domingo, 28 de maio de 2000

A primeira década do Hubble

No dia 24 de abril de 1990 a astronomia ganhou um dos maiores presentes de sua história: o telescópio orbital Hubble, um projeto da agência espacial norte-americana Nasa, cujo preço ficou em torno de US$ 3 bilhões.

Foram duas décadas de planejamento, de revisões técnicas, de adiamentos de lançamentos, de dramas e expectativas, de sonhos e especulações. Hoje, podemos dizer que, desde que Galileu ergueu seu pequeno telescópio aos céus em 1609, nenhum outro instrumento astronômico revolucionou tão profundamente nossa visão cósmica em tão pouco tempo. Acho que a primeira década do Hubble merece ser festejada por todos nós. O Universo hoje é muito diferente do Universo de dez anos atrás.
Foram dez anos movimentados: com 12 toneladas e o tamanho de um ônibus, o Hubble já circulou a Terra mais de 58,4 mil vezes, viajando mais de 2,5 bilhões de quilômetros, enfocando 14 mil objetos e gerando um total de 273 mil observações. Tudo isso remotamente, seus instrumentos controlados da Terra.

Os primeiros anos não foram fáceis. O espelho principal do telescópio teve sérios problemas de fabricação, que não foram detectados em terra, pois a administração da Nasa resolveu economizar testes de alta precisão. O telescópio entrou em órbita míope, para constrangimento da Nasa e de centenas de astrônomos que contavam com observações livres das distorções da atmosfera.

Passaram-se três anos até que uma solução brilhante foi desenvolvida, baseada em um jogo de lentes corretoras que mais do que compensaram a miopia do telescópio. Em uma missão que emocionou milhões de pessoas, um time de astronautas usou o ônibus espacial para ir ao encontro do telescópio e instalar as novas lentes. Desde então duas outras missões consertaram várias outras peças defeituosas e modernizaram partes já obsoletas do equipamento.
Segundo seus últimos visitantes, a fuselagem do telescópio está repleta de pequenos buracos, resultados do impacto de vários meteoros do tamanho de grãos de areia. Apesar desse tiroteio cósmico, estima-se que o Hubble continuará em funcionamento por mais uma década, cinco anos a mais do que o plano inicial.

Devido à sua precisão, certas imagens obtidas pelo Hubble já se tornaram parte da galeria que representa os símbolos da nossa era. Quem pode se esquecer das dramáticas imagens do cometa Shoemaker-Levy-9 chocando-se com Júpiter em 1994? Ou das vastas colunas de gás participando da dança de criação de estrelas? Ou das inúmeras imagens de planetas, galáxias, nebulosas e até galáxias em colisão? E o mais incrível é que podemos acessar essas imagens de casa, o Universo nas telas de nossos computadores.

Alguns resultados obtidos pelo Hubble estão causando uma verdadeira revolução na cosmologia moderna. Eis aqui três exemplos: astrônomos encontraram, em meio ao turbilhão de estrelas em galáxias distantes, certas estrelas que são usadas como marcos de distância. A partir desses marcos, é possível estimar a idade do Universo desde o evento que inaugurou sua expansão, o Big Bang, em torno de 14 bilhões de anos atrás, com erro de uns 2 bilhões. Parece muito, mas antes do Hubble o erro era de 10 bilhões.

Usando a precisão do telescópio para distinguir a estrutura de galáxias distantes, foi possível demonstrar que as misteriosas "explosões de raios gama", os eventos mais energéticos do cosmo, não são interiores à nossa galáxia, mas marcam períodos de formação de estrelas em galáxias muito ativas. Mesmo que o mecanismo gerador de tanta energia em tão pouco tempo permaneça misterioso, as pistas dadas pelo Hubble têm sido cruciais nesse estudo.

Finalmente, chegamos à observação mais controversa, que indica que o Universo está em um período de expansão acelerada. Se isso for verdade, em torno de 70% da energia do Universo é composta por uma espécie de fluido antigravitacional, cuja natureza no momento é um completo mistério. Como todo grande instrumento científico, o Hubble não se limita a responder perguntas. Aliado à nossa infinita curiosidade, ele nos ajuda a criar novas realidades, estendendo nossos olhos aos confins do Universo.


domingo, 21 de maio de 2000

O que seria do mundo sem as bolhas?

Ahhh! Nada como uma cerveja bem gelada após o trabalho, o colarinho de espuma branca, as bolhas subindo continuamente, numa coreografia dourada entre gases e líquido. Imagine o que seria do mundo sem bolhas! Uma cerveja ou um refrigerante chocos são intragáveis. E isso sem falar no champanhe, com suas bolhas rápidas, descrevendo elegantes trajetórias ascendentes.
Por incrível que pareça, a cerveja foi inventada entre 5.000 e 10 mil anos atrás, mas só em torno de 1600 d.C. descobriu-se que, se a fermentação ocorrer em um recipiente fechado, bolhas de gás são dissolvidas no líquido. As bolhas são principalmente gás carbônico, aparecendo em geral junto à parede do copo; normalmente uma bolha aparece devido a alguma "impureza", como um grão de poeira. Essas impurezas atuam como sementes, ou sítios de nucleação de bolhas, incitando o gás a concentrar-se ao seu redor. Quando a bolha atinge um certo tamanho, ela se desprende da parede do copo e começa a subir, já que seu interior tem menor densidade do que o líquido. Enquanto a bolha sobe ela também cresce, devido à diferença de pressão entre o gás no seu interior e aquele dissolvido no líquido.

Falando em bolhas de cerveja e champanhe, elas têm várias diferenças: a cerveja tem em torno de 30 vezes mais proteínas que o champanhe, e isso afeta a dinâmica das bolhas; em particular, essas moléculas aderem à sua superfície, aumentando sua viscosidade com o líquido ao redor. Por isso que bolhas de cerveja sobem bem mais devagar que as de champanhe. Mais ainda, as bolhas de champanhe crescem mais rapidamente, em parte devido a uma pressão três vezes maior. Ou seja, champanhe é uma mistura entre líquido e gás bem mais dinâmica que a cerveja. Existe uma cerveja escura irlandesa chamada Guinness, que, de acordo com seus fãs, é tão viscosa que algumas bolhas descem em vez de subir! Simulações em supercomputadores usando as equações da mecânica dos fluidos, com os parâmetros caracterizando o "fluido" Guinness, comprovaram o fenômeno, que é resultado de uma circulação do fluido a partir de sua região central, como um repuxo. Essas mesmas simulações são usadas para estudar a estabilidade de outros objetos, como aviões no ar. Isso é que é versatilidade!

Até agora, falamos de bolhas de gases em líquidos. E o oposto? Podemos falar também de "bolhas" de líquidos em gases. Um exemplo disso é a condensação, quando moléculas de um gás se juntam para formar um líquido. Em física, falamos de transformações (ou transições) de fase, quando uma substância vai de uma fase, por exemplo, gasosa, a outra, líquida. Há vários meios para forçar uma substância a mudar sua fase. O mais comum é mudar a temperatura: se resfriarmos vapor d'água, ele se transforma em líquido; se resfriarmos um líquido, ele se transforma em sólido (gelo). Claro, o processo vai nas duas direções. Tal como com as bolhas de cerveja e champanhe, essas transições também podem ser induzidas por impurezas misturadas. Sem impurezas, a condensação toma muito mais tempo, o que demonstra a importância da sujeira na vida cotidiana.

Outro exemplo importante da função da sujeira na transformação das substâncias é a chuva. Devido à menor temperatura a altas altitudes, o vapor que ascende condensa-se em minúsculas gotículas d'água. Essas gotículas, devido às suas pequenas massas e à fricção do ar, caem tão devagar que praticamente ficam em suspensão, formando as nuvens. Essas gotas agregam-se em torno de pequenos núcleos sólidos, grãos de sujeira, até atingir um tamanho grande o suficiente para se precipitar -é a chuva.

Portanto, caro leitor, a próxima vez que você tomar uma cerveja ou champanhe ou, se de menor idade, refrigerante, lembre-se que a física que causa o aparecimento das bolhas na sua bebida é, a grosso modo, relacionada com a que explica a chuva -uma, gotas de gás no líquido; a outra, gotas de líquido no gás.


domingo, 14 de maio de 2000

Miniaturização versus eficiência

Todos nós queremos computadores cada vez mais rápidos, com memórias cada vez maiores, imagens perfeitas em sua definição digital e, claro, preços cada vez mais baixos. Essa demanda tem desafiado a criatividade dos cientistas que enfrentam os inúmeros problemas que vão surgindo no caminho. Até agora, tudo tem andado às mil maravilhas, como todo consumidor de apetite voraz pode constatar. Eis alguns números: a capacidade de armazenamento de dados, ou a memória, dos discos rígidos aumentou numa taxa de 25% a 30% nos anos 80 e nos anos 90 em torno de 60%. Só no final do ano passado, o aumento na capacidade de armazenamento foi de 130%! Hoje, ela dobra a cada nove meses, mais rápido que a taxa de crescimento na capacidade dos microchips, que também é espantosa. Essa segue uma fórmula empírica chamada Lei de Moore, dobrando a velocidade de processamento -relacionada com a frequência do microchip- a cada 18 meses.

Esse progresso ultra-rápido está por trás da grande revolução tecnológica que estamos vivendo agora, a terceira revolução industrial (a primeira, na Alta Idade Média, com o desenvolvimento da indústria têxtil, e a segunda, com a máquina a vapor). Tudo isso graças ao sucesso com que a física quântica e a eletrônica permitiram uma miniaturização contínua no tamanho dos elementos que compõem esses instrumentos, sem comprometer sua eficiência. Muito pelo contrário. O preço por megabyte (milhões de bytes) de memória, que em 1988 era US$ 11,54, caiu para US$ 0,04 em 1998. A estimativa para 2002 é de US$ 0,003.

Essa corrida pelo menor e mais rápido está chegando ao fim. Não porque a demanda está decrescendo; hoje, um número cada vez maior da população mundial tem ou usa diariamente computadores e essa tendência só tende a crescer. O problema é que as tecnologias usadas na construção de discos rígidos e microchips está chegando ao limite entre dois mundos distintos, o mundo clássico e o mundo quântico, o mundo dos átomos, moléculas e partículas subatômicas. O grande desafio encarado pelos cientistas é que o mundo quântico é dominado por flutuações imprevisíveis, algo que vai de encontro à idéia de memória permanente, que deve ser imune a flutuações aleatórias. Vejamos como isso funciona.

A memória em computadores é "esculpida" magneticamente no material que compõe a superfície do disco rígido; cada unidade de informação, ou bit, é composta de centenas de grãos de certos materiais cujos átomos funcionam como mini-ímãs: imagine um disco daqueles pré-CDs, com a superfície semelhante a um tabuleiro de xadrez. A gravação da informação é efetuada por uma "agulha" magnética, que força os pequenos ímãs nos grãos -os quadrados do tabuleiro- a se alinhar em uma (zero) ou outra (um) direção, em um código binário. Uma vez esculpida no disco, a informação pode ser lida, com um dispositivo sensível às variações no campo magnético da superfície. Como aumentar a quantidade de informação em um disco rígido? Fácil. Basta aumentarmos o número de sulcos na superfície do disco e/ ou o tamanho dos grãos magnéticos e/ou a velocidade com que o disco gira. Cada uma dessas soluções está sendo aplicada. Discos giram com velocidades de 3.600 a 10 mil revoluções por minuto. Se girarem mais rápido, a turbulência causada pelo ar sobre a superfície causa erros na gravação e na leitura de informação.

O número de sulcos está hoje em torno de 5.000 por centímetro quadrado. Para aumentarmos esse número é necessário um posicionamento extremamente preciso da agulha magnética para a leitura de cada sulco. Para a gravação, o problema é maior: a informação sendo gravada pode saltar para o sulco vizinho. Já a diminuição do tamanho do grão encontra um problema ainda mais fundamental: em geral, são usados 500 a 1.000 grãos magnéticos para gravar um bit. Se diminuirmos o número de grãos por bit, não só o sinal magnético enfraquece, dificultando sua leitura, mas flutuações na temperatura podem inverter o sinal magnético aleatoriamente.

Várias novas tecnologias estão sendo propostas para resolver esses desafios; leitoras a laser para guiar as agulhas, materiais mais resistentes às flutuações térmicas. Muito provavelmente, o computador do futuro será muito diferente, um híbrido entre o clássico e o quântico.

domingo, 7 de maio de 2000

Medindo a geometria do Universo

Se a Terra é redonda, parece que o Universo é plano. Essa afirmação tem sido feita com cada vez mais firmeza por cosmólogos que se preocupam com a geometria do cosmos, uma questão tão antiga quanto os vários relatos de criação do mundo. Em uma versão científica dessa questão, desavenças iniciais devem ser substituídas por um consenso geral, uma vez que os resultados de observações e análise de dados sejam propriamente interpretados e discutidos. Nos últimos oito anos, uma verdadeira bateria de projetos dedicados ao estudo dessa questão vem sistematicamente coletando dados, avidamente discutidos pela comunidade científica. Semana passada, dados de um experimento chamado Boomerang revelaram, de forma realmente convincente, que os resultados convergem mesmo para um Universo plano. Eis aqui como que um balão flutuando durante dez dias 38 km sobre a Antártica pode nos revelar algo sobre a geometria do Universo.

Segundo o modelo do Big Bang, o Universo primordial era extremamente quente e denso, com as partículas de matéria interagindo furiosamente com as partículas de radiação, os chamados fótons. A energia desses fótons está diretamente relacionada com sua temperatura, que é também a temperatura do Universo. À medida que o Universo se expande, e ele está em expansão desde seus momentos iniciais, sua temperatura cai e os fótons ficam cada vez menos energéticos. Passados em torno de 300 mil anos desde o "bang", os fótons não conseguem mais evitar que elétrons e prótons se juntem para formar átomos de hidrogênio. Durante essa época, o Universo muda de composição, sendo então formado por átomos de hidrogênio e fótons, que passam a se propagar livremente pelo espaço. Com a expansão do Universo, que agora tem em torno de 15 bilhões de anos, esses fótons se resfriaram ainda mais, estando hoje a temperaturas em torno de 3 graus acima do zero absoluto, isto é, -270C. Essa é a famosa radiação de fundo cósmico, prevista pelo modelo do Big Bang e observada pela primeira vez em 1965.

Vamos voltar ao momento em que os fótons passam a ser livres do resto da matéria (os recém-formados átomos de hidrogênio). Nessa época, existiam concentrações de matéria espalhadas pelo cosmo, regiões mais densas que, em alguns milhões de anos, com a força atrativa da gravidade, iriam formar as galáxias e grupos de galáxias que observamos hoje com nossos telescópios. Podemos imaginar uma espécie de sopa de legumes, os fótons formando o líquido e, essas regiões mais densas, os vários pedaços de cenoura, batata etc. Com a atração crescente da gravidade, alguns fótons "caem" dentro dessas regiões, iniciando uma espécie de cabo-de-guerra em que de um lado eles tentam escapar e de outro a gravidade os puxa para dentro da região. Esse vai-e-vem gravitacional produz uma oscilação na energia dos fótons. E, como a energia dos fótons está ligada a sua temperatura, esse processo cria pequenas flutuações de temperatura nos fótons que compõem a radiação de fundo cósmico. Ou seja, ao medir a temperatura dessa radiação, devemos detectar pequenas flutuações, que são os fósseis desse cabo-de-guerra que ocorreu na infância do Universo. O grande desafio é que essas flutuações são da ordem de um milionésimo de grau. Encontrá-las é equivalente a encontrar elevações de 1 metro na superfície da Terra, que tem um raio de 6,4 milhões de metros!

Essas medidas são feitas tanto em satélites quanto em balões. Antenas apontam para ângulos diversos no céu, e a temperatura dos fótons é medida por aparelhos de incrível precisão. As flutuações têm vários tamanhos e temperaturas. Flutuações com ângulo acima de 2 graus são produzidas durante o processo de separação entre fótons e matéria. Flutuações menores revelam algo sobre a distribuição das regiões com excesso de matéria antes desse processo. Essas é que foram medidas por Boomerang. A teoria prevê que a localização das flutuações de maior intensidade nos revela a geometria do Universo; os resultados são consistentes com um Universo de geometria plana, uma versão tridimensional da superfície de uma mesa. Agora, precisamos descobrir que tipos de matéria e energia estão servidos em nossa "mesa cósmica".