ou elétrons. Quarks estão confinados nos prótons, como prisioneiros. Por que isso? Alguns modelos supõem que os quarks estão ligados por tubos ou cordas. Quanto mais distantes os quarks, mais tensão nas cordas e, portanto, mais difícil é separá-los.

Em meados dos anos 1980, dois físicos resolveram usar essas cordas num projeto bem mais ambicioso. Não para confinar quarks nos prótons, mas como base de uma teoria que unificaria toda a física de altas energias. A idéia é que essas cordas vibram em freqüências diversas, da mesma forma que as cordas de violão. Cada modo de vibração corresponde a uma energia e essa energia está associada a uma partícula fundamental. Portanto, elétrons seriam na verdade cordas minúsculas vibrando em certa frequência, quarks em outra e assim por diante. Como em física de altas energias as forças entre as partículas também são partículas (por exemplo, a atração entre cargas elétricas é conseqüência de partículas chamadas fótons), essas cordas fundamentais unificam matéria e força: todas as partículas de matéria e as quatro forças, inclusive a gravidade, são reduzidas a cordas vibrando. É uma bela idéia que atraiu multidões de jovens teóricos.

Os dois físicos demonstraram que, para que fizesse sentido, a teoria precisava ser formulada em dez dimensões: uma para o tempo e nove espaciais -seis a mais do que as que vemos. Esse foi o primeiro problema: prever um Universo com seis dimensões adicionais. Tudo bem -talvez elas sejam pequenas a ponto de serem invisíveis aos nossos experimentos, feito uma mangueira vista de muito longe, que parece uma linha e não um longo cilindro. Eu mesmo trabalhei nisso durante meu doutorado, tentando esconder as dimensões extra.

O formato ou geometria dessas dimensões afeta as previsões da teoria. E, claro, a idéia é reproduzir o mundo em que vivemos. Só que... aparentemente existe um número absurdamente grande de geometrias possíveis e ninguém sabe como selecionar uma delas. Ou seja, a teoria ainda não conseguiu, após mais de 20 anos, estabelecer contato com o mundo real. "É uma questão de tempo", dizem os teóricos das supercordas; "não, é uma enorme perda de tempo", dizem seus críticos, afirmando que os teóricos de cordas têm uma mentalidade de clã, cegos pelos seus dogmas.

O maior problema é que a teoria das supercordas é difícil de ser refutada; dá-se um jeito aqui ou ali, e a possibilidade de testá-la fica além dos experimentos. Portanto, ou damos sorte e ela é provada correta, ou jamais será provada incorreta. Clã ou não, a situação é delicada, especialmente se mais duas décadas se passarem e a teoria continuar sem confirmação.

domingo, 29 de outubro de 2006

Os bastidores da ciência



Descobertas precisam ser avaliadas antes de virar notícia


Existe uma percepção popular dos cientistas como sendo os donos da verdade. Quando a ciência diz que uma coisa é desse jeito e não de outro, ou que o que ocorre nesse fenômeno é isso e não aquilo, as pessoas aceitam sem saber por quê. A ciência é uma grande caixa preta. Uma das maiores dificuldades em se levar ciência ao público é explicar como essas "verdades" são obtidas sem transformá-las em dogmas. Afinal, é essa a distinção essencial entre ciência e religião: em ciência, conclusões são obtidas empiricamente, por meio de um processo progressivo de tentativa e erro, enquanto em religião a verdade é revelada por processos não explicáveis, como textos sagrados escritos por divindades sobrenaturais, visões milagrosas ou profecias misteriosas.

É muito mais fácil trazer apenas o resultado das pesquisas científicas, as descobertas feitas por esse ou aquele grupo, pelo Telescópio Espacial ou por um físico teórico, do que explicar como elas são feitas, os detalhes do processo de descoberta. Por exemplo, "astrônomos descobrem que o centro de nossa galáxia esconde um buraco negro gigantesco, com massa três milhões de vezes maiores do que o Sol". Fantástica mesmo essa descoberta, e parece ser verdadeira em quase todas as galáxias: os buracos negros, esses escoadouros cósmicos de matéria, são bem mais abundantes do que se esperava. Mas por que o público deve acreditar nisso? Qual a diferença entre essa asserção e outra como "hoje vi o fantasma de meu avô se barbeando comigo no espelho do banheiro"?

Na descrição da descoberta científica está implícita a compreensão de como cientistas trabalham: quando cientistas afirmam algo publicamente, é porque essa afirmação passou já por todo um processo de checagem que garante que ela esteja correta. Em princípio, as coisas deveriam funcionar da seguinte forma: um grupo de cientistas faz uma descoberta qualquer. O próximo passo é enviar um artigo explicando a descoberta a uma publicação especializada, lida por outros cientistas que fazem pesquisa nessa área. O editor da publicação envia o artigo para dois ou três especialistas, que dão o seu parecer. Se surgir alguma questão ou erro, o artigo é enviado de volta aos autores. Se os autores concordarem com o parecer dos especialistas, eles consertam o artigo. Se não, têm a liberdade de confrontá-los, com o editor servindo de mediador. Quando o artigo é finalmente aceito para publicação é porque os autores e os especialistas concordam com a versão final. O artigo é então lido por outros cientistas da área. Seu sucesso é medido pelo número de vezes que é citado por outros artigos: um número elevado de citações demonstra o interesse e a aprovação por parte da comunidade científica.

Quando o resultado chega à imprensa, deveria ter passado por esse processo. Pelo menos, seus autores deveriam ter conversado com outros cientistas ou dado seminários sobre seus resultados. Nem sempre isso ocorre. Na euforia da descoberta, cientistas contatam a imprensa e resultados são disseminados antes de serem propriamente checados. Outro problema é que descobertas que envolvem experimentos complexos às vezes não são duplicadas. Portanto, o processo é eficiente mas não perfeito. Afinal, ele é produto de pessoas que, mesmo bem intencionadas, não são infalíveis. Para complicar, existe a tentação da fama, das bolsas de pesquisa, dos prêmios. Vide o exemplo do pesquisador coreano que forjou os resultados sobre clonagem humana. O divulgador de ciência tem que filtrar, dentro do possível, o certo do incerto. Caso contrário, as pessoas não têm como diferenciar entre buracos negros em galáxias e fantasmas em espelhos.

domingo, 15 de outubro de 2006

Fóssil cósmico



Medir uma variação de temperatura tão pequena é um feito tecnológico incrível


Neste ano, muito merecidamente, o Prêmio Nobel de Física foi para dois pesquisadores americanos da área de cosmologia, John Mather e George Smoot. O que eles mediram foi nada mais nada menos do que as propriedades da radiação cósmica de fundo, fóssil principal do Universo primordial, produzida quando o cosmo tinha apenas 400 mil dos seus atuais 14 bilhões de anos. É essa radiação que dá ao modelo do Big Bang sua ampla aceitação na comunidade científica. Ela mostra que o Universo teve mesmo uma infância muito quente e densa, e que ele vem se expandindo e resfriando desde então.

Na sua infância mais tenra, quando tinha apenas uns cem mil anos, o cosmo era muito diferente: não existiam galáxias ou estrelas. O espaço era preenchido por uma sopa de partículas -na maioria os prótons, nêutrons e elétrons que compõem os átomos, e alguns núcleos atômicos leves, como o hélio e o lítio-, somada a radiação eletromagnética. Essa radiação, segundo a física moderna, pode ser interpretada como também sendo composta de partículas, chamadas fótons. Cada tipo de radiação eletromagnética -a luz visível, o ultravioleta, o infravermelho, as microondas ou os raios X -tem fótons com energia determinada. Por exemplo, a luz visível tem mais energia do que as microondas e menos do que os raios X.

Pois bem: segundo o modelo do Big Bang, naquela época os fótons, os elétrons e os prótons interagiam tão furiosamente que, a cada vez que os prótons e elétrons queriam juntar-se para formar átomos, os fótons interrompiam o flerte, num triângulo amoroso que não se resolvia. Finalmente, quando o Universo atingiu em torno de 400 mil anos e resfriou-se um pouco mais, os fótons perderam energia a ponto de permitir que elétrons e prótons formassem os primeiros átomos de hidrogênio, o elemento químico mais simples.

A partir daquele momento, os fótons passaram a viajar livremente pelo espaço, dando origem à radiação cósmica de fundo. Ela havia sido prevista já no final dos anos 1940, por George Gamow, Ralph Alpher e Robert Hermann, os primeiros a sugerir o modelo do Big Bang. Sua existência foi confirmada em 1964, o que rendeu o Prêmio Nobel aos seus descobridores, Arno Penzias e Robert Wilson. O que Mather e Smoot fizeram foi estudar as propriedades da radiação em grande detalhe e verificar uma outra previsão feita por físicos teóricos, a de que a radiação cósmica de fundo carrega informação do processo responsável pelo nascimento das galáxias e da sua distribuição no espaço.

Mather e Smoot fizeram suas medidas fora da Terra, com o satélite da Nasa batizado Cobe (do inglês Cosmic Background Explorer), entre 1989 e 1990. Mather e seu time mostraram que, de fato, a radiação é extremamente homogênea, tendo a mesma temperatura em todos os pontos do espaço, medida em 2,75 Kelvin, ou -270,25C. Muito frio o cosmo atual! Mas existe uma variação de temperatura de uma parte em cem mil, ou seja, de um centésimo de milésimo de grau. Essa variação é devida à aglomeração de enormes nuvens de gás, cuja gravidade afeta a temperatura dos fótons. Essencialmente, eles perdem energia ao tentar escapar das nuvens e a ganham ao cair nelas, como uma criança num escorrega. Esse ganho ou perda de energia causa a minúscula variação de temperatura medida pelo Cobe. Medir, usando um satélite, uma variação de temperatura tão pequena é um feito tecnológico incrível. Como disse Smoot metaforicamente, "foi como ver a face de Deus": a radiação é um registro das variações gravitacionais que levaram às primeiras galáxias e, finalmente, a nós.

domingo, 8 de outubro de 2006

O elétron e o futebol



Para a física do século 19, átomos não poderiam existir


Outro dia, um amigo me fez uma pergunta aparentemente ingênua sobre o elétron. Como toda boa pergunta, por trás dela escondem-se grandes revelações. No caso, as idéias da física do século 20 que revolucionaram nossa concepção da matéria, lançando a sociedade na era atômica e digital. "Marcelo, se o elétron tem carga elétrica negativa, o próton positiva e cargas opostas se atraem, por que os elétrons nos átomos giram em torno dos prótons sem cair? O que os segura?"

A pergunta é inspirada pelo modelo do átomo como sendo uma espécie de minissistema solar, com os elétrons girando em torno do núcleo como os planetas em torno do Sol. No caso dos planetas, a força responsável é a gravidade. Por que os planetas não caem sobre o Sol? A explicação é bem diferente da dos átomos.

Em vez de planetas girando em torno do Sol, vamos usar um exemplo mais palpável, uma pedra atraída pela Terra. Se soltarmos a pedra de certa altura, ela cai na vertical em direção ao centro da Terra. Se atirarmos a pedra na horizontal, ela já não cai mais na vertical, mas descreve uma curva parabólica. Quanto maior a velocidade da pedra na horizontal, mais longa a curva e mais longe ela cai. Um satélite em órbita em torno da Terra é como essa pedra; só que viajando a uma velocidade tão alta que continua sempre caindo, sem tocar no chão. Os planetas também são satélites "caindo" sobre o Sol. E por que não caem de vez? Por que no espaço não tem ar e, portanto, não tem atrito.

"Ah, então é isso? Os elétrons giram sem cair em torno do núcleo atômico porque não existe atrito no átomo?" perguntou meu amigo. Infelizmente não é tão simples. A força elétrica é bem diferente da gravitacional. Quando uma carga gira em torno de outra, ela emite radiação e perde energia. Aos poucos, o elétron cairia sobre o núcleo com certeza. Essa é a conclusão à qual chegaríamos se usássemos a física do século 19 para descrever os átomos: segundo ela, os átomos não podem existir!

A solução foi criar uma nova física, obedecida por objetos de dimensões atômicas. O mundo do muito pequeno obedece à leis muito diferentes das nossas. Onde começar? Em 1913, Niels Bohr propôs a primeira extensão do modelo do átomo além de um minissistema solar. Afirmou que o elétron não cai no núcleo porque não pode: suas órbitas são como degraus de uma escada.
Podemos estar em um ou outro mas não entre dois. Imagine então o átomo como uma espécie de um minúsculo Maracanã. O núcleo fica no centro do gramado. Os elétrons podem correr em torno dos degraus da arquibancada. De vez em quando, pulam de um degrau a outro. Se vão para cima usam energia, para baixo, liberam energia. Porém, os elétrons jamais podem sair da arquibancada invadir o campo. Bohr não explicou o porquê da proibição. Mas o modelo funcionou bem o suficiente para que ficasse claro que ele tinha elementos da explicação final.
Em 1925, foi proposto que o elétron não fosse uma simples bolinha de bilhar. Objetos de dimensões atômicas não podem ser descritos com imagens do nosso dia-a-dia. Não sabemos o que o elétron é. Apenas como se comporta, o que já é suficiente. E seu comportamento obedece ao princípio da incerteza, que diz que não podemos medir sua posição e velocidade com precisão arbitrária.

Ou seja, se acharmos que o elétron está pertinho do núcleo, já não está mais. Sua posição sempre vai ser incerta, numa espécie de vibração incessante. Feito uma partida de futebol; como vimos na Copa do Mundo passada, essa coisa de ser favorito é muito incerta também.

domingo, 1 de outubro de 2006

Ciência e democracia

Algo de terrível ocorreu no país que se diz o grande exportador de democracia, os EUA

Em época de eleição, é sempre importante revermos certas premissas sociopolíticas que permitem o livre fluir das idéias e, com isso, estabelecem as bases de uma cultura na qual a democracia é celebrada e não condenada. Um dos fundamentos da democracia é a possibilidade de cada cidadão ter liberdade de expressar suas opiniões e, através de seus representantes políticos, vê-las debatidas e, se possível dentro de uma maioria, vê-las abraçadas pela sociedade.

Ou seja, votamos para que nossas idéias e opiniões sejam representadas para o resto da sociedade pelos políticos que elegemos. Portanto, os políticos deveriam ver com muita seriedade o seu papel de representantes da opinião pública, das pessoas que os escolhem como a sua voz perante o resto da sociedade. Quando não o fazem, e, infelizmente, isso ocorre com mais freqüência do que os eleitores gostariam, é porque não levam o seu trabalho -e a confiança que neles foi depositada por milhares ou mesmo milhões de pessoas- a sério.

Claro, isso não é novidade, ou não deveria ser, para ninguém. Me vem em mente a confiança que depositamos nos nossos cientistas e engenheiros ao entrarmos num carro ou avião. Se essas máquinas não funcionarem perfeitamente, acidentes poderão ocorrer, muitas vezes com resultados fatais. Se não confiássemos nos engenheiros e cientistas, jamais viajaríamos de avião. Se televisões e computadores explodissem quando fossem ligados não assistiríamos televisão ou usaríamos computadores: a sociedade entraria em pane e retornaríamos ao século 19 -quando, aliás, a democracia ainda usava calças curtas nos EUA e não existia em vários outros lugares. Imagine se o mesmo ocorresse com a política: se não confiássemos nos nosso políticos, jamais votaríamos neles. Ou em ninguém. O resultado seria desastroso: sem eleição não pode haver democracia e, sem democracia, a opinião do povo não é representada.
Sem essa confiança a sociedade não funciona, política ou tecnologicamente. Algo de terrível ocorreu com o processo democrático recentemente no país que se diz o grande exportador de democracia para o mundo, os EUA. Menciono isso como um exemplo a não ser seguido por nós, mesmo porque muito possivelmente sofreremos, nós e o resto do mundo (inclusive os EUA), as conseqüências dele.

Em fevereiro, cientistas trabalhando para a Secretaria Nacional da Atmosfera e Oceanos (Noaa) dos EUA resolveram criar um painel para debater a possível relação entre furacões e o aquecimento global. Dadas as terríveis conseqüências dos furacões, que causam devastação e morte em proporções apocalípticas, o painel é extremamente importante. Vide o furacão Katrina, que arruinou a cidade de Nova Orleans. O painel, segundo a prestigiosa revista científica "Nature", concluiu que, de fato, existe uma relação entre o aquecimento global e o aumento no número e intensidade dos furacões. Os resultados do painel deveriam ser publicados em maio. Só que não foram. Diretores da Noaa bloquearam sua publicação, dizendo que o texto não representa a posição oficial da agência. O Estado interferiu na livre circulação das idéias.

Qual é a posição oficial? Os EUA não assinaram o Protocolo de Kyoto, que visa controlar a emissão de gases poluentes que cientistas acusam de causar o aquecimento global. Controlá-los significaria impor restrições às indústrias, o que acarretaria em custos. A quem, então, está servindo o governo americano? Certamente não à sua população ou à população mundial, que sofre as conseqüências claras dos furacões, entre outras. Essa visão de curto prazo vai custar muito mais no futuro.

domingo, 24 de setembro de 2006

Entre a física e a metafísica


É pensando nas fronteiras do saber que novas idéias surgem

Metafísica, por definição, é o estudo dos fundamentos da realidade e do conhecimento. Por fundamentos da realidade deve-se entender o significado do ser, do saber, da substância, da causa, da identidade, do espaço e do tempo. Física, por sua vez, está relacionada com o estudo do mundo material e as leis que descrevem seu funcionamento.

Qual a relação entre as duas, se é que existe alguma? Coloquialmente, metafísica virou exatamente o que não é realidade. Quando alguém fala, "Ah, mas isso é metafísica", a conotação é de que o assunto sai da realidade, é especulativo demais, coisa de sonhador. Estranho como o sentido da palavra foi modificado.

Mas será que essa divisão entre a física e a metafísica realmente procede? Talvez no passado fizesse mais sentido, se bem que as duas sempre flertaram. O ponto é que a física, especialmente a física moderna, desenvolvida a partir do inicio do século XX, também lida com noções de saber, de espaço e de tempo. A modificação, ou melhor, o casamento entre a física e a metafísica, se solidificou quando Einstein desenvolveu sua teoria da relatividade, combinando os conceitos de espaço, tempo e matéria. Se a matéria encurva o espaço e pode afetar a passagem do tempo- como explica a teoria da relatividade geral (1916)-, é impossível falar de um sem mencionar o outro. Ou seja, o comportamento e as propriedades da matéria são intimamente ligadas com a estrutura do espaço e do tempo. Ademais, se um observador em movimento em relação a outro obtém medidas diferentes de espaço, tempo e massa -como explica a teoria da relatividade especial (1905)-, o saber, se interpretado como dependente do que aferimos da realidade, também é parte da física. saber, no caso, equivale a informação
Talvez seja por isso que alguns físicos brincam que enquanto os filósofos discutem as propriedades do espaço e do tempo, eles as descobrem e definem. Na verdade, as duas disciplinas estão mais juntas do que se admite, a filosofia (da ciência, deve-se dizer) focando nos conceitos e a física na matemática, ambas tentando entender nossa relação com a realidade física e subjetiva do mundo.

Recentemente, alguns físicos vêm sendo acusados de estarem fazendo mais "metafísica" do que física, no sentido coloquial. Trabalham na teoria das supercordas, que supõe que as entidades fundamentais da matéria não são partículas pontuais mas tubos submicroscópicos capazes de vibrar de modos diferentes. Cada vibração tem sua freqüência que pode ser equacionada como uma partícula de matéria. O objetivo das supercordas é unificar as duas teorias fundamentais da física moderna, a teoria da relatividade e a mecânica quântica, que descreve o comportamento dos átomos e das partículas subatômicas.

O problema é que a matemática da teoria é extremamente complexa e leva a previsões realmente bizarras. Por exemplo, o número de dimensões do espaço não seria três, como pensamos (norte-sul; leste-oeste; acima-abaixo) mas dez, uma temporal e nove espaciais. As seis dimensões extra estariam enroladas em uma esfera ou outra geometria compacta de tamanho tão pequeno a ponto de ser absolutamente invisível aos nossos olhos e aos experimentos. Outra previsão é a existência de uma série de partículas, ditas supersimétricas.
Infelizmente, nenhuma das previsões foi ainda verificada. Alguns dizem que jamais serão. Mesmo que isso seja verdade e as supercordas não passem de uma fantasia, é pensando nas fronteiras do saber que novas idéias surgem, algumas corretas. O duro é não insistir em algo errado a ponto de não ver-se o óbvio.

domingo, 17 de setembro de 2006

O Sol virtual

De longe, duma praia, por exemplo, o Sol parece um objeto pacato, um disco que emite luz e calor sempre do mesmo jeito, dia após dia. Na verdade, o Sol é uma fornalha infernal, com temperaturas na superfície chegando a 6.000C. Não só isso; sua superfície é extremamente instável, borbulhando sem parar, composta de um gás de partículas como elétrons e prótons conhecido como plasma. Por trás dessa agitação toda está o calor gerado no interior solar, onde a temperatura chega a mais de 10 milhões de graus Celsius.

Volta e meia o Sol passa por períodos de atividade intensa, nos quais bolhas gigantescas de matéria, algumas pesando bilhões de toneladas, são emitidas para o espaço como bólidos incandescentes. Cerca de 10% dessas emissões vêm na direção da Terra, à velocidade de 1,5 milhão de quilômetros por hora. Essas bolhas de matéria magnetizada são conhecidas como ejeções coronais de massa. Se poderosas o suficiente, podem causar sérios danos aqui na Terra.
Essas tempestades solares são responsáveis, por exemplo, por desestabilizar a órbita de alguns satélites, sendo até capazes de danificar seus sensores. Astronautas na Estação Espacial precisam procurar abrigo devido ao aumento de radiação. Mesmo passageiros em aviões podem ser expostos a doses perigosamente altas de raios X. A quantidade de energia liberada é tamanha que seus efeitos podem às vezes ser sentidos na superfície terrestre: em 1989, uma dessas tempestades provocou pane em usinas elétricas da região de Québec, no Canadá, resultando em um apagão.

Esses danos e o potencial para outros ainda maiores fomentam o interesse em prever o comportamento do Sol, fazendo estimativas de quando essas tempestades poderão ocorrer.

Pela primeira vez um comportamento do astro foi simulado com sucesso

O problema é extremamente complexo: o Sol demora 34 dias para girar sobre si mesmo nos pólos e 25 no equador. Essa rotação diferenciada distorce os campos magnéticos que existem no interior da estrela, tornando sua descrição matemática complicada. Uma boa visualização do campo magnético solar é imaginar que sua superfície é coberta por fios de cabelo que avançam por seu interior. Alguns desses fios formam arcos, saindo em um ponto da superfície e entrando em outro. Esses fios são as linhas do campo magnético solar. Com a rotação, tais linhas são retorcidas de tal forma que, de vez em quando, arrebentam e arremessam parte da matéria solar para o espaço, como uma pedra lançada por um estilingue. As pedras, no caso, são as ejeções coronais de massa.


Recentemente, um grupo de astrofísicos conseguiu um feito fantástico. Eles desenvolveram simulações do Sol capazes de reproduzir seu comportamento quantitativamente. O teste deu-se no eclipse total do Sol do dia 29 de março deste ano, o de maior duração de que se tem notícia, com quatro minutos e sete segundos de totalidade, isto é, com a Lua bloqueando todo o disco solar.

Duas semanas antes do eclipse, o grupo liderado por Zoran Mikic e Jon Linker, de uma empresa de San Diego no EUA, apresentou em detalhes como o Sol se comportaria durante o eclipse, em particular a corona, a região externa à superfície solar visível apenas durante eclipses. Foram necessários 700 computadores rodando por 4 dias. Mikic foi até a Turquia confirmar se suas simulações funcionaram. O sucesso convenceu a comunidade cientifica de que, pela primeira vez, o Sol virtual brilhou como o real. Parece que a equipe celebrou com muita cerveja, aparentemente da marca mexicana "Corona". Mas o ponto é que, com isso, vai ficar mais fácil prever quando tempestades solares podem ameaçar a Terra.

domingo, 10 de setembro de 2006

Peculiaridades quânticas

Das várias idéias científicas propostas durante o século 20, poucas se comparam em relevância e impacto social à física quântica, o ramo da física que descreve os movimentos e propriedades de moléculas, átomos e partículas subatômicas. Não é para menos: a física quântica é responsável por duas revoluções tecnológicas que essencialmente definem a sociedade moderna: a tecnologia digital dos celulares, CDs, lasers, DVDs etc. e a tecnologia nuclear dos reatores e das bombas.

Curiosamente, o interesse popular na física quântica não se relaciona com suas aplicações tecnológicas, vistas como caixas-pretas cujo funcionamento é compreensível apenas por engenheiros e técnicos ultra-especializados. O interesse vem mais das repercussões filosóficas da teoria, muito exploradas e às vezes distorcidas em livros e documentários.
Que a física quântica tem de fato propriedades bizarras não é segredo: o próprio Albert Einstein (1879-1955), que propôs algumas das idéias-chaves da teoria -como o fato de a luz ser tanto onda quanto partícula-, desconfiava de sua formulação probabilística, acreditando que uma descrição mais fundamental existia e seria um dia encontrada.

O que incomodava Einstein era a mudança conceitual que o mundo quântico nos força a aceitar. Na física do dia-a-dia, pode-se calcular com precisão a posição e a velocidade dos objetos, sejam eles bolas de bilhar ou cometas girando em torno do Sol. No mundo quântico, essa certeza é substituída por probabilidades: por exemplo, não podemos afirmar com precisão arbitrária qual a posição de um elétron que gira em torno de um núcleo atômico. Podemos apenas estimar a probabilidade de ele estar nesta ou naquela órbita. Einstein não gostava dessa história de probabilidade; daí ter afirmado em ocasiões diferentes não achar que "Deus joga dados". Até hoje ninguém encontrou uma descrição alternativa da mecânica quântica que justifique a desconfiança de Einstein. Parece que a natureza gosta, sim, de jogar dados.

Ninguém achou uma descrição da mecânica quântica que justifique a desconfiança de Einstein

Voltando ao elétron, o que podemos afirmar sobre os seus movimentos? De certa forma, antes de sua posição ser medida, o elétron não está em lugar nenhum e está em todos os lugares. Não devemos visualizá-lo como uma bolinha de bilhar girando em torno do núcleo, como se o átomo fosse um sistema solar em miniatura. O elétron pode também ser visto como uma onda que está em muito lugares ao mesmo tempo. Porém -e aqui algo de muito estranho ocorre-, quando uma medida é feita, o elétron "escolhe" uma órbita especifica.

Uma visualização imperfeita é imaginar o átomo como um anfiteatro, cujas escadas circundam o centro. Cada degrau é uma órbita. Antes da medida, o elétron pode estar em qualquer uma das órbitas. Até mesmo em muitas delas ao mesmo tempo. Quando a medida é feita, as coisas mudam radicalmente: o ato de medir interfere na liberdade do elétron, forçando-o a escolher uma das órbitas. Qual é a escolhida? A teoria quântica nos fornece apenas probabilidades de o elétron se encontrar nesta ou naquela órbita após a medida. Se repetirmos o mesmo experimento muitas vezes, o elétron aparecerá em órbitas diferentes com probabilidades dadas pela teoria.

Portanto, mesmo que o mundo quântico seja probabilístico, a teoria descreve precisamente esse comportamento. Aliás, graças a essa precisão a revolução digital foi possível. O fato de o mundo quântico ser probabilístico não é um defeito da teoria mas uma propriedade fundamental da natureza. Einstein me perdoe, mas realmente não há razão para supormos que a teoria quântica esteja incompleta.

domingo, 3 de setembro de 2006

A escada modular



A engenharia natural depende de padrões que se repetem


Qualquer tipo de engenharia, para funcionar, precisa de módulos: partes de máquinas facilmente substituíveis ou que podem ser encaixadas umas nas outras rápida e eficientemente. Quando era garoto, adorava brincar com blocos de madeira e mais ainda com o Lego, aqueles tijolinhos de plástico que podem se transformar em aviões, barcos, espaçonaves ou monstros. Não é à toa que a engenharia usa a construção modular; a natureza também gosta de módulos, e o que fazemos é imitar, humildemente, o que aprendemos com ela. Os módulos mais simples são os átomos, conjuntos de apenas três partículas: elétrons girando em torno de núcleos feitos de prótons e nêutrons. Como num jogo de Lego que contém apenas três tipos de peças (mas muitas de cada uma delas), os átomos organizam suas partículas para criar todos os elementos químicos que ocorrem no Universo, do mais simples, o hidrogênio, com um elétron e apenas um próton no núcleo, ao urânio, com 92 elétrons e prótons e 146 nêutrons (há átomos maiores, mas eles foram criados artificialmente).

Após os átomos vêm as moléculas, combinações de átomos. A mais famosa talvez seja a molécula de água, com dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio. Aqui, o número de combinações dispara; imagine poder combinar átomos de vários tipos e em números diversos, usando a atração elétrica entre eles. Existe, entretanto, uma distinção entre dois tipos de moléculas: as inorgânicas e as orgânicas. Como já diz o nome, as moléculas orgânicas têm algo a ver com a matéria dos organismos. Essencialmente, a química orgânica trata dos compostos formados por átomos de carbono, com exceção de sais simples, como carbonato de sódio. O interessante é que o conceito de módulo reaparece na química inorgânica e orgânica. Na inorgânica, temos os cristais, arranjos regulares de átomos. Na orgânica, da mesma maneira, os polímeros são compostos que repetem uma seqüência contendo átomos de carbono ligados entre si, como a espinha dorsal de uma serpente, C-C- C-C... Por sua vez, os átomos de carbono ligam-se a outros átomos, como hidrogênio ou radicais de hidroxila (OH), que têm um átomo de oxigênio e um de hidrogênio.

No próximo degrau na escada modular, encontramos as macromoléculas orgânicas, essenciais para a vida. A molécula de DNA, responsável pela transmissão de informação genética de geração a geração, tem uma estrutura modular baseada em grupos de aminoácidos, moléculas que contêm carboxila (COOH) e aminas (NH2). Os aminoácidos têm um papel fundamental na vida, sendo integrantes das proteínas.

Continuando, chegamos às células, bolsas contendo inúmeras estruturas que também se repetem, formadas, por sua vez, por macromoléculas orgânicas. Já as células se organizam em grupos modulares para criar os diversos tecidos. Módulos dentro de módulos dentro de módulos... Existe um princípio operando aqui, uma engenharia natural que se beneficia da repetição de padrões, que constrói estruturas cada vez mais complexas a partir de partes mais simples. A escada modular continua ao pularmos para o espaço. Vemos a repetição de padrões nas estrelas e suas cortes de planetas, nas galáxias que contêm bilhões de estrelas, e até nos grupos de galáxias, que podem ter centenas ou milhares delas, atraídas gravitacionalmente. Se nos átomos, nas moléculas e nas células é a atração elétrica que controla a composição modular, no espaço as estruturas são forjadas pela gravidade. Muda o cimento, mas não o princípio arquitetônico: o complexo pode surgir do simples. O todo é muito mais do que a soma das partes.

domingo, 27 de agosto de 2006

Nós, os marcianos


A vida que há na Terra pode ter surgido em Marte

Invasões marcianas vêm ocorrendo ao menos desde o final do século 19, quando o magnata americano Percival Lowell resolveu deixar os negócios e construir um telescópio em Flagstaff, no Arizona, dedicado exclusivamente a pesquisar o planeta vermelho. Lowell motivou-se nas observações do italiano Giovanni Schiaparelli, que identificou o que chamou de "canais" cruzando a superfície do planeta. Suas observações o levaram a uma conclusão surpreendente: os canais foram escavados por uma civilização antiga e sábia que habitava as regiões equatoriais extremamente áridas do planeta. De acordo com Lowell, a função dos canais seria levar água dos pólos ao equador.

Entre os leitores de Lowell estava H. G. Wells, o grande escritor de ficção científica. Em 1898, Wells publica "A Guerra dos Mundos", que conta como os marcianos vieram até aqui para acabar com os humanos e tomar posse da nossa querida Terra. O medo dos marcianos tomou conta da imaginação das pessoas. Passaram a representar tudo de terrível que somos capazes de fazer e que, de fato, foi feito, quando potências tecnologicamente avançadas invadiram (e invadem) novas terras, como quando os europeus "colonizaram" as Américas e a África.

Mas os marcianos não ficaram apenas na ficção. A possibilidade de que a vida tenha existido e ainda exista em Marte é foco de pesquisas realizadas por cientistas no mundo inteiro. Em 1975, as sondas americanas Viking-1 e Viking-2 coletaram amostras da superfície marciana buscando restos biológicos de seres vivos ou, se não isso, ao menos alguma pista de processos bioquímicos.
Infelizmente, os resultados foram negativos: nenhum vestígio de vida foi encontrado. Ao menos parecida com a nossa. É sempre possível supor que outras formas de vida tenham uma bioquímica difícil de identificar com métodos tradicionais. Afinal, a vida é bem mais criativa do que nós. Novas missões procurarão não só ampliar essas pesquisas mas, também, escavar o subsolo marciano, que pode conter água. Isso porque a superfície marciana é um deserto árido e sua atmosfera pouco densa não é das mais propícias à vida. Pelo menos hoje.

No passado, a coisa era bem diferente. A superfície de Marte é repleta de vales e leitos de rios ressecados, escavados pelo fluxo de água líquida. Lowell não estava assim tão errado, mesmo que esses "canais" tenham sido escavados pela natureza e não por máquinas marcianas. Se água líquida existia no passado, a temperatura em Marte era semelhante à da Terra de hoje. Isso sugere que a vida pode ter existido lá.

A geologia marciana sugere que os canais foram formados quando Marte e a Terra eram bem jovens, durante o seu primeiro bilhão de anos de existência, uma época em que a Terra não oferecia condições para o desenvolvimento da vida. Enquanto a Terra estava sendo bombardeada por asteróides de todos os tamanhos e sua superfície era mais parecida com uma visão do inferno, Marte possivelmente era um paraíso tropical.

Volta e meia, asteróides caíam também em Marte, arrancando rochas de sua superfície. Algumas delas viajaram pelo espaço e vieram parar aqui. Se a vida existia em Marte, é possível que tenha pego carona nessas rochas. Se não a vida, ao menos as moléculas orgânicas necessárias para ela. Em 1984, foi descoberto um meteorito marciano na Antártica que parecia conter restos de vida. Após muito debate, parece que foi alarme falso. Mas existe a possibilidade de que a vida tenha surgido em Marte e sido transferida para a Terra. Nesse caso, seríamos nós os marcianos. A realidade pode ser mais fascinante do que a ficção.

domingo, 20 de agosto de 2006

Ora (direis) contar planetas! Parece haver casos em que a definição de planeta não vale

O imenso aumento no poder dos telescópios na última década tem causado uma verdadeira revolução no nosso conhecimento do Sistema Solar. Aliás, do Sistema Solar e de dezenas de outros sistemas estelares que não sabíamos que existiam; bandos de planetas girando em torno de suas próprias estrelas, algumas a incomensuráveis anos-luz de distância daqui. Com essa chuva de novos mundos, vêm também as surpresas. Como saber se o padrão seguido pelo Sistema Solar é a regra ou a exceção? Seríamos exóticos ou normais? Para respondermos, temos primeiro que entender bem o que é um planeta. E é aqui que nasce a confusão.
Na época de Copérnico era tudo simples: existiam apenas seis planetas, aqueles visíveis a olho nu. Com o desenvolvimento dos telescópios, as surpresas começaram. Primeiro, Galileu descobriu em 1610 que existiam quatro luas girando em torno de Júpiter. Em 1781, Urano foi descoberto por William Herschel, seguido por Netuno em 1845. Embora Urano esteja no limite do que é visível a olho nu, passou despercebido até o século 18. Ficou claro que existem muitos objetos girando em torno do Sol além dos que podemos ver a olho nu. Mas quantos? Até 1930, as coisas paravam em Netuno e tudo parecia estar bem. Foi então que o americano Clyde Tombaugh descobriu o pequenino Plutão, menor do que a nossa Lua. Comparado com seus vizinhos, os gigantes gasosos Júpiter, Saturno, Urano e Netuno, Plutão é um detalhe. Até sua composição química é diferente: enquanto os gasosos são ricos em hidrogênio e hélio, Plutão é composto de gelo e metano congelado. Fora isso, enquanto os outros planetas giram em torno do Sol aproximadamente no mesmo plano, feito azeitonas numa pizza, a órbita de Plutão tem uma inclinação de 17 graus. A inclinação de Mercúrio, o único outro fora da pizza orbital, tem inclinação de 7 graus. Dadas essas diferenças, alguns astrônomos começaram a se questionar se Plutão é mesmo um planeta.
A coisa ficou ainda mais complicada quando se descobriu que existem milhares de corpos celestes formando um cinturão além da órbita de Plutão. O cinturão de Kuiper, como é chamado, é o berçário de muitos dos cometas que passeiam pelo interior do Sistema Solar -bolas de gelo e gás congelado que entram em incandescência ao se aproximar do Sol. O próprio Tombaugh apelidou Plutão de "rei do cinturão de Kuiper". Mas se Plutão for mesmo considerado parte do cinturão, será que seus outros integrantes também são planetas? Ou será que devemos definir planetas a partir de um tamanho mínimo, digamos, um raio de mais de mil quilômetros?
A definição comum é que planeta é um corpo esférico, grande, que gira em torno de uma estrela e que não tem massa suficiente para gerar a própria luz. Recentemente, um planeta gigantesco foi encontrado girando em torno de uma estrela que... não brilha! Do tipo conhecido como anã marrom, a miniestrela tem massa equivalente a 14 vezes a de Júpiter. E o seu planeta, a sete. Estão no limiar do que divide um planeta de uma estrela. A definição claramente não se aplica: afinal, planeta não gira em torno de planeta.
Voltando a Plutão, ano passado foi descoberto um objeto maior do que ele apelidado de "Xena", com órbita três vezes mais distante do Sol e que demora 560 anos para ser completada. (A de Plutão leva 248). Tem até lua. Integrante do cinturão de Kuiper, "Xena" se tornou candidato a ser o décimo planeta. Ou será que Plutão virá a perder seu status? Em breve, a situação ficará definida. Se aparecerem muitos "Xenas", melhor baixar a contagem e tirar Plutão da lista. Tenho certeza de que ele não se importaria.

domingo, 13 de agosto de 2006

A nova sopa cósmica Fótons, prótons e elétrons viviam um triângulo amoroso

Costumo escrever com freqüência sobre a infância do Universo, falando de coisas que aconteceram há 13,8 bilhões de anos. Volta e meia leitores me perguntam, alguns mais curiosos, outros mais indignados, como é possível termos certeza do que ocorreu tão cedo na história cósmica, numa época em que não existiam pessoas, estrelas ou mesmo átomos para observar e fazer medidas.
A resposta tem duas partes. Uma delas é semelhante ao que diria um paleontólogo: embora não existíssemos quando os dinossauros reinavam sobre a Terra, podemos acumular evidências de sua presença e detalhes das várias espécies estudando seus fósseis. Esse é o modo mais direto de reconstruir o passado, através do estudo de coisas que foram preservadas e que são acessíveis hoje. No caso do Universo primordial, temos alguns fósseis também. O mais famoso deles é a chamada radiação cósmica de fundo, que é composta pelos fótons, as partículas que equivalem à luz e aos outros tipos de radiação eletromagnética, como os raios X e a radiação infravermelha, que emergiram do processo de formação dos primeiros átomos, quando o universo tinha a (relativamente) tenra idade de 400 mil anos.
Antes disso, prótons, elétrons e fótons interagiam violentamente, num triângulo amoroso que não se resolvia. Com a expansão gradual do Universo, a matéria se resfriou; no fim das contas, os prótons e elétrons se juntaram para formar os primeiros átomos de hidrogênio e os fótons passaram a se propagar livremente pelo espaço. Suas propriedades, estudadas em detalhe em dezenas de experimentos, alguns a bordo de satélites, permitem a reconstrução do cosmo nessa era tão distante do passado.
O segundo método para estudar a infância cósmica é mais ambicioso: tentar reconstruir no laboratório as condições presentes nos primeiros instantes de existência do Universo. A dificuldade é que, quando voltamos no tempo, a matéria fica cada vez mais comprimida e a temperatura sobe. Por exemplo, na época em que se formaram os primeiros átomos, a temperatura era de aproximadamente 2.700 graus Celsius, coisa fácil de reproduzir no laboratório. Como comparação, a temperatura na superfície do Sol é de 6.000 graus. Mais perto da origem do tempo, a temperatura sobe ainda mais. Para reproduzir tais condições, são necessárias máquinas que aceleram núcleos atômicos ou partículas subatômicas até velocidades próximas da velocidade da luz.
Um desses aceleradores é o RHIC (Colisor Relativístico de Íons Pesados), que opera nos EUA. Seu objetivo é repetir as condições que existiam no cosmo quando tinha apenas um centésimo de milésimo de segundo de existência. Para tal, núcleos de átomos de ouro são postos em dois anéis de 3,8 km de diâmetro e acelerados em sentidos opostos até atingirem 99,99% da velocidade da luz. Depois disso, os feixes de núcleos são alinhados como duas mangueiras, causando colisões entre deles. Durante frações de segundo, a matéria na região da colisão atinge temperaturas de 1 trilhão de graus Celsius: a mesma que existiu na infância cósmica quando nem mesmo núcleos atômicos estavam presentes. Os próprios prótons e nêutrons se dissolvem em seus constituintes, os quarks e os glúons. E o que se observa é uma sopa de quarks e glúons semelhante, mas não idêntica, àquela prevista por teorias que descrevem a infância cósmica. Essas diferenças podem ter repercussões profundas. Só com novos experimentos poderemos confirmar o que de fato ocorreu. Felizmente, uma máquina ainda maior entrará em funcionamento na Europa em 2008. Será o ponto mais quente do cosmo, ao menos hoje em dia.

domingo, 6 de agosto de 2006

Visões harmônicas Há uma tradição na ciência que mistura razão e espiritualidade

Sempre que reflito sobre a belíssima ordem que observamos no mundo, como cada coisa se origina de outra, sinto-me como se estivesse lendo um texto divino, escrito não com letras mas com objetos, que dissesse: Homem, amplia tua razão, para que possas compreender." Assim escreveu Johannes Kepler, o grande astrônomo alemão que, no início do século 17, revolucionou a astronomia propondo que as órbitas planetárias são elípticas e não circulares, como se acreditava por mais de 2.500 anos.
Em toda a história da ciência, poucos, talvez ninguém, expressaram de modo mais lírico a motivação pela pesquisa, a devoção ao "mistério" que rege a vida de um cientista. Esse texto foi escrito em 1604, 51 anos após Copérnico ter publicado "Sobre as Revoluções das Esferas Celestes", onde propôs que o Sol e não a Terra era o centro do cosmo. Poucos deram atenção às idéias de Copérnico; a "revolução" copernicana se deu lentamente, e principalmente graças aos esforços de Kepler e Galileu, que viveu na mesma época na Itália. Kepler era bem mais copernicano do que o próprio Copérnico: não só insistiu em manter o Sol no centro como obteve, pela primeira vez, as leis matemáticas que justificavam o arranjo dos planetas em torno do Sol: o Sol não era apenas o centro do cosmo por motivos estéticos, como sustentava Copérnico, mas, também, por razões físicas e teológicas. Físicas porque Kepler propôs que uma força vinda do Sol era a responsável por manter os planetas em órbita à sua volta. Aqui encontramos o germe da teoria da gravidade, que será desenvolvida por Newton ainda no mesmo século; teológicas porque Kepler acreditava num Deus geômetra, todo-poderoso em Sua criatividade, um Deus que construiu o cosmo segundo leis matemáticas precisas e que gerava a luz que iluminava aquele cosmo e tornava a vida possível. Para este cientista alemão, o Sol era a morada divina, ao menos metaforicamente.
Mas é o aspecto lírico de Kepler que gostaria de explorar hoje. Sua relação com a ciência ia muito além de um mero trabalho, uma simples ocupação. Era a vocação à qual se entregou com a devoção de um místico, com um fervor que jamais se abateu, mesmo durante momentos extremamente difíceis de sua vida: a morte da esposa e vários filhos, as perseguições religiosas, o exílio forçado, a crítica dura de outros astrônomos e filósofos naturais, as privações da pobreza. Kepler conviveu com tudo isso e mais a solidão do visionário que sabia que suas idéias estavam certas, mesmo se ninguém, ou quase ninguém, compartilhasse de suas idéias e opiniões.
Era a "belíssima ordem" do mundo que o motivava, a harmonia que acreditava existir em todas as coisas, o texto sagrado do livro da Natureza, escrito pelas mãos invisíveis de um Deus matemático. Para Kepler, a ciência aproximava os homens de Deus, de Sua mente perfeita. A missão daqueles que pensavam a ciência era então usar a matemática para aproximar, mesmo que imperfeitamente, a perfeição da mente divina. Existe aqui uma tradição encontrada ainda hoje (e muito!) em ciência que mistura razão e espiritualidade, herdeira dos pitagóricos, os primeiros a propor que a matemática pode descrever o mundo, que é a língua comum entre Deus e os homens. O próprio Albert Einstein se declarou discípulo dessa tradição, quando afirmou que "a mais profunda emoção que podemos experimentar é inspirada pelo senso do mistério. Essa é a emoção fundamental que inspira a verdadeira arte e a verdadeira ciência". Não há dúvida que Kepler concordaria com Einstein. Tanto um quanto o outro criaram inspirados por suas visões harmônicas.

domingo, 30 de julho de 2006

Reinterpretando o Big Bang Teoria da origem da matéria não explica por que Universo é plano

De onde surgiu a matéria que compõe tudo o que existe? Essa pergunta, bem mais antiga do que a ciência, encontrou uma resposta no modelo cosmológico conhecido como Big Bang. Segundo ele, o Universo surgiu há aproximadamente 14 bilhões de anos, a partir de uma região menor do que uma moeda de um centavo onde a matéria estava comprimida a pressões e temperaturas absurdamente altas. De repente, devido a uma instabilidade não muito bem definida, essa matéria começou a se expandir como um balão de festa. À medida que isso ocorria, a temperatura foi baixando. A matéria original passou por uma série de transformações, ficando cada vez mais complexa, até que surgiram os primeiros átomos em torno de 400 mil anos após o "bang" inicial.
Essa é, de forma resumida, a história contada pelo modelo original, proposto no final da década de 1940 por George Gamow, Ralph Alpher e Robert Hermann. O trio de cientistas supôs que inicialmente a matéria fosse composta pelos integrantes dos átomos, prótons, nêutrons e elétrons e mais os fótons, as partículas da radiação eletromagnética. Sabiamente, não se preocuparam com a questão da origem dessas partículas. Contentaram-se em descrever a evolução cósmica a partir do momento em que elas já estavam presentes. Hoje, sabemos que isso se deu aproximadamente um centésimo de milésimo de segundo após o "bang".
O modelo, refinado desde os anos 1960, teve vários triunfos. Dentre eles, a previsão da existência da radiação cósmica de fundo, uma relíquia da época em que surgiram os primeiros átomos, descoberta em 1965. Entretanto, o modelo tem várias limitações. Uma delas é conhecida como o "problema da curvatura": a geometria cósmica tem de ser plana, a versão tridimensional da superfície de uma mesa.
Einstein mostrou em sua teoria da relatividade que a matéria encurva a geometria do espaço, tal qual encurvamos uma almofada ao sentarmos nela. No caso do Universo, existem três possibilidades, dependendo do balanço entre a quantidade de matéria no Universo e a força da expansão: se a matéria é muita, sua gravidade acaba provocando o colapso do Universo após alguns instantes. Se a matéria é pouca, o Universo se expande tão rapidamente que galáxias e estrelas não podem ser formadas. Sobra a possibilidade intermediária, um Universo no qual a expansão e a contração se mantém em equilíbrio. Esse Universo, que é o nosso, tem geometria plana.
A questão é por quê. O modelo original não responde a essa pergunta, limitando-se a usar a geometria plana de antemão. Em 1981, o físico americano Alan Guth propôs uma solução para o problema conhecida como universo inflacionário. Segundo ele, logo após sua origem, o cosmo passou por um período de expansão ultra rápida, mais rápida do que a velocidade da luz. Essa expansão resulta num cosmo plano. Basta pensarmos na superfície de um balão. Se focarmos numa região pequena, ela ficará cada vez mais plana com o crescimento do balão. Mas como isso ocorreu?
Guth sugeriu que, no começo, o cosmo tinha um tipo diferente de matéria, com a propriedade de criar uma expansão rápida da geometria, como uma espécie de anti-gravidade. Esse tipo de matéria exótica provavelmente existe. Após um curto período, a matéria se desintegra de maneira explosiva, enchendo o cosmo de partículas e radiação. Essa desintegração, segundo Guth, é o que chamamos de Big Bang. Portanto, o Big Bang não é o início, mas conseqüência de um processo anterior. O desafio agora é entender de onde veio essa matéria exótica. Felizmente, idéias não faltam.

domingo, 23 de julho de 2006

Lua, costela da Terra O satélite é, na verdade, feito das entranhas da Terra

Nossa companheira da noite, a Lua, inspira não só poemas e canções como também muita ciência. Na Grécia Antiga, Aristóteles sugeriu que a Lua demarcasse a fronteira entre dois mundos: o nosso, feito dos quatro elementos fundamentais, terra, água, ar e fogo, e o celeste, onde a Lua, os planetas e as estrelas eram feitos de uma quinta substância, a quintessência ou éter. Ao contrário dos quatro elementos terrestres, sempre em transformação, a quintessência era imutável, eterna: a Lua e os céus eram definidos pela sua constância. Quando perguntavam a Aristóteles por que a Lua não era um disco perfeito, como aparentava ser o Sol, dizia que sua proximidade da Terra e da atmosfera causava a ilusão de imperfeições na sua superfície.
Assim foi até que, em 1609, Galileu Galilei apontou seu telescópio para a Lua, revelando que de perfeita ela não tinha nada. Ao contrário, mostrou que a Lua era repleta de crateras e montanhas, parecendo bastante com as paisagens da Terra, ao menos geologicamente. Faltava algo de essencial, a cor, o verde das plantas e o azul dos mares. Esse aspecto morto da Lua não impediu que alguns especulassem sobre as criaturas que lá habitavam. No que parece ter sido o primeiro conto de ficção científica, em torno de 1630 (foi publicado postumamente) o astrônomo visionário Johannes Kepler especulou sobre seres lunares, meio parecidos com os daqui. Com isso, mesmo que através da ficção, Kepler argumentou em favor de uma Lua que não era fundamentalmente diferente da própria Terra.
Um pouco mais tarde, Isaac Newton baseou sua teoria da gravitação universal na órbita da Lua em torno da Terra. Segundo a lenda, enquanto descansava sob uma macieira na fazenda de sua mãe, Newton se perguntou, talvez quando uma maçã caiu sobre sua cabeça, se a força que fez a maçã cair era a mesma que fazia a Lua girar à nossa volta. Newton concluiu que sim: usando os resultados de Galileu, que mostrou que a trajetória de uma bala de canhão é parabólica, Newton sugeriu que a trajetória da Lua é como a de uma bala disparada de um canhão no topo de uma montanha muito alta, que cai em direção ao chão. Só que, a "montanha" é tão alta e a força do disparo tão grande que a bala (isto é, a Lua) continua sempre caindo, seguindo a curvatura da Terra. Aliás, isso é verdade para qualquer objeto em órbita, em torno da Terra ou de qualquer outro corpo celeste. Astronautas em órbita flutuam porque estão em queda livre, parecida com a que ocorre num elevador despencando.
Mas a questão da origem da Lua não foi investigada matematicamente até o início do século 19. O marquês de Laplace propôs um modelo de formação do Sistema Solar em que o Sol, planetas e luas surgiram de uma grande nuvem que, devido à instabilidades, entrou em colapso enquanto girava sobre si mesma. Com isso, foi se achatando no equador, como o que ocorre com uma pizza. Os planetas nasceram de concentrações de massas em torno do Sol no centro; as luas repetiam o processo em torno dos planetas. Hoje, sabemos que o nascimento da Lua foi bem mais dramático.
Bem no início da formação do Sistema Solar, há 4,6 bilhões de anos, a Terra-bebê, ainda uma massa de metais e rochas derretidos, foi abalroada por um planeta do tamanho de Marte. A colisão foi tão violenta que arrancou uma quantidade enorme de matéria da Terra. Parte dessa matéria entrou em órbita e, aos poucos, agregou-se em uma massa esférica: a Lua é feita das entranhas da Terra. Difícil não pensar nas linhas de Gênesis 2, 22: "Da costela que tirara do homem, Deus modelou uma mulher". Pares diferentes, mas sempre pares.

domingo, 16 de julho de 2006

Universo eterno, vida eterna?

Para se adaptar ao aumento da entropia, a vida terá de mudar

Em 1979, o físico e autor Freeman Dyson publicou um artigo no periódico científico "Reviews of Modern Physics" no qual especulava sobre o futuro da vida num Universo que existiria para sempre. A questão está ligada com a descoberta de que o Universo está em expansão, com as galáxias afastando-se umas das outras cada vez mais rapidamente, com velocidade proporcional à sua distância.

Se o Universo continuar essa expansão para sempre, podemos antever um futuro em que as distâncias entre as galáxias serão tão imensas que mal será possível receber informação das vizinhas: cada uma será, de certa forma, seu próprio universo, isolado na imensidão do vazio cósmico.

Para piorar, à medida que o Universo expande, ele resfria. As estrelas vão gastando seu combustível, eventualmente chegando a um estado final cuja temperatura também cai com o tempo. O quadro não é dos mais aprazíveis. Mas Dyson, reconhecidamente um otimista, tentou encontrar uma saída, mesmo dentro dessa situação desesperadora. Será que a vida é possível dentro de um Universo cada vez mais frio e mais vazio?

Para refletir sobre a questão, precisamos estabelecer do que a vida precisa para existir. Essencialmente, preservar a vida de um organismo é equivalente a preservar sua capacidade metabólica de transformar energia de fora em energia interna. Isso é o que fazemos ao nos alimentarmos.

Para tal, organismos consomem uma certa quantidade de "energia livre", a energia que podem usar de forma útil. Esse consumo é usado pelo organismo para processar informação e acaba produzindo entropia, o oposto de informação. Entropia é uma medida de desordem: quanto mais entropia num sistema, menor sua energia livre e sua utilidade para um organismo. O desafio para a vida eterna é manter-se ativa num Universo com cada vez menos energia livre. A luta da vida é uma luta contra a entropia que, inevitavelmente, continuará a crescer sempre.

Se a vida for consciente, sua experiência da passagem do tempo dependerá da taxa com que processar informação. Para que a vida exista para sempre num Universo com uma reserva finita de energia livre é necessário que a quantidade de informação processada seja infinita, enquanto que a energia total consumida seja finita. Como fazer isso?

O organismo terá que adaptar a taxa com que processa informação, reduzindo-a de acordo com a queda de temperatura. Ou seja, na medida em que o tempo passa, o organismo terá que processar menos informação, sempre da forma mais eficiente possível. De modo a não sacrificar muito a qualidade de vida, a solução é fazer o que fazem os animais em climas frios: hibernar.

Eles fazem isso justamente porque a quantidade de alimentos, a oferta de energia livre, é menor no inverno. A diferença é que, para os organismos do futuro, os períodos de hibernação terão que ser cada vez mais longos, de modo a consumir quantidades cada vez menores de energia livre. Mas a situação não é de todo má, especialmente porque, como não há informação processada durante a hibernação, não há também memória do período: será como despertar de uma noite sem sonhos.

Existem, claro, detalhes que, devido ao pouco espaço que resta aqui, devo deixar de lado. Por exemplo, o organismo precisará de um despertador, que consumirá energia. Mas a reflexão é importante e divertida. E, nas entrelinhas, uma mensagem: vivemos numa época privilegiada, onde energia é abundante. Mas não é infinita. A menos que optemos pela hibernação e menos memórias, é bom aprendermos a preservá-la.

domingo, 9 de julho de 2006

Talvez haja um multiverso, emergindo como bolhas numa sopa

Durante o século 20, a física desenvolveu duas teorias revolucionárias: a teoria da relatividade de Albert Einstein e a mecânica quântica de Niels Bohr, Erwin Schrödinger, Paul Dirac e muitos outros. O adjetivo "revolucionárias" não é exagero: a teoria da relatividade transformou profundamente nossa compreensão do que é espaço, tempo e a relação entre energia e matéria.

Ao contrário da visão clássica sobre a natureza do cosmos, que prevalecia desde os dias de Isaac Newton, no final do século 17, Einstein mostrou que o espaço, mais precisamente as medidas de distância entre dois pontos, e a passagem do tempo dependem do observador. Um segundo para você pode não ser um segundo para outra pessoa, se vocês estiverem em movimento relativo, acelerado ou não. Ademais, a nova teoria reformulou a noção de gravidade, que pode ser interpretada como a curvatura do espaço em torno de um objeto. Esses efeitos só são relevantes se os movimentos ocorrem próximos da velocidade da luz ou se o objeto tem massa comparável ou maior do que a do Sol. Mas eles estão lá, descrevendo uma física além de nossas percepções.

O mesmo com a mecânica quântica, que descreve a física dos átomos e das partículas subatômicas. Para surpresa dos próprios físicos, tudo é diferente no mundo do muito pequeno: trocas de informação e energia são feitas em porções discretas em vez de serem contínuas, como quando aquecemos água numa chaleira. Partículas podem estar em mais de um lugar do espaço ao mesmo tempo, seguir todas as trajetórias possíveis e atravessar barreiras como se fossem fantasmas. No mundo quântico tudo flutua, nada é exatamente determinado: energia, posição, velocidade. Apenas quando um observador interage com o que está medindo (por exemplo, enviando luz ou outra partícula que colide com o que está sendo medido) é que um valor determinado é obtido. Em outras palavras, a natureza intrínseca da matéria não pode ser definida "a priori". A realidade emerge de forma clara apenas quando é convocada por algum observador.

Esses dois pilares da física moderna coexistiram pacificamente até a década de 1960, parecendo tratar de dois aspectos muito diferentes da realidade física, o muito pequeno e o muito grande. Com a confirmação de que o Universo está em expansão, aliada ao sucesso da teoria da relatividade, tudo mudou. Afinal, se o Universo cresce cada vez mais na medida em que o tempo passa, era menor no passado. E, se voltarmos até bem próximos do "tempo zero", que hoje sabemos ter ocorrido em torno de 14 bilhões de anos atrás, o Universo como um todo teria dimensões semelhantes às de um átomo. Nesse caso, para descrever a física da infância cósmica, seria necessário usar a mecânica quântica: os dois pilares teriam de ser unificados.

Infelizmente, devido a dificuldades técnicas e conceituais, esse casamento ainda não foi consumado. Mas já houve paqueras e flertes entre as duas teorias, intensos o suficiente para termos uma idéia de como ele seria. E o que emerge é um cosmo quântico, onde a geometria do espaço e a passagem do tempo flutuam aleatoriamente. De fato, não se pode nem falar em um "Universo": falamos em um multiverso, uma sopa de universos talvez até infinita, onde todas as possibilidades existem. O nosso seria apenas um deles, uma raridade, uma bolha que cresceu, solitária em meio à tantas que existem por instantes e voltam à sopa primordial. Existiriam então outros universos? Seria possível passar de um a outro? Será que há vida em alguns deles? As respostas à essas perguntas e muitas outras esperam, impacientes, pelo casamento.

domingo, 25 de junho de 2006

Conciliando ciência e religião

A função da ciência não é atacar Deus, mas oferecer uma descrição do mundo mais completa

Para muitos, ciência e religião estão permanentemente em guerra. Desde a famosa crise entre Galileu Galilei e a Inquisição, no século 17, quando o cientista foi forçado a abjurar sua convicção de que o Sol e não a Terra era o centro do cosmo, razão e fé aparentam ser incompatíveis. Aos crentes, a religião oferece não só apoio espiritual em momentos difíceis e uma comunidade fraterna e acolhedora mas também respostas à questões de caráter fundamental e misterioso, como a origem do Universo, da vida ou da mente.
Na sua maioria, as respostas são relatadas em textos sagrados, escritos por homens que recebem a sabedoria por meio de um processo de revelação sobrenatural, de Deus (ou dos deuses) para os profetas. Para as pessoas de fé, é absurdo contestar a veracidade desses textos, visto que são expressão direta da palavra divina.

A atitude descrita acima faz parte da ortodoxia de muitas religiões. Nem todos os crentes adotam uma posição tão radical com relação à veracidade, ou literalismo, dos textos sagrados. Uma posição mais comum é interpretar os textos como representações simbólicas, um corpo de narrativas dedicadas a construir uma realidade espiritual baseada em certos preceitos morais. Galileu criticou os teólogos católicos, dizendo que a função da Bíblia não é explicar os movimentos dos planetas mas como obter a salvação eterna. ("Não é explicar como os céus vão, mas como se vai para o Céu.")

A adoção de uma postura menos ortodoxa permite uma visão de mundo menos radical, onde a religião e a ciência podem viver em harmonia, cada uma cumprindo sua missão social. O conflito entre as duas não é, de forma alguma, necessário. Basta saber distinguir o que uma ou outra pode e não pode fazer. Isso serve também aos cientistas, em especial aos que têm atitudes ortodoxas contra a religião.

Acho extremamente ingênuo imaginar ser possível um mundo sem religião. Ingênuo e desnecessário. A função da ciência não é tirar Deus das pessoas. É oferecer uma descrição do mundo natural cada vez mais completa, baseada em experimentos e observações que podem ser repetidos ou ao menos contrastados por vários grupos. Com isso, a ciência contribui para aliviar o sofrimento humano, seja ele material ou de caráter metafísico.

A distinção essencial entre ciência e religião está no que cada uma delas pressupõe ser a natureza da realidade. Enquanto a religião adota uma realidade sobrenatural coexistente e capaz de interferir com a realidade natural, a ciência aceita apenas uma realidade, a natural. Aqui aparece a razão principal do conflito entre as duas. Para a ciência não é preciso supor que o que ainda não é acessível ao conhecimento necessite de explicação sobrenatural. O que não sabemos hoje pode, em princípio, vir a ser explicado no futuro. Em outras palavras, a ciência abraça a ignorância, o não-saber, como parte necessária de nossa existência, sem lançar mão de causas sobrenaturais para explicar o desconhecido.

Sem dúvida, esse tem sido o seu caminho: explicar de forma clara e racional um número cada vez maior de fenômenos naturais, do funcionamento dos átomos à formação de galáxias e a transmissão do código genético entre os seres vivos. As tecnologias que tanto definem a vida moderna, da revolução digital aos antibióticos, dos meios de transporte ao uso da física nuclear no tratamento do câncer, são fruto desse questionamento. Negar isso é tentar olhar para o mundo de olhos fechados.

A conciliação entre ciência e religião só ocorrerá quando ficar claro o papel social de cada uma. Negar uma ou outra é ignorar que o homem é tanto um ser espiritual quanto racional.