domingo, 5 de outubro de 2003

Sobre gotas e esferas

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Volta e meia é bom deixarmos de lado assuntos mais exóticos, como buracos negros, Big Bang, mecânica quântica, neutrinos ou supercordas, e pensarmos um pouco sobre as coisas que vemos todos os dias e que passam quase, ou totalmente, despercebidas. É mesmo uma pena que, em nossas vidas apressadas, mal tenhamos tempo de vislumbrar a beleza dos fenômenos simples, de apreciar a elegância das soluções que a natureza encontra para equilibrar função e forma. Por isso, hoje escrevo sobre uma forma que estamos cansados de ver, a gota d'água.

Para tornar o assunto um pouco mais romântico, imagine que você foi acampar com o seu amado (ou amada) na serra, em uma bela noite de junho, quando a temperatura já está mais fria. Como sabem aqueles que acampam, com o sol nascendo fica difícil dormir até tarde. Você sai da tenda para atender às suas necessidades biológicas e percebe que as plantas à sua volta estão todas decoradas por belíssimas gotas de orvalho, hemisférios líquidos resplandecentes, elegantemente simétricos.

Encantado, você começa a pensar nas várias gotas d'água que passam por sua vida, sem que você dê a menor bola: no suor sobre a sua pele, na condensação no chuveiro, no vidro embaçado do carro, nas gotas de chuva, nas lágrimas de sua amada (ou amado) durante um filme triste etc. Então você percebe, de um só golpe, que todas essas gotas têm uma coisa em comum: elas são esféricas ou, quando sobre uma superfície, hemisféricas. A questão passa a ser uma obsessão. Por que a esfera? O que determina essa forma e não outra?

Imagine uma gota d'água, suspensa no ar. A água é composta por moléculas combinando átomos de oxigênio e hidrogênio. A força que mantém as moléculas unidas é a atração elétrica entre os seus átomos integrantes. Uma molécula é eletricamente neutra, isto é, sua carga elétrica total é zero. Mas não exatamente.

O ponto é que a distribuição de carga na molécula nunca é perfeita: existe sempre um excesso (ou ausência) de carga, dando à molécula uma pequena força atrativa conhecida como força de Van der Waals. Isso significa que uma molécula dentro de uma gota é atraída pelas suas vizinhas em todas as direções, o que resulta em uma força total nula. Mas esse cancelamento das forças não ocorre para as moléculas na superfície da gota: afinal, não existem moléculas acima delas para exercer qualquer atração -só de ar, mas o efeito é mínimo. Ou seja, existe um desequilíbrio que faz com que as moléculas na superfície da gota sejam atraídas para seu interior.

Essa atração força as moléculas na superfície a se aproximarem mais, tornando-a mais densa. Esse efeito é conhecido como tensão superficial do líquido e é o responsável pela resistência que a superfície de um líquido oferece contra a sua expansão ou ruptura. Isso explica, por exemplo, por que uma agulha de metal, que é aproximadamente oito vezes mais densa do que a água, pode boiar. Diferentes líquidos têm diferentes tensões superficiais. A do mercúrio é quase seis vezes maior do que a da água, a 20C. Quando a temperatura aumenta e as moléculas estão mais agitadas, a tensão superficial diminui.

E o que isso tem a ver com a esfericidade das gotas? Como a tensão superficial causa uma contração das moléculas na superfície, ela faz com que sua área seja a menor possível. Para um volume fixo (a quantidade de líquido na gota), a forma geométrica com superfície de menor área que existe é a esfera. Portanto, é a tensão superficial que faz com que as gotas tenham essa forma. Se você cutucar a gota bem de leve, você verá que ela vai oscilar um pouco e depois voltará a ter a forma esférica.

A esfera reaparece em vários outros lugares: balões, planetas, estrelas. Nesses casos, as explicações para a forma são outras e ficam para depois. Mas uma coisa é sempre verdade: a esfera é muito comum porque ela constitui a solução mais econômica entre as tensões que existem nos objetos. A natureza, sábia que é, forja esse compromisso na forma mais simétrica que existe.

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