domingo, 21 de dezembro de 2003

Discurso prático sobre energias e suas transformações

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Energia é uma dessas palavras que são usadas com mais facilidade do que entendidas. Comecemos com o Aurélio: 1. Força, vigor. 2. Firmeza de caráter [essa eu não conhecia] 3. Fís. Propriedade dum sistema que lhe permite realizar trabalho. Claro, estou mais interessado nessa última. Para entendê-la, é bom definir "trabalho", já que o sentido aqui não é o mais comum.

Eis um exemplo: seu carro morreu e precisa ser empurrado. Você tem de aplicar uma força sobre ele. Essa força, ao mover o carro a partir do repouso, estará realizando trabalho. Para tal, você gastará energia. E de onde vem essa energia? Dos seus músculos. E a energia dos seus músculos? Vem da metabolização dos alimentos. Eles, por sua vez, precisam ser plantados por alguém e, para crescer, precisam da energia do Sol. E a energia do Sol? Vem de processos de fusão nuclear em seu interior.

Portanto, em última instância, quem moveu o seu carro foram os prótons fundindo-se no interior do Sol. Sei que isso não é lá um grande consolo quando você está suando em bicas no meio da rua, mas ao menos você não se sentirá assim tão sozinho. Você e os prótons solares empurram juntos o seu carro.

O exemplo acima mostra que, ao empurrar o carro, ou seja, ao realizar trabalho sobre ele, você transferiu energia do seu corpo para o carro. Com isso, você mudou a sua velocidade, no caso a partir do repouso. A energia de movimento do carro se chama energia cinética. Podemos então dizer que trabalho é equivalente à mudança na energia cinética do carro de zero (carro em repouso) ao seu valor final (carro em movimento).

Tudo que se move pode realizar trabalho. Um exemplo disso é uma colisão. Você e os prótons solares estão empurrando o seu carro na rua quando vem um infeliz na contramão e bate de frente em você. Felizmente, ele estava indo devagar. Mas o estrago fica estampado nos pára-choques. Ou seja, a energia cinética dos carros foi usada na deformação de suas latarias. Esse não é mesmo o seu dia.

Aos berros, você larga o carro na rua e vai procurar um telefone público. Passando abaixo da marquise de um prédio, um moleque no quarto andar resolve testar a lei da gravidade soltando um balão de borracha cheio d'água. Ele acerta bem na mira, a sua cabeça. Num primeiro momento vem a raiva, mas a água fresca até que lhe faz bem, com o calor e o seu corpo suado. E se não fosse água? "Mais um desgraçado", você grita, olhando para cima, mas o moleque se esconde atrás da janela, às gargalhadas.

Você reflete sobre o que ocorreu. Quando o moleque está segurando o balão fora da janela, ele não está em movimento. Mas, assim que o balão cai, a sua velocidade aumenta devido à força da gravidade. No caso, é a gravidade que está realizando trabalho sobre o balão. Quanto mais alto o balão, maior será a sua energia de impacto. Se o moleque vivesse no oitavo andar, o balão explodiria bem mais violentamente em sua cabeça.

Existe aí uma transformação entre dois tipos de energia. Quando o balão está para cair, tem apenas energia potencial, a capacidade de realizar trabalho, caso entre em movimento. Ao cair, a energia potencial vai se transformando em energia cinética até que, ao chegar ao chão, toda ela virou cinética. Existem vários tipos de energia, que podem se transformar uns nos outros. Uma mola, quando comprimida, também armazena energia potencial. Ao ser solta, ela entrará em movimento, adquirindo energia cinética.

Você finalmente acha um orelhão que, claro, está quebrado. Olhando para o céu, você amaldiçoa os deuses, comparando sua sorte à de Jó. De repente, você escuta uma bela voz que diz: "O senhor quer usar meu celular?" É uma belíssima moça, sorriso estampado no rosto.

Incrédulo e molhado, você aceita. Ao discar o número da sua companhia de seguros, você imagina as cargas elétricas na bateria do celular, as negativas atraídas às positivas. Essa atração faz com que elas se movam, gerando a corrente que alimenta o telefone: energia química transformando-se em cinética.

Você dá uma olhada para a moça e timidamente pergunta: "Quer tomar um café comigo ali no bar da esquina?". Para sua surpresa, ela aceita. Uma outra transformação energética começa a ocorrer em seu corpo, fazendo seu coração bater mais rápido.

domingo, 14 de dezembro de 2003

A música das esferas

A música, dentre as artes, é a mais misteriosa. Como podem os sons invocar emoções tão fortes, alegrias e tristezas, lembranças de momentos especiais ou dolorosos, paixões passadas e esperanças futuras, patriotismo, ódio, ternura? Quando se pensa que sons nada mais são que vibrações que se propagam pelo ar, o mistério aumenta ainda mais.

A física explica como ondas sonoras se comportam, suas frequências e amplitudes. A biologia e as ciências cognitivas explicam como o aparelho auditivo transforma essas vibrações em impulsos elétricos que são propagados ao longo de nervos para os locais apropriados do cérebro. Mas daí até entender por que um adágio faz uma pessoa chorar, enquanto outra fica indiferente ou até acha aquilo chato, o pulo é enorme.

A música fala diretamente ao inconsciente, criando ressonâncias emotivas que são únicas. É bem verdade que um poema ou um quadro também afetam pessoas de modo diferente. Mas a mensagem é mais concreta, mais direta. Existe algo de imponderável na música, um apelo primordial, algo que antecede palavras ou imagens.

Não é por acaso que a música teve, desde o início da história, um papel tão fundamental nos rituais. Ritmos evocam transes em que o eu é anulado em nome de algo muito mais amplo. Quando um grupo de pessoas escuta o mesmo ritmo, as separações entre elas deixam de existir, e um sentimento de união se faz presente. Mais explicitamente, todo mundo gosta de sambar com uma boa batucada. E todos no mesmo ritmo, ou seja, indivíduos se unificam por meio da dança. A dança dá realidade espacial à música, tornando-a concreta.

A música foi o primeiro veículo de transcendência do homem. Daí sua presença tão fundamental nas várias religiões. E ela foi, também, a primeira porta para a ciência. Tudo começou em torno de 520 a.C., quando o filósofo grego Pitágoras, vivendo na época no sul da Itália, descobriu uma relação matemática entre som e harmonia. Ele mostrou que os sons que chamamos de harmônicos, prazerosos, obedecem a uma relação matemática simples.

Usando uma lira, uma espécie de harpa antiga, ele mostrou que o tom de uma corda, quando soada na metade de seu comprimento, é uma oitava acima do som da corda livre, portanto satisfazendo uma razão de 1:2. Quando a corda é soada em 2:3 de seu comprimento, o som é uma quinta mais alto; em 3:4, uma quarta mais alto.

Com isso, Pitágoras construiu uma escala musical baseada em razões simples entre os números inteiros. Como essa escala era de caráter tonal, os pitagóricos associaram o que é harmônico com o que obedece a relações simples entre os números inteiros.

E foi aqui que eles deram o grande pulo: não só a música que ouvimos, mas todas as harmonias e proporções geométricas que existem na natureza podem ser descritas por relações simples entre números inteiros. Afinal, formas podem ser aproximadas por triângulos, quadrados, esferas etc., e essas figuras podem ser descritas por números.

Portanto, do mesmo modo que a corda da lira gera música harmônica para determinadas razões de seu comprimento, os padrões geométricos do mundo também geram as suas melodias: a música se torna expressão da harmonia da natureza, e a matemática, a linguagem com que essa harmonia é expressa. Som, forma e número são unificados no conceito de harmonia.
Pitágoras não deixou as suas harmonias apenas na Terra. Ele as lançou para os céus, para as esferas celestes. Embora os detalhes tenham se perdido para sempre, segundo a lenda apenas o mestre podia ouvir a música das esferas.

Na época, ainda se acreditava que a Terra era o centro do cosmo. Os planetas eram transportados através dos céus grudados nas esferas celestes. Se as distâncias entre essas esferas obedeciam a certas razões, elas também gerariam música ao girar pelos céus, a música das esferas. Pitágoras e seus sucessores não só estabeleceram a essência matemática da natureza como levaram essa essência além da Terra, unificando o homem com o restante do cosmo por meio da música como veículo de transcendência.

domingo, 7 de dezembro de 2003

O príncipe que mediu o cosmo

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Olhando para o céu noturno, em uma noite sem luar, nos deparamos com o que parece ser uma infinidade de estrelas. Na verdade, a olho nu vemos apenas umas 3.000, que já tornam o céu bastante cheio.

É incrível que até 1610 a astronomia não dispunha de seu instrumento-mor, o telescópio. Medir a posição de uma estrela ou de um planeta significava medir o ângulo que o objeto celeste fazia com o horizonte (a sua latitude celeste, ou declinação) e a sua posição relativa aos pontos cardeais (a sua longitude). Para isso, foram criados instrumentos com nomes como quadrantes e sextantes. Portanto, armado de muita paciência, seria possível medir a posição de cada estrela e de cada planeta e assim reproduzir o arranjo dos céus em um globo ou em um pedaço de papel.

E a coisa era cara. Isso porque medidas astronômicas têm de ser precisas para ser úteis. Um instrumento barato, de pouca precisão, não produzirá bons resultados. Feito um relógio de baixa qualidade, que atrasa ou adianta sempre. O financiamento de bons instrumentos sempre foi um dos grandes obstáculos para o desenvolvimento científico.

Em geral, os cientistas não têm os fundos necessários para comprar ou construir seus próprios instrumentos. Eles dependem de recursos externos, seja do governo, seja da indústria. Mas, na história da ciência, existem algumas exceções a essa regra. Talvez a mais fascinante seja a de Tycho Brahe (1546-1601), o príncipe astrônomo.

Brahe viveu durante a segunda metade do século 16, logo após a morte de Copérnico em 1543. Sua família pertencia à fina flor da nobreza dinamarquesa, com direito a muita pompa e circunstância. Seu destino profissional estava já selado de nascença; como todo nobre, ele deveria estudar direito e se dedicar à administrar a fortuna da família.

Só que Brahe tinha outros planos. Quando era ainda adolescente, viu um eclipse parcial do Sol. Esse evento o impressionou profundamente. Não só por sua beleza, mas também porque ele foi previsto. Para Brahe, poder prever os movimentos celestes era equivalente a conhecer a mente divina. Afinal, se Deus era o arquiteto celeste, a astronomia era uma porta para o divino.
Daí para a frente, Brahe só quis saber de astronomia, para desespero de sua família. Dotado de uma personalidade muito forte, Brahe não fez por menos. Usou o dinheiro da família para construir instrumentos de altíssima precisão e, com eles, começou metodicamente a medir os céus.

Deu sorte. Vários fenômenos celestes estranhos desafiaram a sabedoria da época. Em 1572, quando voltava de seu laboratório alquímico (era normal trabalhar em alquimia, astronomia e astrologia naqueles tempos), Brahe percebeu uma nova estrela brilhando no céu. Estudou suas propriedades até ela desaparecer de vista, concluindo que estava muito além da Lua. Isso contrariava os ensinamentos de Aristóteles, que dizia que os céus para além da Lua eram imutáveis. Como uma estrela podia surgir e desaparecer por si só? Em 1577, ele mostrou que um cometa também estava além da Lua, uma nova violação dos preceitos aristotélicos. Os céus não eram imutáveis.

A essa altura, Brahe já era um astrônomo famoso. Tanto assim que, quando ele ameaçou deixar a Dinamarca, o rei lhe deu de presente uma ilha inteira e fundos para construir um grande castelo-observatório, Uraniborg, "O Castelo dos Céus". Lá, Brahe vivia como um verdadeiro príncipe, cercado de assistentes e súditos. Tinha até um calabouço com salas de tortura onde ameaçava aqueles mais rebeldes. Não era uma pessoa das mais agradáveis. Mesmo fisicamente, seu aspecto era intimidante: tinha um nariz postiço, feito de uma liga de ouro e prata, e olhos negros brilhantes e maliciosos. Parece que um de seus primos lhe rasgou o nariz em um duelo.

À noite, armado de seu quadrante de bronze e carvalho de 38 polegadas de diâmetro, Tycho se transformava. Durante 30 anos, o príncipe astrônomo mediu os céus, centenas de estrelas, as órbitas dos planetas, coletando os dados astronômicos mais precisos até então. Foram esses dados que permitiram que Johannes Kepler, seu assistente e um dos grandes gênios de todos os tempos, obtivesse as leis que regem as órbitas dos planetas. Outro dia eu conto a história de como os dois se encontraram.

domingo, 30 de novembro de 2003

A borboleta e o caos

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Existe uma frase que ficou famosa na descrição das propriedades caóticas do clima: o bater das asas de uma borboleta na África pode causar chuvas no Paraguai. Pelo menos, essa é uma entre milhares de versões.

O importante não é realmente onde está a borboleta ou onde vai chover, mas o fato que o minúsculo deslocamento de ar causado pelo bater de suas asas pode causar efeitos na atmosfera turbulentos o suficiente para serem sentidos a milhares de quilômetros de distância. Conheço poucos exemplos de "globalização" melhores do que esse. Quando o assunto é clima, o mundo é mesmo unido. A atmosfera não reconhece fronteiras.

Por trás da estranha relação entre a borboleta e o clima está uma propriedade fundamental da física, a não-linearidade. Quando um sistema é linear, um estímulo é respondido na mesma intensidade, como no caso de uma criança empurrada em um balanço. Quanto mais forte o empurrão, mais alto ela vai (isso só é verdade para pequenos ângulos). Se o balanço fosse não-linear, um pequeno empurrão poderia catapultar a criança em órbita. Meio dramático, mas é verdade.

O clima é regido por equações não-lineares. Isso explica por que é tão difícil prevê-lo, especialmente por muitos dias. Vários efeitos têm de ser computados, complicando as previsões.
Essa limitação é o grande embate das simulações feitas em computadores para estudar o efeito estufa e suas consequências climáticas. Segundo a maioria absoluta dos modelos, o aumento da concentração de gases na atmosfera já está causando o seu aquecimento gradativo.

A década de 1990 foi a mais quente dos últimos 150 anos. A política de ambiente norte-americana é lamentável, especialmente sabendo-se que em torno de 25% do gás carbônico do planeta é produzido lá. Talvez seja necessária uma catástrofe nacional para que as coisas mudem. Ela possivelmente já começou, ameaçando um dos símbolos ecológicos mais importantes dos EUA, a borboleta monarca.

Levando em conta as maravilhosas borboletas que existem no Brasil -pelo menos as que conseguiram escapar dos pratos com tampo de vidro vendidos para turistas e exportados para o mundo inteiro (quando esse absurdo será proibido?)- a monarca nem é tão especial. O que a torna fascinante é o fato de ela ser uma espécie migratória.

Centenas de milhões de borboletas escapam do inverno nos EUA indo para o México. A migração é dividida pelas montanhas Rochosas, a cordilheira que corta a América do Norte como uma espinha dorsal. As monarcas que vão para o México são as que estão do lado leste das Rochosas. As que estão do lado oeste vão para o sul da Califórnia.

Ver milhares de borboletas voando é um espetáculo inesquecível. Às vezes, elas obscurecem o céu. É incrível imaginar que criaturas tão frágeis, pesando meio grama, sejam capazes de voar por milhares de quilômetros. Não só isso, elas sabem, todos os anos, exatamente para onde ir, sempre retornando aos mesmos lugares.

Um ano significa quatro gerações de monarcas. De alguma forma, a tradição é transmitida de geração a geração. Na ausência de mapas, talvez as borboletas usem algum outro mecanismo de navegação. O biólogo Fred Urquhart sugeriu que elas seguem a difusão em direção ao sudoeste de sua comida favorita, o soro leitoso secretado por certas plantas, incluindo a soja. Ninguém sabe ao certo.

Estudos climáticos mostram que o efeito estufa está ameaçando os nichos ecológicos mexicanos para onde migram as monarcas do leste. Modelos prevêem que, se nada for feito para controlar a emissão de gases durante as próximas décadas, e se a temperatura global continuar a subir, instabilidades climáticas vão causar um aumento na precipitação (chuva e até neve) nessas regiões muito além da tolerância das frágeis borboletas.

A situação piora ainda mais com o desflorestamento que já ocorre na região. Alguns especialistas acham que as borboletas vão encontrar outros lugares para passar o inverno, talvez mais ao sul, mas isso é apostar no desconhecido. Infelizmente, nós somos uma espécie que só sabe reagir quando não tem outra saída. Só espero que não sejam as pobres borboletas a pagar pela nossa estupidez.

domingo, 23 de novembro de 2003

Um presente do céu

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Como todo bom brasileiro vivendo em lugar frio, gosto sempre de reclamar do clima. Se no Brasil as pessoas reclamam do calor, aqui é justamente o oposto: onde moro, no norte da Nova Inglaterra, o inverno dura uns seis meses, de novembro até abril. Fora o frio, no inverno os dias são extremamente curtos. Como o Sol, nas altas latitudes, descreve um arco muito tímido durante o dia, sua luz não dura mais do que nove horas, das 7h até as 16h. Resumindo, ficamos com frio e ainda por cima no escuro.

Mas nem tudo é tão terrível assim. Morar em altas latitudes tem algumas vantagens. Algumas delas nos são dadas pelos céus. Em torno do dia 30 de outubro, o Sol entrou em crise: enormes tempestades solares lançaram quantidades gigantescas de matéria através do Sistema Solar, um fenômeno chamado ejeção de massa coronal. Essas ejeções ocorrem com certa frequência, mas raramente com a intensidade dessa última.

Bolhas gigantescas de gás ionizado atravessaram os 150 milhões de quilômetros entre o Sol e a Terra em menos de 20 horas, ou seja, a velocidades de mais de 2.000 quilômetros por segundo. Você pisca os olhos, e a bolha de matéria solar viajou 2.000 quilômetros. O interessante é o que ocorre quando as partículas vindas do Sol são capturadas pelo campo magnético da Terra.

Que a Terra é um gigantesco ímã sabemos pelo uso das bússolas: a agulha da bússola, feita de material magnetizado, tende a se alinhar com o campo magnético terrestre, apontando sempre na direção norte. Os pólos magnéticos não estão alinhados com os geográficos. O pólo Norte magnético está a uma latitude de 80N, enquanto o Sul está a 60S.

O campo magnético da Terra tem a forma de um véu que se afunila nos dois pólos magnéticos. Na verdade, são inúmeros véus que se superpõem continuamente, como as camadas de uma cebola. O campo, que se estende até grandes distâncias, cria dois cinturões de partículas, um a 3.000 km de altitude e outro, bem mais distante, a 20 mil km.

Em comparação, a atmosfera terrestre chega apenas a 40 km de altitude: o campo magnético terrestre vai muito além da atmosfera. São os chamados cinturões de Van Allen, o cientista americano que construiu os instrumentos a bordo do satélite que os descobriu. Eles fazem parte da "magnetosfera" terrestre, a região em torno da Terra onde existe um campo magnético.
As partículas aprisionadas nos cinturões, como moscas entre dois vidros, são principalmente elétrons e prótons provenientes do Sol. Os prótons, aproximadamente 2.000 vezes mais pesados que os elétrons, habitam principalmente o cinturão mais próximo da Terra.

Quando ocorre uma ejeção de massa solar, mais prótons são capturados pelos cinturões de Van Allen. São esses prótons que causam um dos fenômenos naturais mais espetaculares, a aurora. Ver uma aurora é uma das grandes vantagens de viver em altas latitudes, um verdadeiro presente do céu. A tempestade solar no final de outubro criou uma logo acima da minha casa. Uma visão que jamais esquecerei.

No hemisfério Norte, ela se chama aurora boreal. No Sul, aurora austral. As partículas escapam dos cinturões e "descem" até a atmosfera terrestre em movimento espiral, como crianças em um escorregador. Suas colisões com as moléculas de ar da atmosfera geram radiação luminosa de várias cores, e o céu é decorado por cortinas de luz que oscilam lentamente como se estivessem ao vento.

A que presenciei era vermelha e alaranjada, bem adequada para a noite antes de Halloween, a festa das bruxas. Seus vários véus pareciam estar brotando de um ponto fixo no céu, como pétalas de uma flor incandescente. Em sua fantástica trilogia "His Dark Materials" (Os Seus Materiais Negros), o autor inglês Philip Pullman fala da aurora como uma entidade mágica, separando universos paralelos. Vendo os céus brilhando em plena noite, eu quase acreditei nele.

domingo, 16 de novembro de 2003

Perplexidade quântica

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Se existe uma palavra que define a reação das pessoas que encontram pela primeira vez as propriedades do mundo quântico, deve ser "perplexidade". A bem da verdade, essa perplexidade não ocorre só num primeiro encontro. Mesmo físicos treinados continuam a senti-la no decorrer de suas carreiras.

O grande físico dinamarquês Niels Bohr, um dos arquitetos da mecânica quântica, disse em 1927 que, "se alguém não se chocar com a teoria quântica, é porque não a entendeu". Já o irreverente físico americano Richard Feynman, quatro décadas mais tarde, escreveu que "ninguém entende a teoria quântica". O mundo do muito pequeno, dos átomos e das partículas subatômicas como os elétrons e prótons, é mesmo bizarro.

Em 19 de outubro passado, escrevi sobre o assunto, explorando um pouco as diferenças entre o mundo clássico -o mundo do nosso dia-a-dia- e o mundo quântico. Uma leitora me pediu para voltar ao tema, discutindo uma questão que imagino esteja na mente de muita gente: se o mundo quântico é assim tão estranho, por que não percebemos nenhum desses efeitos em nossas vidas? Em outras palavras, onde fica a linha divisória entre o mundo com que estamos acostumados e o mundo estranho dos efeitos quânticos?

Antes de tocar no assunto, vale revisitar um efeito quântico importante, só para contrastar com a realidade que conhecemos. Os planetas giram em suas órbitas ao redor do Sol. Como conhecemos a força que o Sol e os planetas exercem uns sobre os outros -a da gravidade-, podemos escrever equações que nos dizem onde os planetas estarão no futuro com enorme precisão. Elétrons "giram" ao redor do núcleo atômico (as aspas ficarão claras em breve). No entanto, não podemos dizer com precisão onde um elétron estará em um determinado instante. Isso porque não podemos visualizá-lo como uma bola de bilhar (um miniplaneta). Temos de imaginá-lo como uma entidade que é parte bola de bilhar e parte onda, sem uma posição determinada.

É melhor dizer que o elétron se espalha ao redor do núcleo, estando um pouco mais aqui ou ali. Se medirmos a sua posição diversas vezes, a cada vez obteremos um resultado diferente. Podemos apenas dizer qual a probabilidade de encontrar o elétron aqui ou ali. No mundo quântico, a precisão familiar da realidade clássica se esvai em probabilidades.

Essa propriedade é consequência do chamado Princípio da Incerteza, proposto por Werner Heisenberg quando ele era assistente de Bohr. Segundo o princípio, existe um limite máximo na precisão com que a posição e a velocidade de uma partícula, como o elétron, podem ser medidas conjuntamente.

Medir significa perturbar. Quando o objeto é muito pequeno, o ato de medir acaba por deslocá-lo de sua posição, provocando um erro na medida. Essa é a razão pela qual não vemos efeitos quânticos na nossa realidade. (Existem exceções, como os superfluidos, mas isso fica para outro dia.) Os objetos à nossa volta são grandes demais para que seus efeitos quânticos possam ser percebidos.

Mas onde fica a linha divisória entre o mundo clássico e o mundo quântico? Na verdade, ela não existe. Existem apenas efeitos quânticos que são tão pequenos no mundo clássico que passam despercebidos. Eis alguns exemplos, de um elétron até uma ervilha: a incerteza na velocidade de um elétron em escalas subatômicas (um centésimo de bilionésimo de metro, 10-11m) é de 10 milhões de metros por segundo, ou seja, relativamente alta; a de um átomo, de dez metros por segundo; a de uma macromolécula orgânica, um centésimo de milésimo de metro por segundo; a de um grão de pólen, um décimo de trilionésimo de metro por segundo (10-13 m/s, ou seja, quase nenhuma); a de uma ervilha, um trilionésimo de trilionésimo de metro por segundo, 10-24 m/s, completamente desprezível. (Números aproximados.)

Conclusão: ao passar do muito pequeno ao muito grande, a incerteza intrínseca ao mundo quântico se torna desprezível e a realidade deixa de causar tanta perplexidade.

domingo, 9 de novembro de 2003

Um pouco sobre o céu

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Vamos começar imaginando que é possível, mesmo hoje em dia, olhar para o céu. E isso tanto de dia quanto à noite. De dia, fora as nuvens e o azul do céu (imagine também que a poluição não estrague essa visão), quem domina é o Sol, viajando do leste para o oeste.

Claro, é apenas uma ilusão. Quem está girando somos nós, do oeste para o leste. Quem já andou de carrossel sabe bem como isso funciona: quando o carrossel gira, parece que é o mundo que está girando em sentido contrário. Pois o nosso carrossel é a Terra, girando sobre o seu eixo como um pião. Aliás, um pião que está inclinado em um ângulo de aproximadamente 23,5 com relação ao "chão", o plano onde ficam (aproximadamente) situados todos os planetas do Sistema Solar.

À noite, esse movimento da Terra explica por que as constelações também viajam lentamente do leste para o oeste. Interessante que as constelações, que acreditamos ser grupos de estrelas vizinhas, são na verdade outra ilusão. As estrelas compondo uma determinada constelação podem estar separadas por distâncias enormes, de milhares de anos-luz. Nós, aqui da Terra, percebemos apenas a sua projeção no céu, e achamos que elas estão de fato juntas.

O efeito ocorre porque, às vezes, as estrelas mais distantes são também as mais luminosas e aparentam estar mais perto do que na realidade estão. É como se várias pessoas saíssem por um descampado à noite, levando lanternas de diferentes potências. Você fica no mesmo lugar, olhando para as lanternas. Se as lanternas mais fracas estiverem mais próximas de você, fica difícil determinar que elas estão na verdade separadas por grandes distâncias. A impressão é que elas estão mais ou menos próximas, formando um grupo de lanternas vizinhas.

As constelações são um presente dado pela perspectiva celeste que, apesar de ser tridimensional, aparenta ser bidimensional: o céu parece uma cúpula, uma redoma que nos envolve.

Se o leitor olhar para o céu noturno na mesma hora durante alguns dias (digamos às 22h), perceberá que as constelações não reaparecem no mesmo lugar, mas se deslocam um pouco com relação à linha do horizonte. Essa observação pode ser feita focando a atenção em uma constelação, como o Cruzeiro do Sul.

Essa mudança no céu se deve ao segundo movimento terrestre, em torno do Sol. A Terra demora 365 dias para completar uma órbita em torno do Sol, e uma volta completa equivale a um ângulo de 360. Portanto, a cada dia a Terra se desloca de um ângulo de 360/365 = 0,986 em sua órbita, ou um pouco menos de um grau.

Quem vive em latitudes altas como eu, longe o suficiente da linha do Equador, percebe também a radical mudança de temperatura e duração do dia que caracteriza as estações do ano. Muita gente acha que o inverno é mais frio do que o verão porque nessa época a Terra está mais longe do Sol. Mas os leitores de "Micro/Macro" sabem que não é nada disso. As estações do ano são consequência da inclinação da Terra com relação ao plano de sua órbita, o pião inclinado que mencionei acima.

Suponha que o Sistema Solar seja uma pizza: o Sol no centro e cada planeta uma azeitona com um palito enfiado no meio. O palito é para indicar a inclinação do planeta em relação ao plano da pizza. O da Terra está inclinado em 23,5 (o de Urano, em 98!). Imagine agora a azeitona girando em torno do Sol, mantendo fixa a inclinação do palito. O hemisfério Sul é aquele abaixo da linha do Equador da azeitona.

Fica claro que existirá um ponto onde o hemisfério Sul verá o Sol mais alto no céu (em torno de 21 de dezembro) e outro onde ele estará o mais baixo possível (em torno de 21 de junho). A época do ano com o Sol mais alto e, portanto, dias mais longos, é o verão, e a com o Sol mais baixo e dias mais curtos é o inverno. Caso a inclinação da Terra fosse menor, as diferenças entre as estações seriam também menores.

É importante refletirmos um pouco sobre onde estamos neste vasto Universo. A nossa visão do céu é produto dos vários movimentos da Terra, um em torno de seu eixo, o outro em torno do Sol -assim como nós e o Sol girando em torno do centro da Via Láctea, juntamente com suas outras centenas de bilhões de estrelas e planetas.

domingo, 2 de novembro de 2003

Cosmitologia

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É bom começar explicando que o título é esse mesmo, e não "Cosmetologia", como alguns poderiam imaginar. Sei que misturar ciência e mitologia deve ser feito com cuidado, e um ensaio curto não é o lugar mais indicado para tal. De todo modo, meu intuito é provocar a reflexão neste domingo dedicado ao passado. Algumas das perguntas feitas hoje por cosmólogos, aqueles físicos que estudam a origem e as propriedades do Universo, são bem mais antigas do que a própria ciência. A mais importante, a que poderia ser chamada de "mãe de todas as perguntas", é, claro, a origem de tudo: como surgiu o mundo?

Todas as culturas tentaram, de algum modo, responder a esse grande mistério. As respostas, chamadas de mitos de criação, são de uma riqueza impressionante, narrativas que tentam traduzir como o absoluto virou relativo, como o uno virou muitos. Por exemplo, para os maoris da Nova Zelândia, tudo veio do nada absoluto, sem a intervenção de uma divindade. O cosmo apareceu espontaneamente, uma flutuação surgida do vazio.

Um mito taoísta diz que no início existia o caos e que do caos surgiu a ordem, e da ordem condensou-se a terra, como uma gota d'água nascendo de uma nuvem carregada de umidade. Já a narrativa do Antigo Testamento descreve a criação como resultado da vontade divina: "Deus disse "Faça-se a luz" ".

Um estudo da cosmologia do século 20 mostra que algumas das idéias que apareceram em mitos de criação reaparecem sob o jargão científico. Não, o Big Bang não tem a ver com o Gênese: a luz descrita na Bíblia não é a explosão do evento que marcou o início da história cósmica. O Big Bang não foi uma explosão como é comum imaginar, uma bomba que explode e espalha detritos ao redor. Mais ainda, uma bomba pressupõe alguém para detoná-la, o que certamente não é o caso com modelos cosmológicos.

O ponto de encontro entre as teorias modernas e os mitos é o pressuposto de que a diversidade que observamos na natureza tem sua origem em um único princípio. No caso dos mitos, o princípio é uma realidade absoluta de onde surge tudo, seja ela Deus, os deuses, o nada ou o caos primordial. Já as teorias modernas sustentam que, no início, as quatro forças fundamentais que regem o cosmo (gravidade, eletromagnetismo e forças nucleares forte e fraca) estavam unificadas numa única, o campo unificado.

O que se sabe sobre esse campo unificado? Não muito. Einstein passou décadas tentando desvendar suas propriedades. Centenas de físicos teóricos dedicam suas carreiras atrás do mesmo objetivo.

Existem indicações experimentais de que, de fato, as forças começam a se comportar de modo semelhante em altas energias. Por exemplo, as forças eletromagnética e nuclear fraca funcionam como uma só nas energias obtidas em colisores de partículas, máquinas que aceleram partículas a velocidades próximas à da luz. Mas essas indicações estão longe de ser uma confirmação de que o campo unificado existe. Será que a física teórica também está fabricando um mito?

O vencedor do Prêmio Nobel Steven Weinberg, um dos físicos teóricos mais influentes do mundo, famoso por sua posição ultra-reducionista, publicou um livro intitulado "Sonhos de uma Teoria Final". Veja bem, sonhos. Nele, ao se referir à busca por uma teoria unificada, Weinberg escreve: "Nós temos de supor que teremos sucesso. Caso contrário, certamente falharemos".
É um ponto fundamental. A teoria do campo unificado poderá vir um dia a ser descoberta. Ou ela pode ser um Cálice do Graal, mitologia. Nesse caso, seria como uma montanha mágica, cujos contornos podemos ver na distância, encobertos por brumas. Para chegar até ela, temos de desbravar território desconhecido.

A exploração desse território é que gera a nova ciência. Isso ocorre mesmo se montanha alguma existir no final do caminho, mesmo que ela seja uma miragem. O poder de um mito não está na sua veracidade, mas na sua credibilidade. Ele sustenta a criatividade científica, alimentando a coragem de nos aventurarmos por terras inteiramente desconhecidas.

domingo, 26 de outubro de 2003

Finito ou infinito

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No último dia 9, a prestigiosa revista científica britânica "Nature" (www.nature.com) publicou artigo de um grupo de cosmólogos liderados pelo francês Jean-Pierre Luminet que vem causando grande estardalhaço. Segundo Luminet e colaboradores, dados astronômicos recentes sugerem que o Universo não só é finito, mas com uma forma global -uma topologia- bem definida, dodecaédrica feito uma bola de futebol. Parece que até a forma do Universo nos lembra do que é realmente importante na vida, uma boa pelada.

Justamente na semana da publicação do artigo estava de passagem pelo Brasil e, no dia 9 mesmo, fui participar de um colóquio no Departamento de Física da USP. Claro, a pergunta foi feita. "E então, Marcelo, é finito ou infinito?"

Pensei no que sabemos a respeito. O grupo de Luminet baseou suas conclusões em dados obtidos principalmente pelo satélite WMAP, da Nasa (agência espacial norte-americana), cuja missão foi mapear em detalhe as flutuações na temperatura do banho de radiação que permeia o Universo. Flutuação aqui significa que o satélite mediu a temperatura em direções diferentes do céu e comparou os seus valores.

Essa radiação cósmica de fundo, como é chamada, é um fóssil de uma era importante na infância do Universo, quando foram formados os átomos de hidrogênio, em torno de 380.000 anos após o Big Bang. Sua existência havia sido proposta por George Gamow e colaboradores no final da década de 1940, como consequência de um Universo primordial muito quente e denso. Tão quente que, durante seus primeiros milhares de anos, elétrons e prótons, apesar de atraídos entre si eletricamente, não conseguiam formar átomos de hidrogênio. Feito um triângulo amoroso, onde a radiação, muito energética (os fótons), impedia a ligação entre elétrons e prótons.

Gamow mostrou que um Universo em expansão se resfriava. Depois, a radiação deixou os elétrons e prótons em paz, passando a viajar livremente pelo Universo. O satélite WMAP mediu as variações na sua temperatura, com precisão de um centésimo de milésimo de grau.
E o que isso tem a ver com a geometria cósmica? No Universo, a gravitação reina como a força suprema. Segundo a teoria da relatividade geral de Einstein, a geometria do espaço pode ser deformada pela presença de matéria. Com isso em mente, voltemos ao Universo primordial, quando a radiação cósmica começou a se propagar pelo cosmo. Nele, haviam grandes concentrações de massa, as sementes do que mais tarde viriam a ser as primeiras estrelas e galáxias.

Imagine que você seja um fóton dessa radiação. O Universo fica parecendo uma corrida de obstáculos, com poços mais ou menos profundos, dependendo da concentração local de massa. Se você cai em um poço, terá de gastar energia para sair dele. Quanto mais fundo, mais energia será gasta. Esses fótons cansados são mais frios do que os outros. Essa é a origem principal das flutuações de temperatura na radiação cósmica.

Antes dos dados do WMAP, tudo indicava que as flutuações de temperatura eram compatíveis com um Universo plano, onde flutuações em todas as direções eram possíveis. Isso mostrava que o Universo era "crítico", com a atração de sua matéria contrabalançando exatamente a taxa de expansão, em um cabo-de-guerra cósmico. Mas os dados do WMAP sugerem que o Universo seja "supercrítico", com um pequeno excesso de matéria. Esse excesso faz com que o Universo tenha uma geometria fechada.

Isso foi visto nos dados do WMAP como uma supressão nas flutuações em ângulos mais abertos: quando a antena aponta em direções do céu separadas por ângulos de mais de 90, as flutuações de temperatura praticamente desaparecem, como se elas não coubessem dentro. Pense em uma banheira cheia d'água. Qual a maior onda que cabe nela? A com o tamanho da banheira, certo? Pois bem, o mesmo com o Universo.

A forma dodecaédrica é a que explica melhor a supressão das flutuações a ângulos grandes. Se isso está certo ou não, ainda não podemos afirmar. Em 2007, outro satélite, mais bem equipado, será capaz de resolver a questão por definitivo. Nesse caso, a ciência terá respondido a uma pergunta que é tão antiga quanto a história do conhecimento, o tamanho e forma do cosmo em que vivemos.

domingo, 19 de outubro de 2003

O debate quântico

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Durante as primeiras três décadas do século 20, o misterioso comportamento dos átomos foi pouco a pouco sendo revelado por um grupo de físicos que inclui Einstein, Bohr, Dirac, Schrödinger, Heisenberg, Pauli e muitos outros. Foram 30 anos que abalaram profundamente os alicerces da física, transformando a nossa concepção de mundo. Os átomos e seus constituintes, elétrons, prótons e nêutrons, têm propriedades inteiramente diferentes dos objetos que vemos no dia-a-dia, como bolas, carros ou ondas na praia. O mundo quântico, como veio a ser chamada a realidade em que essas entidades existem, é um mundo borgiano, exótico e paradoxal.

No nosso mundo, o mundo clássico, objetos podem viajar continuamente pelo espaço. Planetas orbitam o Sol, pessoas andam nas calçadas (quando há espaço), carros viajam em estradas etc. Já um elétron, orbitando o núcleo de um átomo, tem seus movimentos limitados. A ele são dadas apenas certas órbitas, separadas por distâncias fixas, como se um átomo fosse uma cebola, feito de órbitas concêntricas. O elétron "pula" de órbita em órbita, como nós subimos e descemos escadas. Estranho.

Mesmo essa imagem é já simplificada. Na verdade, não podemos pensar no átomo com um minissistema solar, com o núcleo no centro, feito o Sol, e o elétron girando à sua volta, como um planeta. O elétron deve ser interpretado como uma entidade que pode ter vários padrões de vibração, feito uma corda de violão que pode ser tocada de muitas formas, cada uma dando origem a uma nota diferente. Cada padrão de vibração do elétron está relacionado a uma "órbita", ou melhor, estado, com energia bem definida.

O elétron, portanto, não gira em torno do núcleo, mas ressoa de formas diferentes, dependendo da energia. Esses padrões vibratórios são os estados quânticos, e os pulos entre as órbitas consistem em transições entre padrões vibratórios. De certa forma, o átomo é como um instrumento musical, com apenas algumas notas possíveis, cada uma correspondendo a um estado ou nível de energia.

Uma consequência direta desse modo de interpretar o elétron é que fica impossível dizer onde, precisamente, ele está em um determinado momento. Do mesmo modo, não podemos dizer precisamente qual a posição de uma onda do mar, apenas sua distribuição pelo espaço. Esta indeterminação intrínseca da mecânica quântica, a mecânica do mundo atômico, irritou e irrita muita gente.

Talvez "frustrar" seja um verbo melhor, porque no mundo clássico não temos esse problema. Quando queremos saber onde está um carro, basta olhar para ele, medir a sua distância e determinar a sua posição. Já com o elétron a coisa fica bem mais complicada. Primeiro, o átomo é tão pequeno que não podemos vê-lo como vemos uma bactéria no microscópio. O ato de ver o elétron interfere com a sua posição. É como se soubéssemos de uma barata escondida embaixo do sofá: quando formos cutucá-la para ver onde ela está, ela muda de posição.

No caso do elétron em torno de um átomo, o ato de ver significa enviar radiação eletromagnética ou outra partícula para interagir com ele. Quando isso ocorre, o elétron imediatamente escolhe uma órbita e fica lá. Você pode estar pensando: "Então sabemos onde ele está, não? Na órbita número dois ou três". Não. Se você repetir a experiência cem vezes, vai obter resultados diferentes. Tudo o que podemos dizer é que o elétron tem uma certa probabilidade de ser detectado nessa ou naquela órbita. A certeza que existe no mundo clássico desaparece no mundo quântico.

Einstein jamais engoliu isso. Ele achava que essa incerteza quântica, probabilística, era consequência de nossa ignorância: deve haver uma teoria mais fundamental que pode determinar exatamente o que vai ocorrer com o elétron, explicando essas probabilidades todas. Bohr dizia que não: a natureza é intrinsecamente indeterminada, e pronto. Einstein pode gostar ou não disso.

O debate foi ao laboratório, e teorias diversas, não-probabilísticas, foram testadas. Ganha sempre a indeterminação. Aparentemente, o mundo quântico é mesmo paradoxal, um mundo borgiano em que todas as observações são, em princípio, possíveis, com probabilidades diferentes.

domingo, 12 de outubro de 2003

O olho biônico

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É bem verdade que nem sempre isso é claro, mas o objetivo mais fundamental da ciência e de suas aplicações tecnológicas é aliviar o sofrimento humano. Essa mensagem se perde, muitas vezes, devido às aplicações científicas que fazem parte do seu lado sombrio.

Exemplos não faltam, do uso das tecnologias nuclear e bioquímica em armas de destruição de massa até efeitos causados pela industrialização, como a poluição e o efeito estufa. Hoje, para variar um pouco, gostaria de abordar a ciência do bem. Em particular, alguns dos avanços que vêm sendo realizados no campo da visão artificial. Por incrível que pareça, o olho biônico não é mais apenas assunto de filmes de ficção científica.
Dos muitos males que afligem a humanidade, a cegueira é um dos mais terríveis. Quem leu o livro "Ensaio sobre a Cegueira", de José Saramago, sabe até que ponto a sociedade se desintegra quando perde coletivamente a visão. (Claro, a intenção de Saramago era metafórica e não literal. De qualquer modo, as consequências são bastante óbvias.)

Como disse uma voluntária da pesquisa realizada por dois médicos americanos, Mark Humayun e Eugene de Juan, ambos trabalhando na Universidade do Sul da Califórnia em Los Angeles: "Eu tinha de pedir a alguém para me levar ao banheiro quando estava em um restaurante. Ou, se eu deixasse minhas chaves ou dinheiro caírem no chão, eu tinha de me pôr de quatro e apalpar o chão até encontrá-los". É a perpétua escuridão.

Essa voluntária sofre de retinite pigmentosa, uma doença que deteriora progressivamente a retina até causar a cegueira completa. O trabalho de Humayun e De Juan consiste em reproduzir artificialmente o conjunto de operações executadas pelo olho humano ao captar imagens e transformá-las em impulsos nervosos, que são transmitidos pelo nervo óptico até o cérebro. O desafio é que o olho humano é uma máquina absolutamente fantástica.

A retina funciona mais como um computador do que como uma câmera. Os seus 130 milhões de células especializadas, chamadas cones e bastonetes, registram a luz comprimindo-a em um sinal analógico que é então transmitido digitalmente pelos mais de 1 milhão de neurônios do nervo óptico até o cérebro, onde a imagem é recriada.

Cada neurônio pode transmitir 200 pulsos por segundo. Portanto, um olho pode enviar 200 megabits de informação por segundo ao cérebro, 4.000 vezes mais do que um modem comum, dos usados hoje para conexão à internet. Claro que reproduzir algo com essa complexidade, capaz de gerar os detalhes e as cores que enxergamos normalmente, é impossível. Mas os primeiros olhos biônicos, mesmo que primitivos, começam já a dar grandes esperanças àqueles que sofrem de retinite pigmentosa e, possivelmente, outros tipos de cegueira.

Humayun e De Juan criaram uma rede com 16 eletrodos, que eles fixam cirurgicamente à retina do paciente. Esses 16 eletrodos fazem o papel de bastonetes e cones. Os eletrodos têm fios ultrafinos, implantados sob a pele, que são ligados a um pequeno disco magnético preso atrás da orelha do paciente. A outra parte do equipamento consiste em um par de óculos com uma câmera de vídeo em miniatura no seu centro.

A câmera está ligada a um computador do tamanho de uma carteira de bolso, que tem uma pequena antena afixada sobre o disco magnético atrás da orelha do paciente. Quando o paciente põe os óculos, a câmera capta a imagem, que é transformada pelo computador em impulsos elétricos. Esses impulsos são então emitidos pela antena como ondas de rádio até o disco magnético, estimulando os eletrodos implantados na retina do paciente. Ou seja, o dispositivo recria primitivamente os impulsos elétricos que são transmitidos através do nervo óptico até o cérebro.

Alguns pacientes, mesmo com essa rede de apenas 16 eletrodos, conseguem distinguir objetos grandes, janelas abertas, portas fechadas ou carros na rua. O objetivo é aumentar o número de eletrodos, de uma rede 4 por 4 (os 16 atuais) para uma de até 32 por 32 (1.024 eletrodos). Isso será suficiente para que o paciente possa ler e reconhecer rostos de pessoas. E transformar a perpétua escuridão em memória.

domingo, 5 de outubro de 2003

Sobre gotas e esferas

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Volta e meia é bom deixarmos de lado assuntos mais exóticos, como buracos negros, Big Bang, mecânica quântica, neutrinos ou supercordas, e pensarmos um pouco sobre as coisas que vemos todos os dias e que passam quase, ou totalmente, despercebidas. É mesmo uma pena que, em nossas vidas apressadas, mal tenhamos tempo de vislumbrar a beleza dos fenômenos simples, de apreciar a elegância das soluções que a natureza encontra para equilibrar função e forma. Por isso, hoje escrevo sobre uma forma que estamos cansados de ver, a gota d'água.

Para tornar o assunto um pouco mais romântico, imagine que você foi acampar com o seu amado (ou amada) na serra, em uma bela noite de junho, quando a temperatura já está mais fria. Como sabem aqueles que acampam, com o sol nascendo fica difícil dormir até tarde. Você sai da tenda para atender às suas necessidades biológicas e percebe que as plantas à sua volta estão todas decoradas por belíssimas gotas de orvalho, hemisférios líquidos resplandecentes, elegantemente simétricos.

Encantado, você começa a pensar nas várias gotas d'água que passam por sua vida, sem que você dê a menor bola: no suor sobre a sua pele, na condensação no chuveiro, no vidro embaçado do carro, nas gotas de chuva, nas lágrimas de sua amada (ou amado) durante um filme triste etc. Então você percebe, de um só golpe, que todas essas gotas têm uma coisa em comum: elas são esféricas ou, quando sobre uma superfície, hemisféricas. A questão passa a ser uma obsessão. Por que a esfera? O que determina essa forma e não outra?

Imagine uma gota d'água, suspensa no ar. A água é composta por moléculas combinando átomos de oxigênio e hidrogênio. A força que mantém as moléculas unidas é a atração elétrica entre os seus átomos integrantes. Uma molécula é eletricamente neutra, isto é, sua carga elétrica total é zero. Mas não exatamente.

O ponto é que a distribuição de carga na molécula nunca é perfeita: existe sempre um excesso (ou ausência) de carga, dando à molécula uma pequena força atrativa conhecida como força de Van der Waals. Isso significa que uma molécula dentro de uma gota é atraída pelas suas vizinhas em todas as direções, o que resulta em uma força total nula. Mas esse cancelamento das forças não ocorre para as moléculas na superfície da gota: afinal, não existem moléculas acima delas para exercer qualquer atração -só de ar, mas o efeito é mínimo. Ou seja, existe um desequilíbrio que faz com que as moléculas na superfície da gota sejam atraídas para seu interior.

Essa atração força as moléculas na superfície a se aproximarem mais, tornando-a mais densa. Esse efeito é conhecido como tensão superficial do líquido e é o responsável pela resistência que a superfície de um líquido oferece contra a sua expansão ou ruptura. Isso explica, por exemplo, por que uma agulha de metal, que é aproximadamente oito vezes mais densa do que a água, pode boiar. Diferentes líquidos têm diferentes tensões superficiais. A do mercúrio é quase seis vezes maior do que a da água, a 20C. Quando a temperatura aumenta e as moléculas estão mais agitadas, a tensão superficial diminui.

E o que isso tem a ver com a esfericidade das gotas? Como a tensão superficial causa uma contração das moléculas na superfície, ela faz com que sua área seja a menor possível. Para um volume fixo (a quantidade de líquido na gota), a forma geométrica com superfície de menor área que existe é a esfera. Portanto, é a tensão superficial que faz com que as gotas tenham essa forma. Se você cutucar a gota bem de leve, você verá que ela vai oscilar um pouco e depois voltará a ter a forma esférica.

A esfera reaparece em vários outros lugares: balões, planetas, estrelas. Nesses casos, as explicações para a forma são outras e ficam para depois. Mas uma coisa é sempre verdade: a esfera é muito comum porque ela constitui a solução mais econômica entre as tensões que existem nos objetos. A natureza, sábia que é, forja esse compromisso na forma mais simétrica que existe.

domingo, 28 de setembro de 2003

Descida a um "Maelström" cósmico

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Nas lendas e mitos de todas as culturas, um tema reaparece com frequência: o das viagens fantásticas, em que um ou mais homens (e/ou mulheres) enfrentam enormes desafios e monstros em partes estranhas do mundo, reais ou imaginárias.

As aventuras simbolizam um processo de transformação pessoal, muitas vezes ligado a um despertar espiritual: a pessoa que sobrevive à aventura não é a mesma. Ela se torna herói (ou heroína), com uma visão de mundo diferenciada, mais sábia. Os perigos enfrentados e as várias tarefas que precisam ser concluídas representam passos nesse processo de amadurecimento. Nessas histórias, a pessoa se reinventa através de suas explorações. Quem conhece a trilogia épica "O Senhor dos Anéis" sabe ao que me refiro.

Quando era adolescente, devorava os contos de Edgar Allan Poe. Um dos que mais me impressionaram foi (e é) "Descida no Maelström", que narra a terrível aventura de um explorador que é tragado pelo Maelström, um redemoinho gigantesco que, segundo lendas da Idade Média, existia na costa da Noruega.

Uma viagem ao interior do Maelström era uma viagem só de ida; dele, ninguém saía. Apenas, claro, o narrador do conto, cujos cabelos, que no início da viagem eram negros como as penas de um corvo, tornaram-se inteiramente brancos.

A certa altura, quando era evidente que ele não escaparia da atração do turbilhão, diz: "Sentia positivamente um desejo de explorar-lhe as profundezas, mesmo ao preço do sacrifício que ia fazer; e meu maior pesar era que jamais poderia contar a meus amigos, na praia, os mistérios que iria conhecer". A astrofísica revela mistérios de turbilhões cósmicos ainda mais espetaculares.

A narrativa de Poe é metáfora excelente para uma viagem a um buraco negro. Mesmo que, na Terra, o Maelström tenha provavelmente cedido lugar a uma gigantesca plataforma de petróleo no Atlântico Norte, o cosmo está repleto deles. Uma viagem até um seria ainda mais memorável do que a do herói de Poe.

Buracos negros são formados quando uma estrela de massa bem maior do que a do Sol (ao menos oito vezes) esgota o combustível nuclear em seu interior e finalmente sucumbe à sua própria gravidade. O processo de implosão da estrela é marcado por um dos eventos mais espetaculares e energéticos que existem, uma explosão de supernova.

Após a explosão, que ejeta uma enorme quantidade de matéria e radiação através do espaço, resta um núcleo central, que vai encolhendo cada vez mais, devido à sua própria gravidade. Eventualmente, esse núcleo se transformará em um buraco negro. A força da gravidade de um objeto depende de sua massa e de seu tamanho. Por exemplo, a mesma quantidade de massa pode ter uma gravidade pequena, quando espalhada em um volume maior, ou grande, se concentrada em um volume menor.

Portanto, na medida em que os restos da estrela vão encolhendo, sua gravidade vai aumentando: quanto menor o objeto, mais difícil escapar dele. Em um certo ponto, o objeto é tão compacto, e sua gravidade, tão gigantesca, que nem mesmo a luz pode escapar dele. É então que dizemos que o objeto se transformou em um buraco negro.

Os efeitos estranhos de uma viagem a um buraco negro vêm da associação entre a geometria do espaço (e do tempo) e a quantidade de matéria nele. Segundo a teoria da relatividade de Einstein, matéria encurva o espaço e afeta o fluir do tempo. Um buraco negro é o caso extremo: o espaço à sua volta se fecha sobre si mesmo, como um casulo, e o tempo passa a ficar cada vez mais como o espaço.

Normalmente, podemos viajar em qualquer direção do espaço, mas o tempo só flui para o futuro. Num buraco negro, o oposto ocorre: só existe uma direção possível de viagem, ao seu centro, onde a gravidade é, teoricamente, infinita. De lá ninguém sai. A menos que o buraco negro esteja em rotação, como um redemoinho, um Maelström cósmico.

Nesse caso, o ponto central se abre em uma garganta, uma passagem pelo espaço até outro local no universo. Imagino que, se algum dia alguém conseguir atravessar essa garganta cósmica (chamada buraco de verme), sair com cabelos brancos será irrelevante. Mistérios profundos sobre a estrutura mais íntima do espaço e do tempo lhe seriam revelados. Acho que Poe concordaria comigo.

domingo, 21 de setembro de 2003

Teller e o preço da paz

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A morte do físico Edward Teller, aos 95 anos, no dia 9 de setembro, marca o fim de uma era na história da relação entre a física nuclear e o poder político. Teller foi o último dos grandes nomes envolvidos com o desenvolvimento de armas nucleares de destruição de massa, trabalhando na área desde a Segunda Guerra. Ele foi também o físico mais influente na política norte-americana de contenção nuclear, que dominou a Guerra Fria por 40 anos.

Sua política pode ser resumida em uma frase: o único caminho para a paz é a absoluta supremacia bélica dos países com fins pacíficos. Conhecido como o "pai da bomba de hidrogênio", bem mais tarde em sua vida confessou detestar esse título. "Nunca fui pai de coisa alguma", disse ele em entrevista na década de 90.

Talvez parte do posicionamento político de Teller possa ser fruto de duas experiências horríveis ainda em sua juventude: a invasão de seu país natal, a Hungria, pelo exército revolucionário soviético e a ascensão do nazismo na Alemanha no início dos anos 30, onde então vivia. Físico brilhante, deve ter decidido desde cedo que o papel social da ciência era promover a paz, mesmo que isto ocorresse às custas da força.

A ironia de sua posição é que os EUA foram, até hoje, o único país que usou bombas nucleares contra populações civis. A lógica do argumento usado para justificar essa ação é macabra: sem a detonação das bombas, os japoneses jamais teriam se rendido. E uma invasão ao Japão causaria muito mais mortes do que as bombas. Sim, de soldados americanos, talvez.

Quando perguntaram a Teller, numa comemoração do 50º aniversário da detonação da primeira bomba, o que achava do uso das bombas em Hiroshima e Nagasaki, respondeu que seu uso havia sido indevido. Uma detonação na alta atmosfera teria servido como demonstração do poder destruidor, fazendo com que o Japão se rendesse.

Por outro lado, argumentou Teller, ele nunca se arrependeu de ter trabalhado no desenvolvimento das bombas. Foram elas, dizia, que garantiram a paz mundial durante a segunda metade do século 20. Aparentemente, Teller esqueceu-se de um detalhe: construir bombas não dá ao construtor poder de decisão sobre quando e onde usá-las. Mesmo assim, enquanto a maioria dos físicos se revoltou contra elas, ele continuou a insistir em seu desenvolvimento.

Teller trabalhou no Projeto Manhattan, responsável pela construção da bomba atômica dos EUA.

As primeiras bombas usaram a fissão nuclear: núcleos atômicos pesados, como o urânio-238 (238 refere-se ao número de prótons, 92, e de nêutrons, 146, no núcleo) ou o plutônio, são literalmente cortados em pedaços (fissionados) por nêutrons livres, que funcionam como pequenas balas de revólver. A cada fissão, mais nêutrons são liberados, os quais, por sua vez, atingem mais núcleos. Cada núcleo libera uma alta quantidade de energia ao ser fissionado. Se o número de nêutrons e núcleos for alto o suficiente, inicia-se uma reação em cadeia. A explosão se deve à fissão descontrolada de trilhões de trilhões de núcleos.

Terminada a guerra, Teller foi para a Universidade de Chicago. Quando os soviéticos detonaram sua primeira bomba, em 1949, Teller convenceu o presidente Harry Truman a criar uma mais mortífera, a bomba de hidrogênio, ou bomba H, que ele chamava de "superbomba".
A detonação da bomba H se baseia na fusão nuclear: em vez de obter energia dividindo núcleos pesados, como na fissão, ela vem da fusão de núcleos de hidrogênio. É o mecanismo que ocorre no interior do Sol, responsável pela sua gigantesca produção de energia. A detonação de uma bomba H, efetivamente, é como um minissol que dura apenas um instante. A primeira explodiu em 1952, em Eniwetok, no oceano Pacífico.

Com a Guerra Fria, Teller teve a idéia de juntar a hegemonia da tecnologia espacial norte-americana com sua política de paz, a qualquer custo. Em 1983, ele convenceu o presidente Ronald Reagan a construir um sistema antimísseis, conhecido como "Guerra nas Estrelas", que falhou miseravelmente.

Mas Teller não desistiu. Quando George W. Bush decidiu reiniciar a construção do sistema, em 2001, ele comemorou: "Até que enfim!" Teller morreu acreditando em sua política. E tentando esquecer os horrores causados por ela.

domingo, 14 de setembro de 2003

Criação ou descoberta?

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Fala-se muito no grande abismo entre ciência e arte, a primeira lógica, objetiva, enquanto a segunda é intuitiva, subjetiva. O poeta inglês John Keats acusou seu conterrâneo Isaac Newton de ter "desfiado o arco-íris" com suas explicações físicas sobre a difração da luz. Ou seja, explicar racionalmente algo de belo que existe no mundo é insultar a sua existência, tirar a sua poesia.

É o velho problema das "Duas Culturas", que o escritor e físico inglês C.P. Snow, em um pronunciamento de 1959, acusou de estar levando à desintegração sociocultural, à fossilização da criatividade moderna. Segundo ele, apenas a reintegração das duas culturas levará a humanidade a novas respostas para alguns de seus maiores desafios.

Um leitor desta coluna me escreveu recentemente pedindo que eu esclarecesse a distinção entre descoberta e criação. Mais especificamente, a diferença entre as duas dentro da ciência.
Nós criamos ou descobrimos a ciência? Será que as nossas teorias e os nossos teoremas estão codificados de algum modo na natureza e tudo o que faz um cientista é "des-cobri-los", levantar a coberta que os esconde, revelando seu significado? Ou será que os criamos, usando nossa intuição, observação e lógica?

Complicada, essa pergunta. E profundamente ligada à questão das duas culturas. Se fosse prudente, parava por aqui, citando a minha sábia avó, que dizia que "criar é coisa de Deus, descobrir é coisa de gente". Mas por que não tentar inverter isso, fazer do homem criador e não só criatura? Afinal, descobrir é emocionante, mas bem mais passivo do que criar.

Comecemos pelo "Aurélio". "Criar" significa dar existência a; dar origem a; formar; imaginar. "Descobrir" significa tirar cobertura que ocultava, deixando à vista; encontrar pela primeira vez; revelar etc. À primeira vista, a distinção entre as duas culturas está nessas definições.
O artista é o criador, ele ou ela dá existência a algo que não existia, enquanto o cientista é o descobridor, aquele que revela o significado oculto das coisas, sem criá-las. Beethoven criou a sua Nona Sinfonia, certo? Ela não existia antes de ele existir. Já Newton descobriu as três leis do movimento -elas estavam lá, escondidas na natureza, esperando para serem reveladas pela mente certa.

Muita gente pode se contentar com essa explicação e dar o caso por encerrado. Mas eu não. Para mim, a ciência é uma criação, tão criação quanto uma obra de arte. O fato de arte e ciência obedecerem a critérios de validade diferentes, de a ciência ter uma aceitação baseada no método científico, que provê meios para que teorias sejam testadas frente a observações, não muda a minha opinião. Ciência é criação do homem, fruto de nossos cérebros e de nosso modo de ver o mundo. Para entender isso, basta examinarmos um exemplo de sua história.
Aristóteles dizia que a gravidade vinha da tendência dos corpos de voltarem ao seu lugar de origem: uma pedra caía no chão porque foi de lá que ela tinha vindo. Newton, no século 17, propôs que a gravidade era uma força entre quaisquer corpos materiais, com intensidade proporcional ao produto de suas massas e inversamente proporcional ao quadrado de sua distância. Einstein, em 1916, disse que a gravidade vem da curvatura do espaço em torno de um corpo maciço, reduzindo-a a um efeito geométrico.

Todas essas teorias foram propostas para explicar os mesmos fenômenos. Imagino que Einstein não terá a última palavra: a gravidade será explicada de formas diferentes, na medida em que o conhecimento científico avançar. Junto com novas tecnologias e novos conceitos surgem novas representações do mundo natural. Pode-se descobrir um novo fenômeno, mas sua explicação é criada.

Pensemos agora em uma outra história, a da representação gráfica da crucificação de Cristo. No século 13 era uma coisa, na Renascença, outra, no século 18, ainda outra, e no 21, outra completamente diferente. O evento é o mesmo, mas a sua representação gráfica muda, porque muda a perspectiva artística. É perfeitamente razoável para um artista recriar a crucificação como um amálgama do seu subjetivismo e dos valores culturais da época em que vive. A visão artística está sempre em transformação.

A científica também está. Ciência é uma construção humana, criada para que possamos compreender o mundo em que vivemos. O que se descobre são novos modos de criar.

domingo, 7 de setembro de 2003

Independência e Marte!

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Este é um período difícil para os entusiastas da exploração espacial: a agência americana Nasa está comendo fogo após o relatório da comissão que examinou os motivos da trágica explosão do ônibus espacial Columbia. O Brasil, por sua vez, perdeu o seu terceiro foguete na base de Alcântara.

Ambos os acidentes custaram vidas humanas e, como na maioria dos acidentes causados por falhas técnicas, poderiam ter sido evitados. Tal como em crimes, é sempre bem mais fácil achar os culpados após a sua ocorrência. O duro é construir um sistema tão robusto que seja à prova de falhas e acidentes. Ou uma sociedade à prova de crimes.

Seria bom se a mesma dedicação fosse despendida tanto antes do acidente quanto depois. Mesmo que esse seja, obviamente, o objetivo de qualquer agência espacial -ninguém gosta de falhar-, na prática a situação é bem mais complicada: testes e controle de qualidade são custosos e dependem tanto da disponibilidade de pessoal treinado quanto de uma flexibilidade burocrática que é rara em grandes agências.

O que fazer, então? Suspender a corrida espacial? Impossível. No caso do Brasil, é imprescindível que o país atinja ao menos um nível básico de independência em tecnologia espacial, de modo a não ter de pagar à França, aos EUA ou à China para lançar os seus satélites. Aqueles que argumentam que o Brasil tem já muitos problemas e que lançar foguetes é uma tolice que deveria ser abandonada estão confundindo as bolas. Tomar conta de educação, saúde e fome da população não exclui o desenvolvimento de tecnologias de ponta no país.

Existe mesmo uma relação dual, aqui: sem um time de engenheiros e cientistas treinados, fica impossível atingir essa hegemonia tecnológica. E, sem programas de incentivo educacional, fica difícil motivar os jovens a seguirem carreiras nessas áreas. Quantas crianças não sonham em ser astronautas? Ou, ao menos, engenheiros aeroespaciais? Será que é tão absurdo assim pensar que, um dia, um brasileiro viajará à Lua numa espaçonave brasileira? E que será a bandeira do Brasil que iremos ver fincada na sua superfície? Não será mais absurdo achar que isso é impossível, que nós jamais seremos capazes de tal feito tecnológico? Que o nosso negócio é só com samba e futebol?

Enquanto isso, Marte brilha nos céus com uma luz que não se via há quase 60 mil anos e que demorará mais 281 anos para ser repetida. Escrevo este ensaio na noite em que o planeta vermelho atingiu a sua proximidade maior, 56 milhões de quilômetros. Saí de casa em torno das 22h e olhei na direção sudoeste, onde o planeta surge aqui na Nova Inglaterra.

Marte era o objeto mais brilhante nos céus, uma explosão de luz alaranjada ofuscando tudo mais que piscava ao seu redor. E me lembrei de como vi o mesmo planeta há duas semanas, nascendo juntamente com a Lua minguante nos céus de Búzios, no Rio de Janeiro. Era o mesmo planeta, lá e cá, mas sem dúvida mais belo lá, flutuando sobre a baía da Ferradura, do que cá, onde surgiu sobre uma floresta de pinheiros.

Para quem cresceu olhando para o Cruzeiro do Sul, um céu sem ele não é tanto um céu quanto um amontoado de estrelas. Belíssimas, mas apenas isso.

Não deveremos aprender nada de novo com a proximidade de Marte. Afinal, sondas já pousaram no planeta, e uma nova esquadrilha se dirige para lá no momento. A aproximação celebrada não tem tanto valor científico quanto cultural. As pessoas têm um enorme fascínio por Marte, o deus da guerra, que por tanto tempo inflou os sonhos de tantos com a possibilidade de vida extraterrestre.

Hoje, sabemos que, se existiu vida lá, foi só em um passado distante, quando Marte supostamente tinha um ambiente mais hospitaleiro aos compostos de carbono que executam alguma forma de metabolismo. Isso não significa que o planeta seja menos interessante.
Vulcões extintos recentemente, vales e enormes montanhas, a presença de água, tudo isso contribui para aguçar a curiosidade. Ao aprendermos sobre Marte estamos aprendendo sobre nós mesmos, sobre a história do Sistema Solar.

E, quem sabe, um dia isso não será feito com espaçonaves brasileiras? Absurdo? Espero que não.

Independência e Marte!


Marcelo Gleiser é professor de física teóri

domingo, 31 de agosto de 2003

O quantum e a onda

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O grande físico dinamarquês Niels Bohr, ao receber a Ordem do Elefante de seu rei, escolheu como brasão o símbolo taoísta do Yin-Yang, o círculo com duas formas simétricas, uma preta e outra branca, cada uma com a semente da outra em seu interior. Como legenda, Bohr usou "Contraria sunt complementa", os opostos se complementam.

Estranha, aparentemente, a escolha de Bohr, um dos pioneiros da física quântica, a física dos átomos, de seus núcleos e das partículas elementares da matéria. Na verdade, a escolha estava bem de acordo com a interpretação de Bohr da estranha realidade do quantum, a chamada Interpretação de Copenhagen.

O desenvolvimento da física quântica nas três primeiras décadas do século passado foi um dos episódios mais ricos e dramáticos da história da ciência.

Até o final do século 19, a física era dominada por duas teorias, a da mecânica e da gravitação newtonianas e a do eletromagnetismo. A mecânica descrevia os movimentos dos objetos sob ação de forças, incluindo a gravidade. O eletromagnetismo descrevia o comportamento das cargas elétricas e ímãs, ou melhor, dos campos eletromagnéticos. Uma das distinções mais claras no mundo clássico era entre uma partícula, objeto localizado no espaço -em geral visualizado como uma pequena esfera-, e uma onda, objeto espalhado pelo espaço, sem uma posição única. Podia-se até dizer que partícula e onda eram antônimos.

Em 1897, o inglês J.J. Thomson descobriu a primeira partícula elementar da matéria, o elétron (elementar significa que a partícula não poderia ser dividida em outras menores). Já a luz era visualizada como uma onda se propagando pelo espaço numa determinada frequência.
Um dos problemas com a física clássica era justamente juntar esses dois objetos em um átomo. Isso porque se imaginava, no início do século 20, que o átomo era formado de um núcleo com carga positiva circundado por elétrons com carga negativa, como um minissistema solar.
Segundo o eletromagnetismo, uma carga elétrica em movimento acelerado -como o elétron girando em torno do núcleo- irradiaria sua energia em ondas eletromagnéticas (como a luz visível). Caso isso fosse correto, o átomo não poderia ser estável, pois o elétron acabaria caindo em espiral sobre o núcleo.

Em 1913, Bohr sugeriu que o átomo não obedecia às mesmas regras da física clássica; uma nova física era necessária. Passos nessa direção já haviam sido dados pelo físico alemão Max Planck, que em 1900 mostrou que átomos emitem e absorvem energia em pacotes, que chamou de "quanta" (plural de "quantum"), e por Einstein, que em 1905 sugeriu que a própria luz (ou radiação eletromagnética) também poderia ser interpretada como sendo composta de partículas (e não só como ondas), que mais tarde receberam o nome de fótons, os quanta de luz.
Com seu átomo, Bohr criou uma nova entidade, que já não cabia na física clássica. Doze anos mais tarde surge a mecânica quântica, que abandonou de vez a formulação clássica do movimento dos objetos. Não que a física clássica esteja errada -ela só não é aplicável aos processos que ocorrem nas dimensões atômicas.

No mundo do muito pequeno, onda e quantum se misturam. E não só na radiação eletromagnética. O elétron e todas as partículas (prótons, nêutrons, neutrinos etc.) podem se comportar tanto como onda quanto como partícula. A distinção só existe em nossas cabeças, incapazes de imaginar algo que pode ser ambos ao mesmo tempo. Os contrários se complementam, coexistem.

A realidade física do objeto de estudo, por exemplo um elétron, irá depender de como a estamos testando: se o experimento for de colisão, ele será partícula, se de difração, ele será onda. Antes de ele ser medido, não podemos nem afirmar o que um elétron é. Ou se ele é.
No mundo quântico, a realidade é determinada através da interação do observador com o observado. Ou seja, é impossível observar o mundo sem interagir com ele e afetá-lo de alguma forma. Até que ponto isso é verdade além do átomo é algo que fica para outro dia.

domingo, 24 de agosto de 2003

Um mundo de cordas

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A física moderna sofre de um sério problema matrimonial: suas duas teorias mais fundamentais, a teoria da relatividade geral de Einstein -que descreve a gravidade- e a mecânica quântica -que descreve os átomos, as partículas elementares da matéria e suas interações-, são incompatíveis.

O problema vem da grande diferença de intensidade entre a gravidade e as outras três forças que regem o comportamento das partículas elementares, a força eletromagnética e as forças nucleares forte e fraca. A gravidade é muito mais fraca, tendo um papel irrelevante na interação entre os tijolos fundamentais da matéria, ao menos nas energias que podemos testar até agora.
Essa diferença entre as forças da natureza leva a uma série de questões. Primeiro, por que ela existe? Deve haver um motivo para tal. Segundo, será que essa diferença não muda quando estudamos o comportamento da matéria a altas energias, bem mais altas do que as que experimentamos em nosso dia-a-dia? Terceiro, será que essas forças e seu comportamento têm alguma relação com o número de dimensões do espaço?

Einstein, durante as três últimas décadas de sua vida, dedicou-se à busca de uma teoria unificada das forças, na época apenas a gravidade e o eletromagnetismo. Segundo ele, seguindo um veio filosófico inspirado por idéias platônicas, a natureza, em sua essência, deve ser simples, e sua ordem, expressa geometricamente. Ou seja, a geometria deve ter um papel básico na descrição da ordem e da simetria que há na natureza. Mesmo nas simetrias que não são aparentes aos olhos, como a simetria matemática entre as forças que regem os processo naturais envolvendo as partículas de matéria.

Einstein não conseguiu obter a teoria unificada, mas seus esforços originaram uma busca que continua até hoje. Sem dúvida, ele mal reconheceria as teorias unificadas atuais. A mais importante, a teoria das supercordas, pressupõe um Universo existindo em dez dimensões (ou 11, dependendo da versão da teoria), onde as entidades fundamentais da matéria não são partículas, mas cordas minúsculas e muito finas.

Essas teorias foram desenvolvidas nos anos 60 para explicar o estranho comportamento dos quarks, que compõem as partículas que interagem através da força nuclear forte, incluindo o próton e o nêutron. Um próton é formado por três quarks que nunca são vistos isoladamente. Pense nele como uma laranja e nos quarks como sementes que jamais podem ser extraídas de seu interior. As cordas foram originalmente criadas para explicar esse comportamento bizarro, chamado de confinamento.

Logo em seguida, nos anos 70, se descobriu que as cordas poderiam ser generalizadas para explicar tanto as partículas de matéria quanto as partículas que transmitem as interações entre as partículas de matéria, as chamadas partículas de força. Um exemplo de partícula de força é o fóton, que transmite a força eletromagnética entre duas partículas com carga. Tais como cordas normais, essas cordas fundamentais podem vibrar de vários modos, cada um deles com uma determinada energia. As partículas existentes são associadas aos vários modos de vibração das cordas.

Um dos modos de vibração das cordas é equivalente às partículas que transmitem a força gravitacional, os grávitons. Ou seja, as cordas podem, em princípio, descrever todas as forças da natureza a partir dos padrões geométricos de suas vibrações. Mais ainda, elas só fazem sentido em dez dimensões, nove espaciais e uma temporal (ou 11, nas "teorias-M", que reúnem os cinco tipos possíveis de supercordas). Isso pode explicar qual a dimensionalidade do espaço.
A resposta que temos, três, é devido à observação de que vivemos em três dimensões. Se existem outras, elas são menores do que podemos detectar. Compreender isso como consequência de uma teoria sobre a estrutura material do mundo é ligar, de modo profundo, o espaço e o tempo com a matéria.

Só resta agora o teste experimental. Qualquer teoria, por mais bela, tem de ser testada. Até agora, não existe indicação alguma de que a teoria das supercordas seja verdadeira. Mas nos próximos anos isso pode mudar, com novos experimentos em andamento capazes de comprovar a realidade das supercordas e resolver o casamento da relatividade com a mecânica quântica. Ou não.

domingo, 17 de agosto de 2003

Sobre o método

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É comum dizer que a ciência busca a verdade. Mas que verdade é essa? O próprio sentido da palavra verdade pode ser discutido: ela é uma daquelas palavras que são mais fáceis de entender do que de explicar. No "Dicionário Aurélio", a primeira definição de verdade é "conformidade com o real". Portanto, a definição de verdade depende do que chamamos de real. Antes de aceitarmos conjuntamente o que é verdade, precisamos concordar com o que seja o real.

Uma opção é definir como real aquilo que percebemos com os nossos sentidos e que pode ser medido. (Aqui se incluem medidas obtidas com instrumentos que ampliam os nossos limitados sentidos, como telescópios, microscópios, amperímetros etc.). A grande vantagem dessa definição é a sua simplicidade: realidade é o conjunto de todas as coisas reais. E verdade é o que está de acordo com essa realidade concreta, mensurável.

Mas essa definição tem alguns problemas. Um deles é com a matemática. Se peço para o leitor imaginar um círculo, imediatamente a figura geométrica ganha vida em sua mente. Mas ela não foi vista, cheirada ou tocada por ninguém. Será menos real por isso? Basear a definição do real no que é perceptível, no que vem exclusivamente de fora para dentro, talvez não seja uma idéia tão boa. Aliás, idéias apresentam outra dificuldade. Apesar de não serem percebidas pelos nossos sentidos, elas não deixam de ser reais. O mesmo com sentimentos. Ninguém vê ou ouve saudades. Mas o sentimento existe. Real não significa necessariamente o que é concreto.

Para simplificar as coisas, podemos separar a definição de real em duas partes: o real objetivo e o subjetivo. Uma cadeira faz parte de uma realidade objetiva: qualquer pessoa sã (outro problema, definir sanidade e sua relação com o que é ou não real) vê a mesma cadeira. (Por não-sã defino aquelas que não acham que a cadeira que 1 milhão de pessoas vêem seja uma cadeira.) A idéia de círculo, mesmo que existente apenas na cabeça das pessoas, faz parte do real objetivo: as pessoas concordam que um círculo é uma figura cujo centro é equidistante de todos os seus pontos. Existe uma relação matemática única para definir a idéia de círculo, o que o torna parte da realidade objetiva.

Já o real subjetivo não é mensurável de forma única. Eis um exemplo. Um grupo de brasileiros mora no exterior há dez anos. Alguns sentem saudades e sabem disso, outros não. O sentimento é real. Mas ele não tem uma realidade objetiva, pois não existe um critério único para a sua medida. A intensidade da emoção é mensurável (talvez usando um aparelho de ressonância magnética funcional seja até possível localizar a região do cérebro responsável pela saudade). Mas ela é subjetiva; passar dez anos fora pode ou não causar saudades em brasileiros. No entanto, todos eles irão concordar com o que seja um círculo com raio de um metro.

As ciências naturais tratam da descrição da realidade objetiva. O que não tem existência concreta pode ser descrito por relações matemáticas únicas. Exemplos não incluem apenas objetos geométricos, como o círculo ou o triângulo. Leis físicas também fazem parte dessa realidade objetiva. Quando se diz que a energia em processos físicos é conservada, podendo ser transformada, mas não criada, está se falando de algo mensurável, a quantidade de energia de um sistema antes e depois de um determinado fenômeno. Por exemplo, um carro antes e depois de uma viagem, onde a energia química armazenada na gasolina é transformada em movimento e calor devido ao atrito com o ar, com o chão e nos seus mecanismos. Essas leis físicas são a melhor aproximação que a ciência pode oferecer da "verdade".

Por que as aspas? Porque nada pode ser afirmado com absoluta certeza. Não existem medidas absolutamente precisas, incluindo aquelas que medem a quantidade total de energia de um sistema antes e depois de um fenômeno qualquer. Pode-se apenas afirmar que, dentro da precisão existente, essa ou aquela lei é válida. Portanto, toda lei física é apenas aproximadamente válida. Isso torna a verdade intrinsecamente humana: afinal, ela avança lado a lado conosco, tornando-se cada vez mais, mas nunca absolutamente, verdadeira.

domingo, 10 de agosto de 2003

Ciência e Hollywood

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Não existe dúvida de que a maior parte do contato das pessoas com a ciência é por meio do cinema. Não de livros, jornais, revistas ou cursos (infelizmente, já que eu dou aulas de ciência e escrevo livros e artigos de divulgação científica), ou de museus e palestras, mas, principalmente, de Hollywood. Falo de centenas de milhões de pessoas, talvez bilhões.

A TV, claro, também é importante. Mas é possível argumentar que, em geral, uma série de ficção científica que faz sucesso na TV acaba, mais cedo ou mais tarde, virando filme. Veja os exemplos das séries "Jornada nas Estrelas", "Arquivo X" e "Perdidos no Espaço", entre muitos outros. Mais ainda, filmes já faziam "divulgação científica" muito antes de a TV existir.

Oitenta anos de ciência em Hollywood contribuíram para a criação de uma percepção pública que oscila entre o venerável e o assustador. A ciência cria e destrói. Novas tecnologias trazem sempre a dupla promessa do bem e do mal. Os filmes, em sua grande maioria, são representações dessa dualidade.

As imagens e idéias vistas nas telas vêm carregadas de significados morais, relacionados, em sua maior parte, a um punhado de mitos clássicos. O mais popular é o mito de Prometeu, o titã que, por ter roubado o fogo dos céus para o benefício da humanidade, foi condenado por Zeus a ter o seu fígado devorado durante o dia por uma águia, só para tê-lo regenerado à noite, em um ciclo que se repete por toda a eternidade.

Uma encarnação recente desse mito nas telas é o filme "Inteligência Artificial", de Steven Spielberg, no qual a humanidade se torna obsoleta graças à sua própria criação, robôs inteligentes e emotivos. Outra é a série "O Exterminador do Futuro", em que máquinas cada vez mais poderosas têm como missão o extermínio dos humanos (ainda bem que temos Arnold Schwarzenegger para nos salvar). Inúmeros filmes sobre apocalipses nucleares exploram o mesmo mito: se nós ousarmos muito com nossas invenções, se roubarmos o segredo dos deuses, seremos punidos, tornando-nos vítimas de nossa própria criação. A criatura destrói o criador.

No entanto, acusar Hollywood de deturpar a ciência apenas para fins lucrativos, usando a mistura de medo e fascínio que as pessoas têm do novo para induzi-las a ir ao cinema, é apenas parte da história, a mais óbvia. Existe também uma relação dual entre o imaginário e o real, que é inspiradora não só para os que vão ao cinema, mas para os que fazem ciência e vão ao cinema. Afinal, se a realidade muitas vezes é mais estranha do que a ficção, a ficção também pode motivar a nossa compreensão do real: o impulso criativo também se alimenta de sonhos. Se tudo que existisse fosse apenas dentro do plausível, a vida seria insuportavelmente chata e monótona. O desconhecido é tão necessário quanto o conhecido. E o que antes era apenas visão pode, um dia, se tornar realidade.

Essa relação simbiótica entre arte e ciência é extremamente frutífera. Um dos meus exemplos favoritos é o romance gótico "Frankenstein". Escrito em 1818 pela inglesa Mary Shelley, o livro inspirou-se na ciência de ponta da época, a descoberta (feita por Luigi Galvani e explorada por Alessandro Volta, o inventor da pilha) da "eletricidade animal" e de sua relação com o movimento muscular e com a vida. O clássico filme homônimo de James Whale, feito em 1931, não só usou toda a maquinaria eletromagnética que existia na época da filmagem como também a ciência que Mary Shelley jamais imaginaria possível: Henry Frankenstein (o nome do inventor louco na peça de Peggy Webling que serviu de base para o roteiro) foi "além do ultravioleta para descobrir o grande raio que trouxe a vida ao mundo".

E eis que, em 1953, o bioquímico Harold Urey e seu orientador, o vencedor do Prêmio Nobel de Química Stanley Miller, usaram descargas elétricas para sintetizar aminoácidos -componentes fundamentais de toda a matéria viva- a partir de compostos químicos simples como metano e amônia, que eles acreditavam estar presentes na atmosfera da Terra primitiva. Descargas elétricas novamente aparecem como o "raio que trouxe a vida ao mundo", dessa vez em um laboratório real. Pergunto-me se eles viram o filme de Whale e resolveram, mesmo que inconscientemente, pôr à prova a sua hipótese.

domingo, 3 de agosto de 2003

A visão de um padre cosmólogo

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Em 1931, o padre e cosmólogo belga Georges Lemaître propôs algo bastante ousado: que o Universo surgiu de um núcleo atômico gigantesco que, ao se desintegrar, deu origem a espaço, tempo, radiação e matéria. Lemaître foi o primeiro a dizer que seu modelo era mais uma sugestão do que uma teoria, quase que uma visão. Sendo padre, teve também o cuidado de separar a sua ciência da sua religião. Não atribuía o evento da desintegração do "átomo primordial" (assim o chamava) a um ato divino. Segundo Lemaître, "teorias cosmogônicas [que tratam da origem do Universo] se propõem a encontrar condições iniciais simples que possam explicar como o mundo presente pode ter resultado da relação natural entre forças conhecidas". Ele não tentou explicar de onde veio o átomo primordial, mas as consequências físicas de sua existência.

O átomo primordial, segundo Lemaître, seria responsável pela matéria e radiação que observamos no Universo. Ele chegou até a propor a existência de "raios fósseis", radiações que sobreviveriam até o nosso tempo, fósseis desta era primordial. Após a 2ª Guerra Mundial, o cientista russo-americano George Gamow, inspirado pelas idéias de Lemaître e pelo desenvolvimento da física nuclear, desenvolveu o modelo que viria a ser conhecido como Big Bang.

Segundo o modelo, o Universo não teria surgido da desintegração de um átomo primordial: a temperatura era tão alta que seria impossível que a matéria se agregasse em sistemas com mais de uma partícula, como em núcleos atômicos (com prótons e nêutrons), átomos (núcleos com elétrons em torno) ou moléculas (conjuntos de átomos).

Ou seja, segundo o Big Bang de Gamow, o estado inicial do Universo seria simples, uma sopa cósmica de partículas, principalmente elétrons, prótons, nêutrons e muitos fótons, as partículas da radiação eletromagnética. O interessante é que o Big Bang também previa a existência de raios fósseis. E, mais interessante ainda, esses raios fósseis -a radiação cósmica de fundo- foram encontrados em 1965, sendo hoje um componente fundamental do estudo da cosmologia, fornecendo um retrato da infância cósmica. Para ser mais preciso, um retrato do Universo 300 mil anos após o Big Bang, ou seja, há 13,8 bilhões de anos. Vamos explorar isso com mais detalhes.

Como na maioria das situações em física, estruturas complexas surgem de uma competição entre forças opostas. Em geral, a estrutura resultante, seja ela um átomo, uma ponte ou uma estrela, surge de um equilíbrio entre tendências opostas, equilíbrio que pode ser estável ou instável. Por exemplo, o núcleo de um átomo radioativo é instável à emissão de radiação. Átomos surgem da atração elétrica entre elétrons e prótons, que têm cargas opostas. Imagine, então, o Universo primordial como uma fornalha, com prótons e elétrons ziguezagueando pelo espaço afora, em meio a um número imenso de fótons. Quanto mais alta a temperatura, mais energéticos os fótons.

Portanto, quando um elétron e um próton se aproximavam o suficiente para se sentirem atraídos eletricamente, lá vinham os fótons e "chutavam" (por interação) os elétrons para longe. Como resultado, enquanto os fótons fossem mais energéticos do que a atração elétrica entre prótons e elétrons, nem mesmo átomos de hidrogênio, os mais simples na natureza, eram formados.

Acontece que, segundo o Big Bang, o Universo, desde a sua origem, se encontra em expansão. Para o Universo-bebê, a consequência mais importante da expansão foi a queda rápida de sua temperatura. Com isso, os fótons foram ficando menos energéticos, até o ponto em que eles já não podiam destruir as ligações entre elétrons e prótons. É possível prever que isto ocorreu quando o universo tinha em torno de 300 mil anos. Formaram-se então os primeiros átomos. Mas o que ocorreu com os fótons?

Incapazes de interagir com elétrons, eles passaram a vagar pelo espaço como fantasmas. São esses os raios fósseis, a radiação cósmica de fundo, que carregam os segredos do Universo primordial. Estudando as suas propriedades, cosmólogos obtiveram, entre outros resultados, a idade do Universo (13,8 bilhões de anos), a sua geometria (plana), a era em que as primeiras estrelas nasceram (200 milhões de anos). A visão de Lemaître foi vindicada, provando que, em ciência, sonhar também é preciso.

domingo, 27 de julho de 2003

Medo da ciência

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O legendário Fausto, em busca de sucesso e vida eterna, barganhou sua alma com Mefistófeles. No final, como em todas as histórias em que o homem tenta ir além de seus limites mortais, as coisas acabam mal. Curioso que, segundo o "Aurélio", o adjetivo "fausto" signifique feliz, próspero. Talvez por um tempo, diria o pobre personagem, ardendo eternamente nas chamas do inferno.

Se a crença em barganhas sobrenaturais está em declínio (ou, pelo menos, deveria), a crença em barganhas naturais está em franca ascensão: o que Fausto tentou obter invocando o diabo, é, talvez, algo que a ciência irá nos dar, num futuro não tão longínquo. A questão é: qual será o preço e quem deverá pagá-lo?

Existem algumas áreas de pesquisa que podem acabar destruindo seus criadores e o resto da humanidade. Talvez o exemplo mais familiar seja o da energia atômica, capaz de gerar enormes quantidades de energia, mas também bombas e desastres ecológicos seríssimos, causados ou não por terroristas.

O leitor astuto percebeu que o título deste ensaio não é "medo de ciência" mas "medo da ciência". Aqui, o medo não é aquele tradicional, tipo "não pude ou quis aprender na escola, muito enrolado, o professor era um louco" etc. É o medo do que a ciência pode causar. É o caso dos enxertos genéticos, que não são a mesma coisa que clonagem. A idéia é interferir no genoma de um embrião ou até antes, selecionando este ou aquele gene como se escolhe canapé em festa.

Por exemplo, o pai, baixinho e careca, que sempre apanhou na escola, escolhe ter filho homem, de 1,90 metro, louro e forte feito um Hércules. Assim, o filhote, quando tiver uns 15 anos, vai poder dar uma surra nos coroas que batiam em seu pai quando criança. Quem sabe até a técnica será desenvolvida a tal ponto que tornará possível escolher os genes de seu filho por catálogo, direto na internet, ou em clínicas de engenharia de gente. Será o caso de se criar uma nova profissão, a de designers de humanos. A diferença essencial entre a engenharia de genes e a clonagem é que, na clonagem, os genes não só são dos pais ou de um doador, como são deixados intactos.

O livro recente do americano Bill Mckibben "Basta: Mantendo-se Humano em uma Era Engenhada", chama a atenção aos perigos dessa e de outras tecnologias emergentes. Segundo Mckibben, existe uma confusão em relação ao uso benéfico da engenharia de genes, como a cura de doenças graves, e a sua absoluta necessidade. Existe outra possibilidade, que evita o uso dos enxertos.

Por exemplo, se os pais são diagnosticados como portadores de genes que apresentam um risco de gerar crianças doentes, a solução não é alterar os genes, mas escolher, dentre vários embriões, aqueles que não têm os genes nocivos. Ou mesmo escolher entre óvulos e espermatozóides: o bebê, com futuro saudável garantido, pode então ser gerado na proveta. Com isso, pode-se evitar que uma criança venha ao mundo com seu futuro destruído, sem que seja necessário desenvolver técnicas de engenharia genética, com todas a suas consequências.
Caso contrário, alerta Mckibben, o preço será a nossa humanidade. Afinal, se for possível "engenheirar" os nossos descendentes, não haverá mais incertezas e inquietudes com relação às gerações futuras, surpresas e desapontamentos. Tudo será conforme o planejado, as crianças do jeito que os pais querem, robôs, frutos de suas fantasias e sonhos.

E o que essa geração irá criar de novo? Muito provavelmente, a destruição da geração de seus pais, que a roubou do acaso. E os que não podem pagar por essas escolhas? Serão uma sub-raça? Não vejo como interromper o progresso científico. Se é proibido aqui, será feito ali, se não oficialmente, clandestinamente. O homem será sempre ganancioso. Espero, apenas, que com conhecimento venha também sabedoria, o que, em geral, não ocorre. A menos que se descubra qual é o seu gene.

domingo, 20 de julho de 2003

O monstro no centro das galáxias

Marcelo Gleiser

Até meados do século passado, galáxias eram ocasionalmente chamadas de universos-ilha. A origem do nome tem a ver com nossas limitações como observadores do cosmo: mesmo em 1924 pensava-se que a nossa galáxia, a Via Láctea, fosse a única existente, uma ilha flutuando no espaço. Quando o astrônomo americano Edwin Hubble mostrou que a Via Láctea era apenas uma entre muitas, o Universo passou a ser visto como uma espécie de oceano, repleto de ilhas galácticas. Hoje, sabe-se que existem centenas de bilhões de galáxias, cada qual podendo ter centenas de bilhões de estrelas. Um dos maiores mistérios é entender o que existe em seu centro.

Existe toda uma taxonomia galáctica; elas aparecem em vários tipos e tamanhos, formatos e composições. As mais interessantes são as que apresentam uma região central onde se detecta grande atividade. Essa detecção se dá por meio de observações astronômicas em várias frequências, da luz visível aos raios X. Isso acontece porque, em geral, não é possível ver o que ocorre no centro de uma galáxia: a confusão é enorme, com quantidades gigantescas de radiação, matéria e nuvens de gás bloqueando a visão.

Mas o que os olhos não vêem outras frequências podem ver. Um exemplo familiar é um incêndio, no qual a fumaça cobre o fogo (ou seja, o centro do incêndio é invisível aos olhos), mas podemos sentir o seu calor, que nada mais é do que radiação no infravermelho. Portanto, um detector no infravermelho "vê" o incêndio com clareza. As galáxias mais interessantes têm o que se chama de núcleo galáctico ativo, uma verdadeira usina de energia, movida pela conversão de energia gravitacional em radiação eletromagnética. No coração dessa usina reside um buraco negro gigantesco, com massas que podem chegar a milhões ou mesmo bilhões de massas solares.

A conversão de energia gravitacional não é difícil de ser entendida: quando alçamos um objeto a uma certa altura, sabemos que, se o soltarmos, ele irá cair livremente. Quanto mais alto o objeto, maior será a sua velocidade ao chegar ao solo (isso quando desprezamos a resistência do ar, que é o caso de interesse aqui). Portanto, a queda do objeto pode ser descrita pela conversão de energia gravitacional (sua atração pela Terra) em energia de movimento, ou energia cinética. No caso, a gravitação da Terra funciona como combustível.

Voltando às galáxias, a presença de um buraco negro super-maciço em seu centro exerce uma enorme força gravitacional sobre tudo que passa perto, digamos algumas dezenas de anos-luz. (O leitor não precisa se preocupar: estamos longe do centro da galáxia, em torno de 26 mil anos-luz. O Sistema Solar não será sugado, como água por um ralo.) Estrelas, nuvens de gás, tudo vai sendo atraído em direção ao monstro que mora no centro, ganhando cada vez mais velocidade, como dita a conversão de energia gravitacional em energia cinética.

Toda matéria é feita de átomos, que por sua vez são compostos de cargas elétricas, os elétrons e prótons (nêutrons têm carga nula). Quando cargas elétricas são aceleradas, elas emitem radiação eletromagnética. É essa a radiação que é observada em várias frequências, na medida em que matéria vai espiralando em direção ao centro galáctico. Quanto maior a aceleração da matéria, maior a frequência da radiação emitida. A emissão de raios X indica eventos extremamente violentos.

Recentemente, astrônomos observaram a existência de estrelas jovens e muito maciças nas vizinhanças do buraco negro central. Isto representa um mistério, já que estrelas maciças vivem por pouco tempo, desaparecendo em explosões conhecidas como supernovas: se elas foram formadas longe do centro, não teriam tempo de chegar lá antes de explodir. Será que é possível haver criação de estrelas perto do monstro central? Veja que paradoxo: o grande destruidor cósmico promovendo a criação de estrelas em sua vizinhança.

Várias explicações vêm sendo propostas, justificando a presença de estrelas jovens no centro galáctico. Nada me surpreenderia se, de fato, o buraco negro fosse o motor criativo; um dos aspectos mais fundamentais da Natureza é a conexão entre destruição e criação, que se manifesta desde as menores estruturas até as maiores. Talvez o centro galáctico seja mais um exemplo disso.

domingo, 13 de julho de 2003

Cozinhando a sopa primordial

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Um dos objetivos da cosmologia, a reconstrução da história cósmica desde os seus primórdios até a era de formação de galáxias e estrelas, tem uma limitação fundamental: infelizmente, não é possível voltar no tempo para examinar em detalhe o que ocorria nessa ou naquela época. A informação tem de ser obtida por dois métodos bastante diversos: o primeiro procura por pistas nos céus, fósseis de eras passadas, como fazem os paleontólogos e arqueólogos aqui na Terra com as suas escavações.

Esse método, tradicionalmente parte da astronomia, tem tido sucesso: por exemplo, resultados recentes do satélite americano WMAP confirmaram algumas das propriedades mais importantes do cosmos. Sua idade, 13,8 bilhões de anos, sua geometria, plana, e a época em que as primeiras estrelas nasceram, apenas 200 milhões de anos após o Big Bang, evento que marcou a origem cósmica. Os métodos astronômicos também têm suas limitações. Eles dependem da observação de luz e radiação detectável por vários tipos de telescópio, dos ópticos (luz visível) aos que observam outras regiões do espectro eletromagnético.

Para observarmos qualquer tipo de radiação, ela precisa viajar livremente pelo espaço, desde a sua fonte até o instrumento de medida. Ou seja, o espaço tem de ser transparente à passagem de radiação. O problema é que, antes de o Universo atingir 300 mil anos, a radiação não podia viajar livremente, pois interagia fortemente com as partículas de matéria existentes então, principalmente elétrons e prótons. O Universo primordial era extremamente denso, dificultando a passagem da radiação. A situação era semelhante a uma corrida com tantos obstáculos que fica impossível completá-la. O cosmo, do Big Bang até 300 mil anos, era opaco: a radiação que existia naquela era não pode nos atingir. (Ao leitor confuso com a idéia de que ver um objeto distante é olhar para o passado, lembre-se de que a velocidade da luz é alta, mas finita: demora um tempo para ela vir de um ponto distante até nós.)
O que nos leva ao segundo método, adequado ao que ocorreu durante os primeiros 300 mil anos de vida do cosmos: reconstruir no laboratório as condições de temperatura e densidade de matéria que existiram durante essas épocas.

A história do Universo primordial é como uma peça de teatro dividida em vários atos, cada qual com seus atores. Indo para trás no tempo, o último ato pertence à física atômica, com a radiação, elétrons e prótons como atores principais. O ato termina aos 300 mil anos, quando elétrons e prótons juntam-se para formar átomos de hidrogênio, e a radiação fica livre, inaugurando a era astronômica discutida acima.

O penúltimo ato pertence à física nuclear, e dura de 0,00001 segundo até 3 minutos após o Bang. No início, prótons e nêutrons não interagem, pois a temperatura é muito alta. Aos poucos ela vai baixando, e são formados os primeiros núcleos leves, compostos de grupos de prótons e nêutrons. Esses dois últimos atos são bem estudados. O desafio está em reconstruir os atos anteriores.

Isso é feito em colisores de partículas, máquinas que aceleraram grupos de partículas de modo que elas se choquem com alvos fixos (ou com outras viajando no sentido oposto) a gigantescas velocidades. Um experimento no Colisor Relativístico de Íons Pesados (RHIC) nos EUA recriou as condições que existiam no cosmos antes da existência de prótons e nêutrons: estas partículas são formadas por outras, conhecidas como quarks. Por sua vez, os quarks interagem entre si através de partículas chamadas glúons (do inglês "glue", ou cola).

A teoria prevê que, antes de 0,00001 segundo, a matéria no Universo era composta por uma sopa de quarks e glúons. Essa foi a sopa primordial cozinhada no RHIC: por breves instantes, a incrível energia da colisão entre núcleos de átomos de ouro recriou o plasma de quarks e glúons que existia na infância do Universo com temperaturas de trilhões de graus. O próximo passo é reconstruir o ato anterior, um passo mais próximo do misterioso primeiro ato.