domingo, 27 de março de 2005

Da vida e das estrelas

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Santo Agostinho costumava de dizer que o tempo é uma coisa mais fácil de perceber do que de definir. A vida também entra nessa categoria. Como definir vida? Sabemos que uma formiga é um ser vivo e uma estrela não. Mas por que uma estrela não é um ser vivo?


Talvez vida seja definida apenas pelos processos que a caracterizam


Vejamos. Seres vivos interagem com o ambiente à sua volta, absorvendo e emitindo energia. Estrelas também: sua atração gravitacional absorve matéria à sua volta e, por meio da fusão nuclear, estrelas geram quantidades enormes de energia. Portanto, essa propriedade não é suficiente. Uma outra: seres vivos são capazes de se multiplicar. Estrelas também são. Ao chegar aos seus momentos finais, entram em "convulsão", emitindo parte de sua matéria para o espaço interestelar. Essa matéria varre o cosmo em ondas de choque, até possivelmente colidir com uma nuvem de hidrogênio viajando tranqüilamente pela galáxia. A colisão gera instabilidades gravitacionais na nuvem, causando sua contração. Da contração e do aumento de densidade podem nascer várias estrelas, a prole da estrela-mãe. Essa propriedade também não serve. Mais uma: seres vivos morrem. Estrelas também.

Será que não é possível explicar por que uma estrela não é um ser vivo? Outra tentativa: seres vivos são estruturas capazes de manter sua coerência espaço-temporal -ou seja, ter a mesma (quase) cara todos os dias- interagindo entre si e com o ambiente. Estrelas também mantêm sua coerência espaço-temporal, não mudando muito de um dia para outro. (Aproximadamente, é claro. Na verdade, a superfície de uma estrela é uma fornalha em constante agitação. Mas sua massa e temperatura permanecem quase constantes.) E estrelas interagem entre si, como podemos ver em galáxias e aglomerados de estrelas, através de sua atração gravitacional mútua. Temos de tentar mais seriamente.

A distinção, pelo menos entre estrelas e seres vivos, vem da segunda lei da termodinâmica, a lei que diz que em um sistema isolado a desordem (ou entropia) tende sempre a aumentar ou ficar constante. Um sistema isolado é aquele que não troca energia com outro sistema. Uma estrela pode trocar energia com outro sistema, por exemplo, outra estrela, mas essa troca não é necessária ou suficiente para explicar a existência da estrela: uma vez formada, uma estrela pode existir por si só, ao menos enquanto a fusão de hidrogênio em hélio em seu interior produzir energia suficiente para contrabalançar a sua implosão gravitacional. Ou seja, uma estrela pode ser tratada como um sistema isolado e sua entropia tende a aumentar.

Já seres vivos necessitam da interação com outros sistemas; só assim sua existência é possível. Mesmo o exemplo mais primitivo de vida, o vírus, só se comporta como ser vivo se em contato com um. Seres vivos são consumidores de entropia: para manter a sua ordem, a sua coerência espaço-temporal, precisam absorver energia do meio externo e excretar o que não é necessário. De certa forma, seres vivos são entidades "antientrópicas". Mas a soma da entropia total, a dos seres vivos e do meio externo, cresce. As reações metabólicas que caracterizam a bioquímica da vida mantêm o funcionamento do organismo pelo consumo de energia externa e de um eficiente processo de auto-organização. Continuamos sem ter uma definição única da vida. Talvez ela não exista. Talvez vida seja definida apenas pelos processos que a caracterizam.

domingo, 20 de março de 2005

Reflexões sobre o tempo

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Para alguns, os mais pragmáticos, o tempo não tem nada de misterioso: ele passa, envelhecemos e um dia morremos, ponto final. Já para outros, este colunista incluído, o tempo é um paradoxo, nosso grande amigo e inimigo.

Amigo por nos ensinar a ser pacientes com a impaciência dos outros, por nos fazer esquecer coisas que devem ser esquecidas e lembrar aquelas que devem ser lembradas. Inimigo por interromper vidas e relações, mudar coisas que não queremos que sejam mudadas, por nos fazer esquecer coisas que devem ser lembradas. Em termos psicológicos não temos dúvidas: como ninguém consegue se lembrar do futuro, o tempo anda sempre avante.


O paradoxo, aqui, é que toda criação depende apenas do passado


Mas a situação não é assim tão simples. Em arte, podemos inventar o futuro no presente, "visualizar" o que vai ser e tentar dar vida a essa visão. O paradoxo, aqui, é que toda criação depende apenas do passado: criamos o futuro reexperimentando e reintegrando o passado. Isso não significa que tudo já existe; significa apenas que existem infinitos modos de olhar para trás.
Em física, a direção do tempo não é obviamente para a frente. Na verdade, as leis da mecânica não distinguem entre ir avante ou para trás. Imagine, por exemplo, que alguém tenha filmado uma bola voando da direita para a esquerda. Se o filme for passado de trás para a frente, a bola voa da esquerda para direita: quem não esteve presente durante a gravação, não saberia em qual das duas situações o tempo vai do passado para o futuro. Dizemos que as leis da mecânica são reversíveis temporalmente.

Se a física dissesse que o tempo é reversível sempre, estaria em séria contradição com a realidade que vemos à nossa volta. (E em nós mesmos.) Basta observarmos o mundo para saber que o tempo vai para a frente: os dias passam, coisas mudam, pessoas e animais envelhecem, planetas giram em torno do Sol, o Sol envelhece, estrelas nascem e morrem, o próprio Universo cresce cada vez mais, definindo a direção cosmológica do tempo. Como então reconciliar estas observações com as leis básicas da física? A resposta se encontra na complexidade do sistema: uma bola é um sistema extremamente simples, sua trajetória para a direita ou para a esquerda é essencialmente a mesma. Mas um ovo virar omelete, por exemplo, é um processo irreversível: não vemos um omelete virar ovo. A diferença é que um ovo pode ser transformado em omelete através de inúmeros caminhos. Mas existem poucos modos de se transformar omeletes em ovos. (Assumindo que todos os ovos são essencialmente iguais...)

Como mostrou Ludwig Boltzmann, a questão depende de probabilidades: a probabilidade que todas as moléculas de um omelete se re-alinhem em um ovo é extremamente pequena, tão pequena que o fenômeno é altamente improvável, quase impossível. Quase mas não totalmente. Para tal, seriam necessárias incontáveis interações entre as moléculas de clara e gema seguindo instruções extremamente específicas: seria necessário um princípio organizador que pudesse contrariar o fato que desordem tende a aumentar, um princípio capaz de transformar desordem em ordem. Um destes princípios é justamente a arte; outro é a ciência. Ambas dão expressão à necessidade que temos de integrar nossa experiência do mundo com quem somos.

domingo, 13 de março de 2005

Galáxias-fantasmas

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

A composição do Universo é um caixa de surpresas. Durante os últimos dez anos ficou claro que a matéria da qual somos compostos, aquela formada por átomos, é minoria absoluta, compondo não mais do que 5% da matéria total que existe. É essa a matéria que vemos no céu noturno, as estrelas e nebulosas que povoam o cosmo.


Um grupo de astrônomos detectou uma nuvem de hidrogênio sem estrelas. A explicação mais plausível é que a nuvem exista em meio a um aglomerado de matéria escura


Mesmo no céu, nem tudo que é feito de átomos brilha. Por exemplo, planetas não geram luz, apenas refletem de estrelas vizinhas, no nosso caso o Sol. Pessoas também não geram luz visível, embora gerem outro tipo de radiação menos energética, a infravermelha. Fora planetas, nuvens de hidrogênio, se suficientemente frias, não são visíveis. Em geral, essas nuvens estão associadas a galáxias, como fumaça a cigarros: no escuro, vemos a ponta queimando (as estrelas) e a fumaça na vizinhança da brasa, mas sua maior parte permanece invisível. Galáxias, portanto, aparecem com suas estrelas e nuvens de hidrogênio. Mas essa é só parte da história.
Sabemos também que a maior parte da matéria em uma galáxia não produz luz própria e não é formada por matéria comum, ou seja, prótons e elétrons. Essa matéria estranha, de uma substância ainda não identificada, compõe mais de 90% da matéria total de uma galáxia. Como ela não brilha, foi batizada de matéria escura.

Sabemos que ela existe porque vemos seu efeito gravitacional sobre as estrelas e nuvens de hidrogênio. Para a gravidade agir, basta haver massa. Segundo o que se sabia até recentemente, as matérias luminosa e escura andam de mãos dadas -onde existe uma, existe também a outra. Claro, isso pode ser conseqüência do fato que, para detectarmos a matéria escura, precisamos ver seu efeito sobre a luminosa; é possível que existam galáxias escuras, desprovidas ou quase de matéria comum. Tais aglomerados de matéria escura são como galáxias-fantasmas, existindo sem serem vistas. Só seus efeitos gravitacionais são detectados.

Até recentemente, esses objetos eram especulação. Mas um grupo de astrônomos na Califórnia aparentemente detectou uma nuvem de hidrogênio com massa comparável à de uma galáxia (100 bilhões de sóis) e sem estrelas. "Como uma cidade sem pessoas", declarou um dos integrantes do time. A explicação mais plausível é que a nuvem exista em meio a um aglomerado de matéria escura, como creme em uma xícara de café. Mas como confirmar que a nuvem de hidrogênio está mesmo imersa em um oceano de matéria escura? Primeiro é bom confirmar que, de fato, não existem estrelas na nuvem. Para isso, o time usará o telescópio Hubble (antes que ele termine seus dias), que pode identificar estrelas individuais. Supondo que nenhuma seja encontrada, fica confirmado que a galáxia é mesmo formada de hidrogênio que não brilha. E a matéria escura? Como podemos detectá-la sem termos nada para ver?

Podemos usar o fato de que a gravidade pode encurvar a luz. Se um objeto passar por trás da nuvem invisível, sua imagem será distorcida, como uma lente distorce uma imagem visível. No caso, "lentes gravitacionais", efeito previsto por Einstein (amanhã é seu aniversário), podem detectar a existência de galáxias-fantasmas. Porque da gravidade nada escapa.

domingo, 6 de março de 2005

Veleiros solares estão para zarpar

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

O mês de abril marca um novo capítulo na história da exploração do espaço: será lançado o primeiro veleiro solar, uma espaçonave dotada de uma enorme vela, desenhada para refletir a radiação proveniente do Sol. Ao contrário dos foguetes normais, cuja propulsão vem da queima de combustíveis químicos, o veleiro solar usa a luz do Sol ou de um laser como combustível. O mecanismo é semelhante ao de veleiros normais aqui na Terra: o vento, formado por moléculas de ar em movimento direcionado, causa uma força na vela, que por sua vez provoca o movimento do barco. Manejando a orientação da vela em relação à direção do vento, é possível manter velocidades relativamente altas navegando nas mais diversas direções.


Os exploradores dos séculos 16 e 17 ganharam o mar em caravelas. Quem sabe a conquista do espaço não será também a vela?


No caso da luz, materiais podem tanto absorvê-la como refleti-la. Um veleiro solar é basicamente uma caravela espacial com velas capazes de refletir a luz solar. O material mais comum é o "mylar", mas outros estão sendo desenvolvidos, como o polímero CP-1, com espessura de 2,5 milionésimos de metro: quanto mais fino e resistente, mais eficiente é o veleiro solar. Como não somos empurrados pela luz do Sol, sabemos que a pressão exercida pela luz é muito pequena. As velas solares têm dimensões imensas.

O veleiro que irá ser lançado em abril, Cosmos-1, tem uma vela de 600 metros quadrados. Outros projetos pretendem usar velas ainda maiores, de um quilômetro quadrado. As velas propostas são oito triângulos arranjados lado a lado em um círculo, como as pás de um moinho de vento ou um guarda-chuva, com a parte de dentro apontando na direção do Sol. Quem já tentou manter um guarda-chuva aberto contra o vento sabe que a força é máxima nesse alinhamento.

O projeto foi desenvolvido pela Sociedade Planetária, uma organização sem fins lucrativos fundada por Carl Sagan, Lou Friedman e Bruce Murray em 1980. Friedman encabeça o projeto do veleiro solar, que está sendo construído em Moscou. Essa união entre cientistas dos EUA e da Rússia mostra que colaborações entre os dois países na exploração do espaço não ocorrem apenas por meio de órgãos governamentais, mas, também, da iniciativa privada. Como o primeiro a escrever sobre veleiros solares de forma concreta foi o russo Konstantin Tsiolkovsky, em 1921, a colaboração ganha ainda mais significado.

Um míssil russo modificado será lançado de um submarino nuclear no mar de Barents até a altitude de 800 quilômetros, de onde liberará a sua carga, o Cosmos-1. Se tudo correr bem, os oito triângulos irão desabrochar sem problemas, formando a vela. A aceleração causada pela pressão da luz atua devagar: em um dia, a velocidade aumenta até 160 km/h. Em cem dias, a velocidade será de 16 mil km/h. Mas em três anos será de 160 mil km/h, capaz de chegar a Plutão em menos de cinco anos, muito mais rápido do que qualquer foguete convencional. Portanto, o importante é ter calma: no fim, velocidades altíssimas são atingidas.

Se a vela abrir, um raio de microondas de 450 quilowatts será apontado em sua direção, tentando acelerar a espaçonave a partir da Terra. No futuro, "postos de aceleração" poderão ser espalhados pelo Sistema Solar, cada um dotado com seu canhão de laser. Os exploradores dos séculos 16 e 17 conquistaram os mares em suas caravelas. Quem sabe a conquista do espaço não será também feita a vela?