domingo, 29 de janeiro de 2006

Um cosmo às escuras



Que o Universo está em expansão já não é mais uma novidade: desde 1929, com o trabalho do astrônomo americano Edwin Hubble, sabe-se que as galáxias, na sua maioria, afastam-se umas das outras a velocidades que aumentam com sua separação. Ou seja, quanto mais longe de um dado ponto (por exemplo, da Terra), mais rápido a galáxia se afasta. Uma imagem usada é a de um bolo de passas (com muito fermento!). Quando o bolo é assado, as passas se afastam umas das outras. Nesta analogia, as passas são as galáxias. Após milênios adormecido em um estado estático, o Universo tornou-se plástico, dinâmico, em constante transformação.


Uma espécie de repulsão cósmica parece estar forçando a expansão acelerada. Mas que repulsão cósmica é essa?


Tudo andava bem até 1998, quando um novo efeito foi descoberto: não só o Universo está em expansão como essa expansão é bem mais rápida do que imaginávamos. A expansão original pode ser compreendida como conseqüência do estado inicial do cosmo.
Segundo o modelo do Big Bang, que descreve quantitativamente (e isso é muito importante) a história cósmica, o Universo surgiu de um estado inicial no qual a matéria e a radiação estavam sujeitas a altíssimas pressões e temperaturas. Como todo mundo que já usou uma panela pressão (ou que já viu uma explodir) sabe, matéria muito quente e densa gosta de se expandir. Portanto, a mola por trás da expansão do Universo é a descontração da matéria e radiação a partir desse estado inicial ultradenso. Por outro lado, matéria e energia atraem-se gravitacionalmente. Essa atração tende a frear a expansão cósmica, criando um cabo-de-guerra entre expansão e contração.
A descoberta de 1998 tornou as coisas mais complicadas. Se o Universo está em expansão acelerada, algo tem de estar empurrando a matéria para longe, o oposto do efeito atrativo da força da gravidade. Uma espécie de repulsão cósmica parece estar forçando a expansão acelerada. Mas que repulsão cósmica é essa? Qual mecanismo físico pode causar esse efeito? Na falta de uma explicação, podemos ao menos dar nome ao bicho: a expansão acelerada do Universo é causada pela "energia escura". Escura porque não é visível, energia por que supre a expansão.
Até o momento, dois candidatos para a energia escura vêm recebendo muito atenção dos cosmólogos. Um deles é a famosa "constante cosmológica", nome dado a um termo que pode ser adicionado às equações que descrevem a expansão do Universo e que é responsável justamente pela expansão acelerada. A origem dessa constante é bem sutil: pode ser causada por minúsculas flutuações de energia que ocorrem no vácuo. Uma das lições da física dos átomos e das partículas subatômicas é que não existe espaço vazio: flutuações estão sempre presentes. O interessante é que, em média, elas dão uma contribuição constante à energia total do Universo. Essa contribuição pode causar a aceleração observada. O difícil aqui é entender por que tem o valor observado e não outro qualquer.
O outro candidato é um novo tipo de matéria exótica chamada quintessência, feito o éter de Aristóteles, capaz de produzir a energia que nutre a expansão. A diferença é que a quintessência muda no tempo, pode ser atraída gravitacionalmente por outra matéria, enquanto a energia do vácuo é sempre constante. Em princípio, se astrônomos puderem observar regiões do Universo em tempos diferentes, poderão determinar se a energia escura muda no tempo. Propostas recentes têm sido criticadas. No meio tempo, permanece o mistério, a mola por trás da expansão do conhecimento.

domingo, 22 de janeiro de 2006

Dos céus à Terra


Quando era costumeiro olhar para os céus, algo que nossas vidas essencialmente urbanas tornam cada vez mais difícil, era possível ler mensagens, reais ou imaginadas, que ligavam, de alguma forma, nossas existências efêmeras ao resto do cosmo. Quem nunca fez um pedido após ver uma estrela cadente, ou fantasiou o que poderia haver além de um arco-íris?


Hoje não olhamos para os céus com a mesma reverência. E isso é uma pena


A Estrela de Belém, anunciante da vinda de Jesus Cristo, é, talvez, um dos símbolos mais conhecidos dessa relação mágica que tínhamos com os céus. Ela surgiu para indicar o local da manjedoura para os reis magos, astrólogos talvez, que sabiam, portanto, interpretar as mensagens celestes. O pintor italiano Giotto, no início do século 14, representou a estrela como um cometa: a passagem do cometa Halley alguns anos antes havia causado um verdadeiro furor na Europa, já que ocorreu perto da virada do século, uma coincidência que, para muitos, significava um prenúncio do fim dos tempos. Se os céus eram a morada de Deus e sua corte de anjos, o que aparecia nas alturas vinha carregado de significado religioso. De certa forma, os céus eram uma espécie de pergaminho onde Deus escrevia suas mensagens. Fosse a chegada do Messias ou o fim da Terra, ou ambos, como deixavam claro os textos bíblicos, seriam anunciados nos céus.
Ninguém sabe ao certo se a Estrela de Belém foi ou não um fenômeno astrofísico. Inúmeros textos foram escritos especulando que talvez fosse mesmo um cometa, ou uma explosão estelar, algo que pode ocorrer quando uma estrela chega ao fim de seus dias.
Talvez não tenha existido, tenha sido criada para dar um significado cósmico-religioso ao nascimento de Cristo. Afinal, os Evangelhos foram escritos décadas após a sua morte. O que é claro é que hoje não olhamos para os céus com a mesma reverência. E isso é uma pena.
Ao nos distanciarmos dos céus, nos distanciamos de nossas origens e, por conseqüência, de nós mesmos. Esquecemos que viemos todos das estrelas, literalmente. Esquecemos que todos os elementos químicos que compõem nossos corpos, nosso planeta e tudo à nossa volta originaram-se em estrelas que desapareceram há bilhões de anos, espalhando seus restos mortais -a matéria que existe no Sistema Solar, do carbono ao urânio- como se semeassem um jardim.
Esquecemos que a vida só é possível porque o Sol supre a energia que a alimenta. Sabemos hoje que nossa matéria veio de estrelas vizinhas já extintas e que a energia que a anima vem de outra, o Sol. Existimos por causa disso, por causa dessa ligação entre a matéria e os céus.
Algumas pessoas acham que entender os céus, explicá-los através da ciência, é tirar sua mágica. Esse tipo de critica não é novidade: os poetas românticos do século 19, por exemplo, achavam que ao explicar um arco-íris como sendo resultado da difração da luz solar por gotas geladas d'água em suspensão na atmosfera, sua beleza ia embora, difratada pela razão. Mas será? Imagine essas gotas geladas, pequenos prismas cristalinos flutuando pelo céu, incontáveis diamantes recebendo a luz do Sol, separando-a em suas freqüências visíveis, trabalhando juntos para criar um fenômeno de incrível beleza. Será que o arco-íris ficou mais feio? Eu diria que ficou mais bonito. Ao entendê-lo, nos aproximamos dele. Sua beleza nos inspira a entender ainda mais. E, quanto mais entendemos, mais bonitas as coisas ficam. Essa é a poesia da ciência.

domingo, 15 de janeiro de 2006

Spinoza, Einstein e liberdade



"Minhas idéias estão próximas das de Spinoza: admiração pela beleza e crença na simplicidade lógica da ordem e da harmonia que percebemos, humilde e imperfeitamente. Devemos aceitar que nosso conhecimento é imperfeito e tratar questões morais e valores como problemas humanos."

Assim escreveu Albert Einstein, referindo-se a Bento (ou, em seu nome judaico, Baruch) Spinoza, o grande filósofo de origem portuguesa que viveu em meados do século 17 na Holanda. Os dois tinham um espírito rebelde e iconoclasta, pondo-se contra a ordem vigente: Einstein repensando como compreendemos e representamos o espaço, o tempo e a matéria, e Spinoza abolindo Deus como guia necessário para a moral humana.


Os dois tinham um espírito rebelde e iconoclasta, contra a ordem vigente


As idéias de Spinoza custaram-lhe caro. O século 17 começou com Giordano Bruno queimado na fogueira em 1600 e viu Galileu ser forçado a abandonar sua opinião de que o Sol e não a Terra era o centro do cosmo, como dizia a Igreja Católica. Mesmo dentro da comunidade judaica em que vivia Spinoza, filho de ricos comerciantes portugueses, idéias contrárias eram punidas com a excomunhão e até punições físicas: a comunidade forçava o rebelde a abjurar suas idéias e o "libertava" das impurezas da mente com 39 chicotadas. Melhor do que as torturas da Inquisição, mas nada agradável.

Spinoza, que revelou-se um aluno brilhante de religião ainda jovem, mostrou-se também um pensador livre e nada tímido. Quando começou a questionar a natureza de Deus, dizendo que não podia ter forma humana ou existir fora da natureza, sua situação dentro da comunidade piorou rapidamente. No dia 27 de julho de 1656, foi banido da sinagoga. Conforme escreveu Einstein, "acredito no Deus de Spinoza, um Deus que se manifesta na harmonia de tudo o que existe, e não num Deus que se preocupa com o destino e as ações dos homens". Para Spinoza, as próprias leis da natureza podiam ser identificadas com a mente de Deus. Deus não existe em separado, em estado transcendente. Num certo sentido, Deus é a natureza em todas as suas manifestações.

Mas a influência de Spinoza vai além das ciências naturais, inspirando também as ciências da mente. O neurocientista António Damásio publicou uma trilogia onde discute idéias sobre o inconsciente baseadas em parte em Spinoza. Conforme escreveu Stuart Hampshire, um filósofo inglês, Spinoza ampliou o pensamento de Descartes e Galileu, que diziam que a linguagem da natureza era a matemática. Para Spinoza, era necessária uma outra linguagem, a linguagem que descreve as atividades dos indivíduos. Com isso, trouxe a responsabilidade ética de volta ao homem: "Cada coisa tenta, com os poderes que tem, preservar sua existência", escreveu.

Não é à toa que Spinoza influenciou tanto Freud quanto Lacan, mesmo que Freud tenha mantido essa influência em segredo. Em uma carta de 1932, Freud escreveu: "Tive, por toda a vida, uma estima extraordinária pela pessoa e pelo pensamento daquele grande filósofo. Mas não acredito que tenha o direito de dizer algo sobre ele, pois o que poderia dizer já foi dito por outros". Já Lacan, em sua aula inaugural em 1964 na Escola Normal Superior chamada sarcasticamente de "A Excomunhão", contou como a Associação Internacional de Psicanálise o expulsou e proibiu de treinar psicanalistas. Como nos ensinou Spinoza, o indivíduo exerce sua liberdade através do uso da razão e da imaginação. Mesmo que, como no seu caso, o preço dessa liberdade às vezes seja a incompreensão dos que o cercam.

domingo, 8 de janeiro de 2006

Jardins cósmicos


O grande astrônomo inglês William Herschel costumava comparar os céus a um jardim luxuriante, repleto de criações extravagantes. Quando morreu, em 1822, Herschel havia -com a ajuda incansável de sua fiel irmã Caroline- descoberto um novo planeta, Urano, medido e catalogado a posição de mais de 2.500 objetos celestes, que chamou de nebulosas planetárias e aglomerados de estrelas, nomes que estão conosco até hoje, e iniciado o estudo da astronomia estelar, responsável pela categorização de estrelas em grupos com propriedades diversas.
As descobertas de Herschel só foram possíveis com a disponibilidade de telescópios mais potentes, já que Urano não é visível a olho nu. E de muita paciência, para medir e remedir os céus com a maior precisão possível.


O cosmo é mesmo um jardim encantado, repleto de criações extravagantes que nem mesmo Herschel poderia ter imaginado


É difícil imaginar como Herschel e seus contemporâneos, cientistas ou não, lidaram com o fato de que existia um outro planeta no Sistema Solar, um outro mundo que ninguém antes havia visto, circulando o Sol numa órbita duas vezes mais distante do que a de Saturno. Devem ter se perguntado se não existiriam outros mundos, ocultos na sombra da noite. Imagino que, para muitos, a excitação da descoberta tenha sido acompanhada por uma sensação de abandono, de medo, talvez não muito diferente do que uma criança sente num quarto escuro. Será que Giordano Bruno, o monge que acabou seus dias queimado na fogueira em 1600, estava certo quando especulou que "existe um número infinito de sóis e de outras terras revolvendo em torno desse sóis espalhados na vastidão do cosmo"? Será que a astronomia poderia encontrar a fronteira da Criação, decidir se o cosmo é finito ou infinito? Será que o homem poderá um dia entender qual o seu lugar nessa vastidão indiferente? Medir os céus, conhecer seus habitantes, era mais do que uma curiosidade, era uma orientação necessária, um mapeamento que tinha como objetivo encontrar nosso lugar num cosmo cada vez mais complexo e desumano.
A imagem de Herschel, do cosmo como um jardim, não poderia ser mais adequada. Passados mais de 180 anos desde a sua morte, astrônomos descobriram não só outros planetas (bem, ao menos um, Netuno, já que Plutão pode vir a perder seu status de planeta em breve) como um cinturão de asteróides entre Marte e Júpiter e outros "cinturões" bem mais distantes, repletos de "bolas" de gelo e gases congelados com diâmetros variando de metros a quilômetros. Ainda mais espetacular, outros sóis e seus planetas foram encontrados, em torno de 160 planetas extra-solares até o momento. Os resultados indicam que o nosso Sistema Solar não é o único. Pelo contrário, parece que a maioria absoluta das estrelas tem planetas girando à sua volta, se bem que poucos com as propriedades da Terra, ou seja, na distância "certa" de suas estrelas para que a água ocorra no estado líquido. Mesmo assim, se apenas 0,1% das estrelas na nossa galáxia tiverem planetas semelhantes à Terra, são ainda em torno de 100 milhões de Terras.
Vivemos num cosmo de dimensões que são difíceis de digerir. Nossa galáxia, com centenas de bilhões de estrelas, é apenas uma entre centenas de bilhões de outras. A maioria dessas estrelas tem seus planetas, cada um com sua composição química, atmosfera (ou não), tamanho e densidade. Bruno tinha razão, são mesmo incontáveis os sóis e suas Terras. E Herschel também, o cosmo é mesmo um jardim. Um jardim encantado, repleto de criações extravagantes que nem mesmo Herschel poderia ter imaginado.