domingo, 19 de dezembro de 2004

Supernova de Kepler faz 400 anos

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

No dia 9 de outubro de 1604, uma nova luz explodiu na noite do hemisfério Norte. Astrônomos europeus voltaram seus olhos para o céu, empolgados e aterrorizados com a aparição. Inicialmente tão brilhante quanto Marte, em alguns dias rivalizou com Júpiter como a luminária mais brilhante da noite após a Lua. Novidades nos céus- cometas, estrelas cadentes, auroras, eclipses- eram vistas com grande suspeita, símbolos de mau agouro, mensageiros de más novas. Em Praga, o Sagrado Imperador Romano, Rodolfo 2º, um excêntrico conhecido por sua desmedida superstição, convocou o seu Matemático Imperial, Johannes Kepler, para uma discussão sobre as implicações astrológicas do objeto. Será que seus dias no trono estavam contados?


Novidades nos céus -cometas, meteoros, aurora, eclipse- eram vistas com suspeita


Kepler viu a nova stella ("estrela nova", como eram chamados tais objetos) e apaziguou os anseios de seu patrono, comparando a luminária a outra de grande importância na história, a Estrela de Belém. "Nem todas as aparições celestes são necessariamente sinal de más novas, Majestade", deve ter dito.

Kepler observou metodicamente a "estrela nova" até março de 1606, quando ela se tornou invisível ao olho nu. (Apenas em 1610, Galileu utilizaria o telescópio em observações astronômicas.) Nem ele nem qualquer outro astrônomo da época ou dos próximos séculos poderia suspeitar a causa da estranha aparição celeste. A "estrela nova" na verdade não é nova, mas velha, uma estrela que está morrendo, o enorme aumento em sua luminosidade sinalizando o fim próximo.

O que ocorreu com essa e outras "estrelas novas" é que sua luminosidade normal era baixa demais para ser vista a olho nu. É como se, de repente, alguém aumentasse ao máximo o volume da música que estava tocando baixo demais para ser ouvida. Hoje, o fenômeno é chamado de explosão de supernova.

Hoje, sabemos que existem dois tipos de supernova. Em um deles, as supernovas de tipo 2, estrelas com massas superiores a oito vezes a do Sol consomem a matéria em seu interior e se tornam incapazes de gerar a pressão que contrabalança a inexorável atração gravitacional.
Sem esse suporte, as estrelas literalmente colapsam: a matéria das partes externas "despenca" em direção ao centro, a pressão e a temperatura aumentam dramaticamente e ela é rebatida explosivamente para o espaço. A estrela se despedaça em átomos de carbono, oxigênio, ferro e outros elementos, semeando o vazio sideral.

Nas supernovas de tipo 1, uma estrela anã branca suga a matéria de sua vizinha até que atinja seu limite de equilíbrio.

A matéria da estrela é submetida a um enorme aumento de temperatura e pressão e termina por explodir, lançando uma enorme quantidade de matéria e energia ao espaço.
Três observatórios espaciais da Nasa focaram recentemente sua atenção na supernova de Kepler, tentando desvendar os seus mistérios: Hubble, Chandra e Spitzer. Ficou determinada sua distância: 13 mil anos-luz. Ou seja, quando a supernova detonou, mal havíamos saído das cavernas. Seus restos formam uma bolha de gás e radiação com 14 anos-luz de diâmetro, inflando a um ritmo de 6 milhões de quilômetros por hora.

Nos últimos mil anos, seis supernovas detonaram em nossa galáxia, a SN1604 sendo a última, e a única que ainda não se sabe se é tipo 1 ou 2. A esperança é que uma análise detalhada das novas observações resolva o mistério. Considerando que explosões de supernova são responsáveis pelo espalhamento de matéria pelo espaço interestelar, desvendar os detalhes dessas explosões é compreender nossas próprias origens. Kepler adoraria saber que somos poeira das estrelas. E que do espaço viemos e para o espaço retornaremos.

domingo, 12 de dezembro de 2004

Vinte anos de supercordas

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Lembro-me como se fosse ontem. Estava no meu terceiro ano de doutorado na Inglaterra, quando meu orientador me chamou na sua sala. Achei que tinha arrumado alguma encrenca, ou errado algum cálculo. Mas meus temores eram infundados. Com seu jeito de lorde inglês, John Taylor disse: "Marcelo, a física teórica não vai mais ser a mesma. John Schwarz, do Caltech (Instituto de Tecnologia da Califórnia), e Mike Green, do Queen Mary College (hoje na Universidade de Cambridge), descobriram uma teoria de supercordas consistente com a mecânica quântica. Se estiverem certos, poderemos construir uma teoria unificada de todas as forças. Eis o artigo deles. Leia-o e amanhã nos falamos."


Passadas duas décadas, as supercordas estão longe de ser uma teoria completa


A idéia de cordas não era nova. Havia sido proposta originalmente para explicar por que partículas chamadas quarks, que compõem prótons e nêutrons, jamais são vistas sozinhas, aparecendo sempre em pares ou trios: os quarks vivem nas extremidades de cordas, tubos de energia com espessura muito pequena. A aplicação de cordas na física subnuclear não funcionou. Mas a idéia era tão elegante que alguns físicos tentaram aplicá-la em outras áreas. Em 1974, Schwarz e Joel Scherk mostraram que as cordas reproduziam não só alguns aspectos da física nuclear mas, também, da gravidade. Se estivessem certos, seria possível usar as cordas para explicar as quatro forças da natureza com uma formulação única: as cordas seriam o arcabouço de uma teoria unificada de campos.

Para tal, um dos conceitos mais antigos da física, que a matéria é composta por partículas fundamentais -os "átomos"- teria de ser abandonado. Mais fundamentais do que partículas são as cordas, que vibram de diferentes modos, como cordas de violão. Assim como diferentes vibrações correspondem a sons distintos, vibrações das cordas correspondem às diferentes partículas que compõem a matéria e às forças que regem as suas interações.
Por exemplo: elétrons e quarks são vibrações de cordas. Fótons, que transmitem a força eletromagnética, e grávitons, que transmitiriam a força gravitacional, também. Portanto, partículas de matéria e de força são todas descritas por diferentes vibrações de cordas fundamentais.

Mas a teoria tinha problemas. O primeiro é que só fazia sentido em espaços com 26 dimensões. Outro, que cálculos de interações entre cordas davam resultados absurdos. Em 1984, Green e Schwarz mostraram que só quando as cordas eram imbuídas com outro conceito, o de "supersimetria", é que a teoria fazia sentido. Daí o nome "supercordas". Mas o que é supersimetria? Os dois tipos de partículas, de matéria e de força, têm propriedades muito diferentes, que causam problemas quando se calcula a probabilidade de elas interagirem. Em um mundo supersimétrico, é possível converter um tipo de partícula em outro, matéria em força e vice-versa. Green e Schwarz mostraram que supercordas dão origem a uma teoria consistente quando existem em dez dimensões (nove de espaço e uma de tempo); melhor do que 26, mas ainda mais que as quatro conhecidas.

Passados vinte anos, as supercordas estão longe de ser uma teoria completa. Não sabemos nem se elas descrevem o mundo em que vivemos. A matemática da teoria é extremamente elegante, mas ainda não foi possível mostrar como ir de dez para quatro dimensões de forma consistente. A idéia é que as dimensões extra são muito pequenas, invisíveis. Céticos dizem que isso jamais será possível, que supercordas são perda de tempo, um sonho geométrico impossível. Espero que a conclusão chegue em menos de 20 anos.

domingo, 5 de dezembro de 2004

A história do Universo em expansão


Gostaria de voltar a uma questão que muitos leitores vêm me pedindo para abordar: a expansão do Universo. O que significa dizer que o Universo está em expansão? Como sabemos disso? É bom começar com a evidência de que o Universo está em expansão.

Primeiro, algo sobre a natureza da luz, já que ela nos dá a pista. A luz visível é apenas uma pequena janela do espectro da radiação eletromagnética. Essa radiação é interpretada como sendo formada por ondas, cada "cor", visível ou não, com o seu comprimento de onda.
Em 1929, o astrônomo americano Edwin Hubble mostrou que a luz proveniente de galáxias distantes exibe um "desvio para o vermelho", ou seja, a luz que elas emitem, quando comparadas com galáxias mais próximas, aparece distorcida, com comprimentos maiores.
Hubble sabia de outro fenômeno em que ondas são distorcidas devido ao movimento de suas fontes, o Efeito Doppler. Quando uma ambulância se aproxima, as ondas de som de sua sirene são desviadas para menores comprimentos (maiores freqüências) e seu som é mais estridente. Quando a ambulância se afasta, o som fica mais grave, com maior comprimento de onda. Todo mundo já presenciou esse efeito.


O Universo também não tem um lado de fora. Ele se estende ao infinito em todas as seis direções


A luz exibe a mesma propriedade: quando sua fonte se afasta, seu comprimento de onda aumenta; quando ela se aproxima, ele diminui. Hubble interpretou o desvio para o vermelho das galáxias distantes como conseqüência de seu afastamento em relação à Via Láctea, a nossa galáxia.

Hubble foi além, mostrando que a velocidade de recessão das galáxias obedecia a uma lei simples: a velocidade de afastamento aumenta em proporção direta com a distância. Entram em cena os físicos teóricos. Modelos matemáticos propostos durante os anos 1920 descreviam um Universo cuja expansão obedecia à mesma lei obtida empiricamente por Hubble.

Esses modelos, baseados na teoria da relatividade geral de Einstein, mostravam que a expansão do Universo era, na verdade, uma expansão da geometria. É aqui que começa a confusão. Como assim "expansão da geometria"? Hubble imaginou que as galáxias eram como detritos de uma explosão, afastando-se de um ponto onde, no passado, todas estavam mais próximas. Para ele, o espaço era fixo, o palco inerte onde a expansão ocorria. Porém, segundo a teoria de Einstein, a expansão tinha de ser interpretada de outro modo: as galáxias não se moviam por si só, elas eram carregadas, feito rolhas em um rio, por uma geometria em que a distância entre dois pontos quaisquer aumentava continuamente.

Como visualizar isso? Imagine uma régua. Marque cada centímetro com um ponto negro. Nesse universo unidimensional, expansão significa que a distância entre dois pontos (o "centímetro") cresce a uma taxa constante. Após algum tempo, os pontos estarão todos mais distantes uns dos outros, não porque tinham movimento próprio, mas porque foram carregados pelo crescimento da régua. O mesmo ocorre com o Universo: as galáxias são carregadas pela expansão e a distância entre elas aumenta.

Mas expansão dentro de onde? De lugar nenhum. No caso da régua, ela se estende ao infinito nas suas duas direções. Não existe um "fim" da régua. E não é necessário viver fora da régua para entender a sua expansão; basta medir as distâncias entre pontos vizinhos. O Universo também não tem um lado de fora. Ele se estende ao infinito em todas as seis direções; o que vemos é apenas parte dele, a que podemos medir.

domingo, 28 de novembro de 2004

Algumas das grandes questões

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Digo "algumas das grandes questões" pois sei que uma lista completa seria impossível e extremamente subjetiva. A minha, claro, e especialmente para a Micro/Macro, é essencialmente científica. Mas, como os leitores verão, as fronteiras reducionistas que definiram e definem as disciplinas acadêmicas estão deixando de fazer sentido.

Existem dois movimentos antagônicos que tentam reorientar o futuro da intelectualidade. (E a ciência, sendo uma geradora de idéias e visões de mundo muitas vezes transformadoras, faz parte integral dessa intelectualidade.) Um deles poderia ser chamado de "consiliente", o termo que o biólogo americano E. O. Wilson usou em seu livro "Consiliência". Segundo Wilson, todos os sistemas de pensamento, sejam eles científicos ou não, são baseados essencialmente no mesmo grupo de leis fundamentais, leis que podem ser extraídas do funcionamento da natureza.
O outro movimento seria o pós-modernismo disseminado, por exemplo, nos círculos de literatura comparada, onde cada leitura é uma leitura, onde a voz do autor é menos importante do que o contexto sociocultural em que ele criou a sua obra e no qual (e por quem) ela está sendo lida.

Se a voz de Wilson, basicamente reducionista, leva a uma construção monótona do conhecimento e, portanto, potencialmente estática, a posição pós-moderna pode ser vista como uma cacofonia em que o pluralismo das vozes leva a um caos de onde pouca informação pode ser extraída.
Haja vista a figura cada vez mais rara do intelectual público. Aliás, na Inglaterra, o biólogo Richard Dawkins foi recentemente considerado o intelectual público de maior importância.
Acho esse um excelente exemplo do que está por vir, o que chamo uma visão sinfônica do conhecimento, baseada na troca construtiva de idéias entre as várias áreas sem a necessidade de uma dominar ou controlar a outra, sem monotonia ou cacofonia. Como fazer isso, ou pelo menos a minha opinião sobre o assunto, fica para outra coluna.

Quero voltar agora a algumas das grandes questões, versão física moderna. Em outubro, vários físicos e biólogos do mundo inteiro se reuniram no Instituto de Física Teórica da Universidade da Califórnia em Santa Barbara para discutir o futuro das ciências naturais.
No final da conferência, David Gross, o diretor do instituto, que recebeu o Prêmio Nobel deste ano, compilou algumas das questões que julgou mais importantes. Delas, citarei as que julgo apontarem para a nova interdisciplinariedade intelectual, as que necessariamente levarão a uma integração do conhecimento.

"Como surgiu o Universo?" O interesse na origem do Universo vai claramente além da cosmologia. A questão é bem mais antiga do que a ciência moderna, tendo sido contemplada pelas várias religiões através da história. O fato de ela fazer parte da lista demonstra o quanto a ciência define hoje nossa visão de mundo.

"Quando computadores serão de fato entidades criativas e inteligentes?" A questão da inteligência artificial está intimamente ligada com a nossa compreensão da inteligência, ou melhor, da emergência da mente consciente. Computadores hoje são extremamente velozes, mas apenas isso; sua atividade é limitada a obedecer comandos. Se não compreendermos o funcionamento do cérebro, ficará difícil construirmos máquinas inteligentes. O futuro desta área combina psicologia e ciências cognitivas, filosofia, neurobiologia, física, química e eletrônica. E muito mais.

Seria impossível tentar compreender o funcionamento do cérebro sem um estudo comparativo da criatividade humana nas artes e nas ciências. O estudo do cérebro é o melhor exemplo da necessidade da integração sinfônica do conhecimento.

"Será que o comportamento de objetos complexos não é determinado exclusivamente pelo comportamento dos objetos menores que os compõem?" Ou seja, será que o todo é maior do que a soma das partes? O cérebro maior do que a soma de seus neurônios e sinapses? Essa questão está ligada à complexidade emergente, a possibilidade de que diferentes níveis de complexidade sejam regidos por leis distintas. O reducionismo aqui é uma ferramenta inútil. Parece-me que a própria ciência está forçando uma nova visão do conhecimento. Já posso escutar os primeiros acordes.

domingo, 21 de novembro de 2004

A forma do espaço

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Espaço é um conceito meio estranho. Invisível aos olhos, mas presente, é onde existimos e nos movemos, onde as coisas acontecem. Olhando pela janela, vejo uma árvore estendendo-se do chão a uns 30 metros de altura, outras à sua volta, crescendo no espaço, preenchendo-o. Tudo começou quando as culturas mais antigas precisaram demarcar distâncias, pôr limites em seus domínios, em suas propriedades.

Daí nasceu a geometria plana, em duas dimensões, as dimensões do solo, da terra onde nascia o trigo e o milho e onde as pessoas se moviam. Claro, sabia-se que uma terceira dimensão existia, ocupada pelas nuvens e pelos pássaros e mesmo por nós, já que nos estendemos verticalmente. Com a compreensão dos ciclos naturais, da passagem do dia e das estações, ficou claro que mesmo os corpos celestes também se movem no espaço, mesmo que muito distantes de nossa realidade.

Dessa percepção nasceu a pergunta que nos fascina desde então: qual é a forma do espaço?
Homero imaginou o espaço como sendo plano "como o escudo de Aquiles", a Terra cercada por água. Para os gregos que o seguiram, o espaço era uma grande esfera, na verdade várias esferas, concêntricas, como em uma cebola, cada esfera carregando uma luminária celeste: a Lua, os planetas Mercúrio e Vênus, o Sol, Marte, Júpiter, Saturno e, finalmente, a esfera das estrelas. No centro, a Terra, inerte, também esférica.

No final da Idade Média, a Igreja Católica se apropriou desse modelo, especialmente em sua versão aristotélica, adicionando outra esfera, a morada de Deus, a Esfera Empírea. Entre ela e as outras oito estava a esfera chamada "Primum Mobile", a primeira causa, a que gerava o movimento que iria então incitar todas as outras esferas interiores a girar, carregando seus planetas e estrelas. A menos que se recorra a uma ação divina, milagrosa, capaz de criar algo do nada, é necessária a causa primordial que, com o passar do tempo, foi tendo versões diferentes.
Esse Universo fechado foi substituído pelo infinito de Isaac Newton no século 17. Newton argumentou que, em um universo finito, a atração gravitacional mútua entre os corpos celestes causaria uma tal instabilidade que a massa cósmica terminaria embolada no centro. Em um Universo infinito em todas as direções, as massas poderiam se equilibrar, mesmo que aqui e ali existisse algum desequilíbrio. Segundo Newton, Deus interferiria nesse Universo, garantindo o seu equilíbrio até o dia do Juízo Final.

A transição de um Universo fechado a um infinito causou grandes transtornos existenciais. Foi como ter perdido o teto da nossa casa, uma sensação de abandono, da enorme pequenez do ser humano, isolado em um planeta em um Universo sem fim.

Olhar para a noite estrelada era olhar para o infinito, para o incomensurável, para a noite eterna. Por isso tantos gostam ainda de pôr Deus no céu, para tapá-lo, ao mesmo tempo tapando também o seu vazio existencial. Mas logo surgiu um paradoxo, o de Olbers, para aumentar a inquietude dos curiosos: se o Universo é infinito, deve haver infinitas estrelas.

Nesse caso, a noite seria impossível, já que estaríamos expostos ao brilho delas todas. Será que o Universo era então finito? A questão só foi resolvida quando se descobriu que estrelas nascem e morrem e, portanto, não brilham para sempre. Segundo, que o Universo não é estático, está em expansão, o que tem como efeito diluir a luz das estrelas. Um Universo em expansão é um com um início. Nesse Universo com uma história, não pode haver infinitas estrelas.

Mas será que podemos mesmo afirmar que o Universo é infinito? O problema vem do fato de a velocidade da luz, a velocidade máxima em que recebemos informação, ser alta, mas não infinita. Se o Universo tem 14 bilhões de anos, podemos "enxergar" o que existe a no máximo 14 bilhões de anos-luz, o horizonte cósmico. Dentro dele o espaço tem uma geometria plana em três dimensões. Além dele, nada podemos afirmar, ao menos por enquanto. Continuamos cercados pelo escudo de Aquiles, se bem que o escudo cresceu bastante.

domingo, 14 de novembro de 2004

Uma lua titânica

Marcelo Gleiser
colunista da Folha

Na mitologia grega, os titãs eram os senhores supremos do Universo, seres gigantescos de grandes poderes que foram destronados por Zeus, ou, para os romanos, por Júpiter. E Titã, a maior lua de Saturno, é a segunda maior de todo o Sistema Solar, perdendo apenas para Ganimedes, apropriadamente a maior lua de Júpiter. Mas a cor avermelhada de Titã, que pode ser vista com poderosos telescópios terrestres, apontava para a existência de algo que Ganimedes não tem: uma atmosfera. Na década de 1970, cientistas da Nasa planejaram a missão Voyager-1 para que a sonda passasse perto da misteriosa lua. E os resultados obtidos em 1980 despertaram ainda mais a curiosidade dos cientistas. Titã merecia uma nova visita, com mais calma.

A missão Cassini foi desenhada especialmente para sobrevoar Titã várias vezes. Para ser preciso, 45 vezes, seus instrumentos colhendo dados a cada passagem, incluindo imagens por radar (ondas de rádio que vão até a superfície e voltam) e câmeras de infravermelho e luz visível. Desde o início, a missão provocou polêmica: seus reatores usam plutônio e temia-se que um acidente durante o lançamento pudesse poluir a atmosfera terrestre com o material altamente radioativo. Mas o acidente não ocorreu e, no dia 15 de outubro de 1997, a Cassini iniciou sua viagem de sete anos até Titã.

Vale a pena uma pausa para apreciar o feito tecnológico que é uma missão dessas. Sete anos no espaço, sua trajetória precisamente calculada para passar perto de Vênus duas vezes, da Terra uma vez (em 1999) e finalmente de Júpiter, ganhando velocidade a cada aproximação até ser catapultada ao seu destino, Cassini é um sofisticado robô capaz de operar sozinho e de enviar os dados coletados a antenas receptoras na Terra. Para completar, a Cassini transporta a tiracolo uma outra sonda chamada Huygens -homenagem ao holandês que descobriu Titã em 1655. A sonda Huygens, construída pela Agência Espacial Européia, cairá em janeiro de pára-quedas na atmosfera de Titã, fazendo análises e medidas de sua composição química e, se sobreviver ao impacto, de seu solo também. Imagine o que Huygens diria se soubesse que uma máquina humana com o seu nome viajou mais de 1 milhão de quilômetros até a lua que ele descobriu há 350 anos. Pergunto-me se podemos imaginar algo mais mágico e fascinante do que isso.

Os dados da Voyager-1 sugeriram não só que Titã tem um atmosfera mais densa do que a da Terra, mas que ela é rica em nitrogênio (em torno de 90%), argônio (em torno de 10%) e, mais interessante ainda, metano, uma substância cuja molécula é composta de carbono e hidrogênio. Numa lua maior do que o planeta Mercúrio, a detecção de compostos de carbono e hidrogênio (hidrocarbonetos) é sempre motivo de grande especulação. Lembre-se de que carbono é o elemento químico essencial para a vida. Será que Titã, com sua temperatura frígida de 180C, tem lagos e oceanos ricos em hidrocarbonetos, reproduzindo a sopa prebiótica que existiu na Terra há bilhões de anos? Finalmente, após 24 anos, essas perguntas serão respondidas.

Os primeiros dados enviados pela Cassini mostram que ao menos a pequena região estudada na passagem inicial é "coberta por materiais orgânicos", disse Ralph Lorenz, da Universidade do Arizona. As suspeitas originais parecem estar corretas. Cientistas da Nasa afirmam que as imagens obtidas por radar sugerem mesmo a existência de lagos compostos por etano ou metano, os dois hidrocarbonetos mais simples. Saliências sinuosas espalham-se pela imagem como tentáculos, sugerindo que a superfície alterne partes sólidas e líquidas, ou mesmo que pedaços de hidrocarbonetos congelados flutuem em mares de metano. As condições atmosféricas sugerem a existência de precipitações líquidas, chuvas de metano. Um cientista chegou a afirmar que as protuberâncias vistas nas imagens aparentam ondas em lagos de hidrocarbonetos. Durante os próximos quatro anos, a Cassini passará mais 44 vezes por Titã, revelando uma realidade muito mais estranha do que a imaginação.

domingo, 7 de novembro de 2004

A criatividade do caos

Marcelo Gleiser
colunista da Folha

Em 2002, a pesquisadora americana Susan Lindquist, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts, publicou um artigo surpreendente na revista "Nature". Usando a mosca da fruta, ela demonstrou que a proteína Hsp90 tem um papel essencial na evolução genética das espécies. Modificando sua estrutura, Lindquist criou monstros horrendos: moscas com múltiplos olhos, pernas saindo da barriga, corpos distorcidos etc. Ela concluiu que isso ocorre devido à capacidade da Hsp90 de regular mutações aleatórias nos genes das moscas. A proteína age como uma espécie de seletor de mutações, mantendo a homogeneidade da espécie. Mexer com ela é como abrir a caixa de Pandora, deixando escapar todos os males, criando monstros genéticos.
O experimento mostra duas coisas. Primeiro, que a vida usa controles moleculares para se preservar; sem o policiamento da Hsp90, a mosca da fruta teria o seu futuro arruinado. Segundo, que a existência de flutuações aleatórias é parte fundamental do mecanismo da vida. Sem esse caos molecular a vida seria incapaz de se reinventar. E a única razão para o sucesso da vida na Terra é justamente a sua maleabilidade, a sua capacidade inerente de se redefinir quando necessário.
Revisitando a história da vida na Terra, fica claro que as condições ambientais mudaram constantemente. Idades do gelo, outras mais quentes, erupções vulcânicas violentas a ponto de mudar a composição química da atmosfera, impactos com asteróides e cometas, enfim, desastres e cataclismos de caráter global que ameaçaram todas as formas de vida. No entanto, a vida não só perseverou como mostrou tremenda versatilidade. As novas pesquisas dos mecanismos moleculares da vida mostram que essa versatilidade é produto de um delicado equilíbrio entre o caos, a desordem das flutuações atômicas e filtros e sistemas de controle como a Hsp90.
O interessante é que, de tanto em tanto, esses filtros moleculares permitem que mutações escapem, proporcionando uma variabilidade essencial à preservação da espécie. Quando o ambiente muda, por exemplo, um asteróide colide com a Terra, se mutações não ocorrerem de modo a facilitar a adaptação da espécie às novas condições, ela será extinta em poucas gerações. Ou seja, o fato de o filtro não ser "perfeito", deixando uma ou outra mutação escapar, garante a preservação da espécie. Nossa existência depende de imperfeições.
Claro, o sistema parece mais com um jogo de roleta do que com um mecanismo pré-desenhado. Grande parte das mutações é nociva à espécie; lembre-se das moscas com pernas saindo pela barriga. Mas, de vez em quando, uma mutação ajudará na adaptação. Caso não existissem essas flutuações, a vida não teria a menor chance. O equilíbrio aleatório entre ordem e desordem determina a sua adaptabilidade em um mundo em constante transição.
Essa aleatoriedade genética foi demonstrada também em bactérias fluorescentes. Em 2002, o biólogo Michael Elowitz mostrou que a leitura do DNA das bactérias não era perfeita, mas sofria flutuações que ele chamou de "ruído intrínseco". Misturando o DNA das bactérias com o de vaga-lumes, Elowitz criou bactérias fluorescentes, misturando genes responsáveis pelas cores vermelha e verde. Ele esperava que a maioria brilhasse em um tom amarelado, combinando o verde e o vermelho de forma ordenada. Mas, para sua surpresa, surgiram bactérias de inúmeras cores, do turquesa ao laranja. Novamente, o ruído aqui era de natureza molecular.
A desordem molecular tem papel crucial na variabilidade da vida. Sem ela estaríamos fadados a uma mesmice padronizada, um mundo estagnado. A vida é essencialmente resultado de criatividade anárquica.

domingo, 31 de outubro de 2004

Ciência e Hollywood

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Infelizmente é verdade: explosões não fazem barulho algum no espaço. Não me lembro de um só filme que tenha retratado isso direito. (Pode ser que existam alguns, mas se existirem não fizeram muito sucesso.) Sempre vemos explosões gigantescas, estrondos fantásticos. Para existir ruído é necessário um meio material que transporte as perturbações que chamamos de ondas sonoras. Na ausência de atmosfera, ou água, ou outro meio, as perturbações não têm onde se propagar. Para um produtor de cinema, a questão não passa pela ciência. Pelo menos não como prioridade. Seu interesse é tornar o filme emocionante, e explosões têm justamente este papel: roubar o som de uma grande espaçonave explodindo torna a cena bem sem graça.

Recentemente, o debate sobre as liberdades científicas tomadas pelo cinema tem aquecido. O filme "O Dia Depois de Amanhã" e seu cenário de uma Idade do Gelo ocorrendo em uma semana em vez de décadas ou, melhor ainda, centenas de anos, levantaram as sobrancelhas de cientistas mais rígidos, que vêem as distorções com desdém, e esbugalharam os olhos dos espectadores que pouco ligam se a ciência está certa ou errada. Afinal, cinema é diversão.

Tudo começou em 1902, quando o francês Georges Méliès dirigiu o curta "Uma Viagem à Lua". No filme, seis aventureiros chegam até a Lua em uma cápsula disparada por um canhão. Após sua chegada, os tripulantes são raptados por habitantes lunares com intenções nada amistosas. Os heróis escapam, empurram a espaçonave da beira da Lua de modo que ela caia sobre a Terra, bem sobre o oceano Atlântico. Tudo no filme está errado, claro. A aceleração de um tiro de canhão potente o suficiente para levar pessoas até a Lua as mataria quase que imediatamente. Cair da Lua é impossível. Desconto a questão dos habitantes lunares, pois na época isso não era sabido. Esse filme, o primeiro de uma nobre linhagem indo até "O Dia Depois de Amanhã", exagera, inventa ciência para criar um enredo emocionante. A questão então é o que devem fazer os cientistas a respeito, se é que devem fazer algo. Cabe a eles tentar "consertar" a ciência dos filmes, escrevendo cartas e artigos sobre o assunto? Será que faz sentido criticar a indústria cinematográfica pelos erros crassos?

Até recentemente, eu defendia a posição mais rígida, que filmes devem tentar ao máximo ser fiéis à ciência que retratam. Claro, isso sempre é bom. Mas não acredito mais que seja absolutamente necessário. Existe uma diferença crucial entre um filme comercial e um documentário científico. Documentários devem retratar fielmente a ciência, educando e divertindo a população. Filmes não têm um compromisso pedagógico. As pessoas não vão ao cinema para serem educadas, ao menos como via de regra. Claro, filmes históricos ou mesmo aqueles fiéis à ciência têm enorme valor cultural. Outros educam as emoções por meio da ficção. Mas se existirem exageros, eles não devem ser criticados como tal. Fantasmas não existem, mas filmes de terror, sim. Pode-se argumentar que, no caso de filmes que versam sobre temas científicos, as pessoas vão ao cinema esperando uma ciência crível. Isso pode ser verdade, mas elas não deveriam basear suas conclusões no que diz o filme. No mínimo, cinema pode servir como mecanismo de alerta para questões científicas importantes: o aquecimento global, a inteligência artificial, a engenharia genética, as guerras nucleares, os riscos espaciais como cometas ou asteróides. Mas o conteúdo não deve ser levado ao pé da letra. A arte distorce para persuadir. E o cinema, com efeitos especiais espetaculares, distorce com enorme facilidade e poder de persuasão.

O que os cientistas podem fazer, e isso está virando moda nas universidades americanas, é usar filmes para educar seus alunos sobre o que é cientificamente correto e o que é absurdo.
Ou seja, usar o cinema como ferramenta pedagógica. Os alunos certamente prestarão muito mais atenção e será possível educar a população para que, no futuro, um número cada vez maior de pessoas possa discernir o real do imaginário.

domingo, 24 de outubro de 2004

Liberdade Assintótica

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Quando o Prêmio Nobel de Física deste ano foi anunciado, não pude deixar de sorrir. Os três, Frank Wilczek, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), David Gross, do Instituto de Física Teórica (IPT) da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, e H. David Politzer, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), foram premiados pela teoria que desenvolveram explicando o misterioso comportamento dos quarks, as partículas que compõem prótons, nêutrons e centenas de outras menos famosas. Sorri porque o prêmio era esperado há muito pela comunidade de físicos. E pelos premiados.

Em 1988, iniciei meu pós-doutorado no ITP, hoje dirigido por David Gross. Na época, ele ainda estava em Princeton e era Frank Wilczek quem trabalhava no ITP. Participava sempre de discussões com Wilczek, um desses raros talentos da física que pesquisam em várias áreas. Fora sua famosa gargalhada, que vai de fora para dentro como se ele estivesse se asfixiando, Wilczek era também conhecido pelo seu nervosismo, que atingia o clímax justo em outubro, quando o Nobel é anunciado.

Em uma manhã de outubro de 1988, caminhava pelo corredor do ITP conversando com Wilczek quando apareceu David Schramm, um astrofísico de Chicago que também almejava o cobiçado prêmio. Schramm, que morreu tragicamente pilotando seu avião sobre as montanhas do Colorado, veio todo animado, exclamando que Leon Lederman, um físico experimental muito seu amigo, havia ganho o Nobel.

A expressão de Wilczek dizia tudo: um sorriso amarelo, derrotado e nada amistoso. As pessoas que o conhecem melhor dizem que todo outubro era a mesma coisa. Wilczek mal podia dormir, esperando pelo tal telefonema de Estocolmo. Bem, finalmente ele pode descansar em paz.
O prêmio é mais do que merecido. Durante os anos 1950, experimentos mostraram um número enorme de partículas ditas elementares, os hádrons. Todos eles, que incluem o próton e o nêutron, têm algo em comum: interagem entre si por meio da força nuclear forte, a mesma responsável pela coesão do núcleo atômico.

De fato, se o núcleo atômico é feito de prótons, com carga elétrica positiva, e nêutrons, sem carga, e cargas iguais se repelem, o que evita a sua dissociação? A resposta, encontrada nos anos 1930, é que outra força atua no núcleo como um tipo de cola, a força nuclear forte.
Em 1963, Murray Gell-Mann, do Caltech, propôs que os hádrons fossem compostos por partículas chamadas quarks. Tal como os 92 átomos são compostos por apenas três partículas (elétrons, prótons e nêutrons), os hádrons seriam produto de combinações de seis quarks. O único problema é que, ao contrário de elétrons ou prótons, ninguém jamais observou um quark isolado. Como explicar isso?

Basicamente, os quarks não podem existir livres, fora dos hádrons; eles são prisioneiros eternos, como se fossem sementes que jamais saíssem de dentro das frutas. Imagine que os três quarks dentro de um próton fossem ligados um ao outro por molas. É fácil separar duas massas ligadas por uma mola. Mas vai chegar um ponto em que a mola arrebenta. Se tentarmos separar os quarks dentro do próton, a força atrativa entre eles mantém-se a mesma e mais energia é necessária. Eventualmente, a "mola" se rompe e um novo par de quarks aparece no ponto de ruptura.

O mesmo ocorre com uma corda ou um ímã. Não podemos isolar um lado da corda ou um pólo de um ímã, quebrando-o ao meio; ficamos com dois ímãs menores na mão, cada um com seus dois pólos.

Quando prótons colidem com elétrons muito energéticos, a colisão ocorre com um de seus três quarks. Experimentos mostram que esse quark comporta-se com se estivesse livre, viajando dentro do próton. Gross, Politzer e Wilczek mostraram que, em altas energias, a força atrativa entre os quarks é desprezível. Os quarks ganham liberdade, uma liberdade assintótica, mesmo que efêmera.

quarta-feira, 20 de outubro de 2004

Entrevista Istoé 20/10/2004

A alma não existe
Marcelo Gleiser

Ganhador de dois Jabuti, físico diz que a ciência está em constante mutação e que é um erro buscar na religião as respostas para o mundo
Darlene Menconi
Vidal da Trindade/AE
• Mestre em física, doutor pelo King’s College da Inglaterra
• Professor catedrático da Faculdade Dartmouth, em New Hampshire (EUA)
• Prêmio Jabuti de 1998 e 2002 pelos livros A dança do universo e O fim da Terra e do céu
• Bolsista da NSF, fundação de ciência americana, e da Nasa, agência espacial americana
• Idade: 45 anos

Certa vez, a escritora Raquel de Queirós justificou seu ateísmo dizendo que a culpa não era sua. “Deus me deu pouca fé”, explicou. Do mesmo mal padece o físico e escritor Marcelo Gleiser, que, apesar de jovem, é uma das principais vozes da divulgação científica. Tanto que recebeu, das mãos do ex-presidente Bill Clinton, um prêmio por sua dedicação ao estudo e à pesquisa em cosmologia. De origem judaica, Gleiser frequentou a sinagoga quando pequeno, mas não achou inspiração nas tábuas divinas.

Aos 45 anos, e há 22 anos vivendo nos EUA, ele não perdeu o sotaque carioca. Muito menos o prazer em buscar respostas para os mistérios do universo, da vida e da mente. Conforto e paz de espírito ele afirma encontrar na natureza, no amor e nos filhos, de 15, 11 e oito anos. Eleitor de John Kerry, a quem doou dinheiro para a campanha, Gleiser não aposentou os planos de retornar ao Brasil. Professor de física e filosofia natural de uma das mais conceituadas faculdades americanas, a Dartmouth, em New Hampshire, ele ganhou dois prêmios Jabuti por seus livros sobre o universo e o embate entre ciência e religião, um de seus assuntos preferidos. Gleiser acaba de escrever, em inglês, um romance sobre o astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), que conviveu com o italiano Galileu Galilei, condenado pela Igreja por defender que o Sol, e não a Terra, era o centro do universo. “Sou profundamente místico”, diz Gleiser, cujo hobby é a pesca com isca artificial (fly fishing). “É uma atividade zen, em que é preciso estar em contato com a água, o céu, o peixe e o sol”, explica o físico, que falou a ISTOÉ antes de embarcar para uma série de palestras no Brasil.

ISTOÉ – Por pressão religiosa, algumas escolas do Rio de Janeiro não ensinam a teoria da evolução, na qual humanos descendem de macacos. Qual sua opinião sobre isso?
Marcelo Gleiser –
É um absurdo. Em Kansas (EUA), houve muito debate sobre isso e se decidiu que a teoria da evolução seria ensinada junto com o texto bíblico, como uma alternativa. Depois de dois anos, eles reverteram a decisão e voltaram a ensinar a teoria da evolução como a única válida para descrever como os animais evoluíram na Terra. O Estado de Ohio vive discussão parecida. Não se pode apresentar religião como a descrição científica do mundo. Isso é o que se fazia há 500 anos. É justamente contra esse dogmatismo da Igreja que Galileu lutou. É perigoso usar como científico qualquer texto religioso criado para servir de parâmetro ético e moral das pessoas.

ISTOÉ – Qual a linha que divide ciência e religião?
Gleiser –
Elas são complementares. A ciência se propõe a descrever o mundo natural, com a maior precisão possível. Não se propõe a ser bengala espiritual. Se alguém querido morre, ela não tem nada a dizer. Nisso, a religião é imbatível. Essa é a razão pela qual, mesmo numa sociedade tão tecnológica e científica, ainda existe tanta gente religiosa. O ser humano é um ser espiritual. As pessoas vão em massa às igrejas, sinagogas e mesquitas procurar consolo, espírito de comunidade e fraternização. Já a ciência é uma narrativa que evolui. Sua função é descrever o mundo e explicar nosso papel dentro dele.

ISTOÉ – Sendo assim, sempre haverá meias-verdades?
Gleiser –
O universo em que um cara do século XVI vivia, quando a Terra era o centro de tudo, é diferente do século XVIII, quando o Sol já era o centro, e é diferente do nosso universo, que não tem centro e se expande em todas as direções. Não há verdades finais em ciência. O mundo está sempre se transformando. Acho possível encontrar espiritualidade na descrição científica do mundo. Sou do time do (Albert) Einstein, que dizia que esse questionamento sobre o desconhecido é essencialmente espiritual. Não significa acreditar numa entidade sobrenatural controlando o mundo. Ou na existência da alma e de outras coisas além das leis da natureza.

ISTOÉ – Na sua opinião, não existe alma?
Gleiser –
Eu adoraria ter alma e, quando meu corpo pifasse, poder renascer em outro corpo. Histórias de espiritismo, de vida após a morte e as várias versões das religiões para isso são mecanismos que criamos para lidar com nosso problema mais fundamental, que é a mortalidade. Vários amigos espíritas dizem que a maneira científica de pensar o mundo é apenas uma. Existem outras. Usar a ciência para justificar a existência ou não da alma nunca vai dar certo. No século XVII, o que se chamava de eu, a pessoa, vinha da alma. Quando a pessoa morria, a alma ia embora e o corpo ficava. Toda a noção de ser humano era relacionada à existência ou não dessa faísca divina. Aristóteles achava que a alma ficava no coração, assim como os egípcios. Não se sabia que o centro era na cabeça. Hoje, a gente sabe que não tem alma e que o cérebro é um organismo extremamente complexo.

ISTOÉ – Como se pode ter conforto diante dessa visão?
Gleiser –
Ninguém aceita a mortalidade. O que a gente faz é se contentar com explicações e se encantar mais ou menos com as possibilidades sobrenaturais. Tem aqueles que se encantam muito e vão a terreiros de macumba, recebem espírito, etc. E tem os que se encantam menos, como eu, que não acreditam nesse mundo paralelo. A questão entre ciência e religião é parte fundamental do meu próximo livro, um romance histórico baseado na vida do astrônomo alemão Johannes Kepler, que viveu no início do século XVII. Ele é famoso por descobrir que as órbitas planetárias são elípticas e não circulares. Sua vida é um dos episódios mais fascinantes da ciência. Ele tinha um pé na Idade Média e seus misticismos, e outro na modernidade e na revolução científica. O livro conta a história de sua vida, em uma Europa imersa no caos, dividida por guerras religiosas entre católicos e protestantes, bruxas sendo torturadas e queimadas, Galileu julgado pela Inquisição na Itália. De muitos modos essa realidade retrata os dias atuais, com disputas religiosas, intolerância e iniquidade social.

AE
"Histórias de espiritismo, de vida após a morte são mecanismos que criamos para lidar com nosso problema fundamental, que é a mortalidade"
ISTOÉ – Como é possível comparar os dias atuais com a Idade Média, quando as disputas acabavam na fogueira?
Gleiser –
Por volta de 1600, a Europa estava dividida entre protestantes e católicos. Entre os protestantes, brigavam luteranos e calvinistas. As pessoas morriam feito moscas. No século XVII, a Igreja Católica tinha muito poder na Itália e algum na Alemanha e na Boêmia, parte do que é hoje a República Tcheca. Quem tinha terras, dinheiro e poder eram barões e condes protestantes. Havia uma disputa de fundo religioso que na verdade era pelo controle das terras. Agora é o cristianismo contra o islamismo. Temos os EUA como potência imperialista tentando impor seus valores morais. Parece uma cruzada ideológica, mas é uma tentativa de colocar pé firme no Oriente Médio, não só em Israel, mas numa potência como o Iraque, onde está o petróleo. Por trás dos grandes conflitos religiosos há sempre o engenho político e econômico.

ISTOÉ – Qual o efeito da intolerância no pensamento científico?
Gleiser –
Um exemplo importante é o que chamo das “três origens”, do universo, da vida e da mente. Todas as religiões, de uma maneira ou de outra, têm respostas para essas perguntas. A mais conhecida, que vem do Velho Testamento, é a criação do mundo e a idéia da alma, que dá consistência ao espírito. Diferentes religiões têm diferentes explicações. Todas, por natureza, são inflexíveis. Não se pode questionar a palavra divina. Isso é o dogma da religião. A informação vem de cima para baixo, não tem conversa. Os padres, sacerdotes, rabinos e monges são intérpretes da verdade divina. Na ciência, a estrutura é horizontal, o conhecimento pode ser descoberto por qualquer pessoa e, em princípio, há um fórum para discutir idéias. Quando um cientista tem uma idéia sobre a origem do mundo, ele ou ela escreve artigos e vai a conferências nas quais busca provar sua veracidade. Se for provada errada, joga-se a idéia no lixo. Existe uma evolução construtiva do saber.

ISTOÉ – Seria possível explicar fatos religiosos como o dilúvio e a Arca de Noé?
Gleiser –
Acho perfeitamente razoável tentar justificar fatos bíblicos usando a pesquisa científica. Afinal de contas, os livros da Bíblia foram escritos por pessoas que relatavam uma história, carregada de simbolismo. O grande perigo é usar textos religiosos como científicos. Se alguém fala que está escrito na Bíblia que o mundo tem 6.775 anos porque ali foi a gênese e Abraão foi o primeiro patriarca, isso é um erro, obscurantismo. A Terra tem em torno de 4,6 bilhões de anos. Não há dúvida disso.

ISTOÉ – Mais de 90% do universo é composto de uma força misteriosa. Será que Shakespeare estava certo ao dizer que “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”?
Gleiser –
A chamada energia escura passou a dominar o universo há mais ou menos cinco bilhões de anos. Ela não tem um papel na origem do cosmo. Essa descoberta foi em 1998 e é um ótimo exemplo de como as coisas mudam. Foi uma surpresa para todo mundo. Não sabemos o que é essa tal energia escura, nem como será o futuro do universo. O paradoxo é que a natureza é muito mais esperta do que nós. Quanto mais se sabe, mais há o que descobrir. Outras perguntas surgem, e é isso o que torna a ciência emocionante. Não há uma reta final, só a contínua busca pelo conhecimento.

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ISTOÉ – Só que a ciência também virou um ramo de negócios, com lucratividade e retorno financeiro.
Gleiser –
É importante separar ciência das aplicações tecnológicas da ciência. A nanotecnologia, a biotecnologia, a microeletrônica, o GPS, os celulares cada vez mais incríveis, a internet, tudo isso é aplicação da ciência para o mercado econômico. O mecanismo que gera esse tipo de aplicação não tem nada a ver com a exploração da natureza. São universos diferentes. Essa apropriação da tecnologia pelo mercado é um lado da ciência, e é filosófica e culturalmente menos interessante do que o lado da ciência que gera conhecimento sobre o mundo e as pessoas. Quando falo do romantismo do cientista, falo do lado explorador, de pessoas que se confrontam diariamente com o não-saber. Somos os descobridores da natureza, os que vão ampliar as fronteiras do mundo. E olha só quantas fronteiras têm sido descobertas através de telescópios, microscópios, mundos antes invisíveis. Há uma beleza, uma simplicidade e mesmo uma elegância com que a física descreve a natureza.

ISTOÉ – E por que é tão difícil entender o que dizem os cientistas?
Gleiser –
O mesmo princípio usado para fazer pizza serve para descrever como nascem as galáxias. E também para explicar como uma patinadora dá piruetas no gelo. Ela começa com os braços estirados, traz os braços para o peito e gira mais rápido. É o mesmo princípio que explica como se gira a massa da pizza no dedo para ela ficar achatada nos pólos e se alongar no equador, e é assim que nasceu o sistema solar e as galáxias. Não tem poesia e elegância quando se consegue descrever tantas coisas diferentes com as mesmas idéias? O que falta no ensino da física é mostrar sua relação com o mundo em que se vive. Quando se escreve uma fórmula no quadro-negro, ninguém dá bola. Informar o público é fundamental para nossa sobrevivência em um contexto global cada vez mais dependente da ciência e suas aplicações.


Vidal da Trindade/AE


"O mesmo princípio
usado para fazer pizza serve para descrever como nascem as galáxias e como a patinadora dá piruetas no gelo"

ISTOÉ – Um dia vamos habitar outros planetas, como Marte?
Gleiser –
Não há outra saída. A Terra tem os dias contados. Vivemos num sistema que tem uma estrela, o Sol. Como toda estrela do universo, um dia ela vai pifar e se tornar uma gigante vermelha. Vai inchar, engolfar Mercúrio, Vênus e chegar pertinho da Terra. Isso ainda demora bilhões de anos, mas em centenas de milhões de anos, o Sol vai tornar impossível a vida na Terra. A verdade é que, se a gente ainda existir até lá, de forma a preservar o que somos, temos que colonizar o sistema solar e a galáxia. O destino do ser humano é se espalhar pelo universo. Muito possivelmente, há outras regiões, outros universos, separados do nosso.

ISTOÉ – Existe vida em outros planetas?
Gleiser –
São centenas de bilhões de galáxias como a Via Láctea. Pense no universo como uma bolha de 13,8 bilhões de anos-luz. Não sabemos o que existe fora da bolha. Não significa que não existam outras galáxias, estrelas e sistemas solares onde não enxergamos. Em cosmologia, se diz que vivemos num multiverso. Nossa bolha é só uma de infinitas outras. Parece até um conto do Jorge Luis Borges (escritor argentino), são milhões de mundos pululando por aí.

domingo, 17 de outubro de 2004

Tempestades solares

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Na primavera de 1613, o italiano Galileu Galilei em seu "História e Demonstração Sobre as Manchas Solares", argumentou que as manchas vistas no Sol estavam localizadas sobre a sua superfície.

Um ponto de vista alternativo, defendido pelo astrônomo jesuíta padre Scheiner, dizia que as manchas solares eram pequenos planetas orbitando o Sol. Scheiner, treinado na doutrina aristotélica, não podia aceitar que um objeto celeste tivesse qualquer tipo de imperfeição. Segundo Aristóteles, todos os objetos celestes eram feitos de éter - a quintessência-, sendo, portanto, perfeitos. Venceu Galileu, após humilhar bastante seu oponente, como era seu estilo.

O que não sabia é que as manchas solares têm dimensões maiores do que da Terra e representam uma medida de atividade magnética na superfície solar. Hoje, sabemos que o Sol apresenta ciclos de atividade de duração de onze anos, nos quais o número de pares de manchas solares aumenta durante o pico dos ciclos, indicando o borbulhar magnético do astro-rei. Essa atividade tem sérias implicações para a Terra.

No dia 14 de julho de 2000, cientistas no Centro Ambiental Espacial em Boulder, no Colorado, monitorando o satélite Goes-8, detectaram uma emissão violenta de raios X emitida por uma região do Sol que, durante os dias precedentes, havia demonstrado alta atividade. Os raios X acusavam a formação de uma gigantesca centelha, emitindo energia equivalente a bilhões de megatoneladas de TNT: literalmente, uma explosão apocalíptica na superfície do Sol. Outro satélite, Soho, também detectou a centelha em sua órbita a 1,5 milhão de quilômetros da Terra, um décimo da distância até o Sol. Após meia hora, o Soho detectou outro fenômeno, de proporções assustadoras: a ejeção de uma bolha de bilhões de toneladas de plasma, partículas eletricamente carregadas. Destino: Terra.

A bolha, um exemplo de ejeção de massa coronal (do inglês "coronal mass ejection", ou CME), viajando a 1.700 quilômetros por segundo, chegou aqui 25 horas mais tarde. Ao passar pelo Soho, a bolha provocou pane em seus instrumentos, desligando-os temporariamente. Em um dia suas células solares sofreram danos equivalentes aos de um ano. Um satélite japonês foi perdido. Outros tiveram seus instrumentos de detecção e transmissão de dados arruinados.

Em outubro do ano passado, uma tempestade solar emitiu outra massa coronal gigantesca. Essa eu mesmo vi -ao menos uma de suas consequências- do jardim da minha casa: as partículas de plasma, ao se chocarem com a atmosfera terrestre, provocaram uma belíssima aurora boreal, cortinas de luz oscilando no céu em tons de vermelho e laranja. Uma das (poucas) vantagens de morar em latitudes altas.

A conexão Terra-Sol tem uma importância que vai além das belas auroras. As partículas solares, altamente energéticas, são afuniladas pelo campo magnético terrestre, concentrando-se principalmente nos pólos. Caso a Terra não tivesse um campo magnético, nosso casulo, não poderíamos sobreviver à radiação. De fato, durante tempestades solares, astronautas da estação espacial têm de procurar abrigo em partes da espaçonave com proteção extra. Imagine o Sol e a Terra como duas bolas ligadas por elásticos. Esses elásticos são as linhas de campo magnético, que gosto de visualizar como um cordão umbilical unindo-nos ao astro que nos mantém vivos. As bolhas de plasma seguem essas linhas como se fossem trilhos, juntamente com as partículas que formam o vento solar, a emissão normal proveniente do Sol, composta principalmente por prótons. A maior pressão durante uma tempestade solar modifica o campo magnético terrestre, diminuindo sua eficiência. Partículas carregadas colidem com satélites, provocando faíscas e danificando instrumentos. Mais ainda, as tempestades aquecem a atmosfera, fazendo-a dilatar. Isso causa aumento no atrito que pode levar à queda dos satélites em órbitas mais elevadas.

A vida moderna depende crucialmente de satélites: transações bancárias, GPS, telefonia celular, telecomunicações. A conexão Terra-Sol representa mais um lembrete que não devemos nos esquecer de nossos vizinhos cósmicos.

domingo, 10 de outubro de 2004

Repensando o nada: uma deconstrução da matéria

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Como definir o nada? Segundo o "Aurélio", nada significa "nenhuma coisa", "de modo algum", ou "a não-existência". Aparentemente, é tudo muito simples: o nada é a ausência de algum objeto material, de alguma "coisa". Ou, puxando para o lado da metafísica, o nada é a não-existência, o não-ser. Portanto, o nada pode ser igualado à ausência de coisa material ou existência. Ao vazio, físico ou metafísico.

Uma vez definido o nada, a próxima questão é, naturalmente: "Será que o nada existe?" Será possível que um determinado volume do espaço seja completamente vazio de coisas ou de ser? Até o início do século 20, a resposta, baseada no que chamamos de física clássica, seria: "Sim, em princípio é possível selar um determinado volume, por exemplo, uma garrafa inquebrável, e usar uma bomba de vácuo para sugar o ar e outras substâncias em seu interior até que toda a matéria tenha sido expelida. O que resta é apenas espaço vazio, o nada".

Veja que, mesmo aqui, no mundo clássico, existem duas suposições essenciais para que o vazio seja criado: primeiro, a garrafa ou volume que o contém tem de ser inquebrável. Caso contrário, a bomba de vácuo causaria a sua implosão. Segundo, a bomba de vácuo tem de ser perfeita, capaz de sugar toda a matéria, todos os átomos do que quer que esteja na garrafa. Como garrafas inquebráveis ou bombas de vácuo com eficiência perfeita não existem, atingir o nada, mesmo no mundo clássico, é, na prática, impossível. O que é factível é atingir um nada aproximado, um volume tão destituído de matéria que, para fins experimentais, podemos chamá-lo de nada. Pelo menos para fins experimentais que não envolvam efeitos atômicos.

Ao descermos à escala dos átomos, as coisas tornam-se bem mais sutis. Um dos resultados mais importantes da física quântica, a física que estuda o mundo dos átomos e das partículas subatômicas, é que, na natureza, nada está em repouso absoluto. Imagino o leitor mais cético dizendo que isto é besteira, que se você deixar um vaso sobre uma mesa ele ficará lá, sem se mexer até o fim dos tempos. É verdade que o vaso inteiro estará lá, aparentemente imóvel. Mas, se pudéssemos olhá-lo com lentes especiais, capazes de revelar distâncias de centésimos de milionésimos de centímetro, veríamos uma realidade muito diferente: átomos ligados a átomos por forças elétricas, vibrando como gelatina; elétrons escapando e voltando a eles, mudando de posição constantemente, interagindo com partículas de luz. O que chamamos de vaso passa a ser um conjunto de vibrações materiais, ondulações que respondem à radiação eletromagnética (as partículas de luz e outras radiações, como infravermelho e ultravioleta).

O mundo quântico é caraterizado pela ausência de permanência: há uma agitação perene, incessante. A rigidez material familiar é uma ilusão causada pela nossa percepção macroscópica da realidade.

Na escala quântica o nada não existe, nem mesmo como suposição. A agitação das partículas de matéria redefine a energia de um sistema físico. Se, no mundo macroscópico, um vaso imóvel sobre uma mesa pode ser definido como tendo energia zero (para os leitores mais técnicos, tomamos a mesa como o zero de energia potencial gravitacional), na escala quântica a vibração constante de seus átomos torna isso impossível. Existirá sempre uma agitação residual, com uma energia associada.

E o que isso tem a ver com o nada? Lembrem-se da relação E=mc2, que diz que matéria e energia, sob certas condições, são interconversíveis. Tomemos então um espaço sem matéria, "vazio". A física quântica mostra que, mesmo neste caso, flutuações de energia existem. O nada tem uma energia associada. Sendo assim, partículas podem surgir dessas flutuações, matéria brotando do nada.

Em 1948, H. Casimir, um físico holandês, propôs que as flutuações do vácuo provocariam uma força atrativa entre duas placas metálicas. O efeito foi confirmado: por incrível que pareça, a energia do nada foi medida recentemente em laboratório. O vazio está cheio de energia.

domingo, 3 de outubro de 2004

Testes parapsicológicos




Quando era garoto, uma de minhas maiores frustrações era ter um cérebro normal, desprovido de poderes mágicos. Eu passava vários minutos me concentrando, tentando mover objetos com a "força" da minha mente. Tinha ouvido falar de que conhecíamos apenas uns 10% do nosso cérebro e que, se fôssemos capazes de explorar os outros 90%, coisas milagrosas aconteceriam. Estava convencido de que somos todos dotados de superpoderes mentais que só não se manifestam devido ao caos de nossas vidas atribuladas; era só eu me concentrar um pouco mais.

Mas o garfo permanecia indiferente, o guardanapo também, até o palito. Decididamente, não era dotado de poderes telecinéticos. Meu cérebro só movia pensamentos e músculos. Foi então que assisti na TV à uma apresentação do famoso médium israelense Uri Geller. Ele olhava para uma colher e, após alguns instantes, ela estava toda torcida, para surpresa e deleite da audiência. Relógios quebrados voltavam a funcionar. Tudo isso, segundo Geller, devido aos seus poderes mentais. Eu era mesmo um azarado, fadado a ter um cérebro normal. Resolvi deixar a parapsicologia de lado e estudar física.

Por uma dessas coincidências que afrontam o senso comum, fui fazer meu doutorado no King's College em Londres, sob orientação de John G. Taylor, um físico especializado em teorias de partículas elementares. O que não sabia é que Taylor tinha um passado oculto, que o ligava diretamente a -adivinhem- Uri Geller!

Durante os anos setenta, quando Geller viajou pelo mundo com seu show, recolhendo muito dinheiro com seus supostos poderes, Taylor foi convidado pela rede BBC para participar de uma exibição ao vivo. Quando viu o que Geller fazia ficou perplexo. Resolveu montar um laboratório para testar poderes telecinéticos. Escreveu livros sobre o assunto que se tornaram best-sellers. O próprio Taylor virou uma celebridade, o cientista que iria demonstrar a veracidade dos poderes da mente.

Passado um tempo o laboratório estava montado, um assistente havia sido contratado (um argentino enorme, barbudo, com olhos azuis profundos, muito parecido com o Rasputin) e os testes começaram. O próprio Geller foi convidado. Sensores capazes de detectar pressão mecânica foram postos sobre garfos e colheres, eletrodos ligados ao cérebro dos paranormais, câmeras de filmar montadas em pontos estratégicos do laboratório.

E nada. Nenhum efeito foi detectado. Um após outro, os sensitivos desfilaram pelo laboratório, todos fracassando miseravelmente. Taylor escreveu um livro retratando-se, mas a empreitada lhe custou caro. Quando eu dizia que era aluno dele, alguns físicos mais velhos davam um sorrisinho de desdém profundamente irritante. Quando tentei abordar o assunto, Taylor me disse categoricamente que isso era coisa do passado, "tudo besteira".

Uri Geller foi sumindo de circulação. Hoje poucos sabem dele. Mas a crença em poderes parapsicológicos continua firme e forte. O físico francês Georges Charpak, vencedor do Prêmio Nobel, escreveu um livro com outro físico, Henri Broch, expondo a falácia da parapsicologia. Broch, que também é mágico, é capaz de repetir todos os truques ditos paranormais exatamente como fazem os ditos sensitivos.

O mágico americano "Fabuloso Randi" há anos vem fazendo o mesmo. Tudo não passa de mágica enganosa, feita por pessoas desonestas que exploram a credulidade e inocência das pessoas como eu adolescente, que querem acreditar em mundos ocultos e poderes sobrenaturais. Pessoas enfadadas com os limites da realidade.

Foi então com surpresa que li uma resenha do livro de Charpak e Broch no "New York Review of Books" escrita por Freeman Dyson, um mentor e amigo. Segundo Dyson, a parapsicologia não deve ser descartada só por que testes em laboratório falham. Talvez, especula, os métodos científicos atuais sejam inadequados para examinar o mundo paralelo de certos fenômenos mentais. Acho pouco provável. Por que nenhum cientista sério tem esses poderes? Por que um paranormal não faz uma demonstração que Randi ou Broch não possam reproduzir? Mas adoraria concordar com Dyson. Estamos sempre querendo ser mais do que somos.

domingo, 26 de setembro de 2004

Sonhos de uma teoria final

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Qualquer pessoa que já olhou para um céu estrelado e se perguntou de onde veio isso tudo sabe muito bem que, quando nos deparamos com questões relativas às origens, as coisas complicam. Três delas ocupam hoje a atenção de cientistas em todo o mundo: a origem do Universo, a da vida e a da mente. Apesar de serem parte da pesquisa mais avançada em física, biologia e ciências cognitivas, elas são também as questões mais antigas da humanidade.

Antes de serem estudadas por cientistas, eram "respondidas" pelas religiões. As aspas são para lembrar que as respostas religiosas nem sempre estão de acordo, pelo contrário. É só ver as chacinas entre muçulmanos e hindus na Índia e Paquistão ou as Cruzadas (as medievais e a atual), para constatar que a revelação pela fé é uma escolha subjetiva. O que as religiões têm em comum é tentar responder a essas três questões. Em geral (mas não sempre), essas narrativas supõem a existência de um poder sobrenatural, absoluto, que decide criar o mundo, as pessoas e os animais. Todo mito de criação supõe que o Um dá origem à pluralidade das formas existentes.
Em física, a noção de que existe uma unidade fundamental na natureza é expressa pela geometria. Que a matemática é a linguagem usada pelas ciências físicas não é uma novidade. Mas a idéia que todos os fenômenos naturais podem ser reduzidos a um único princípio, baseado na geometria, é. Essa crença tem suas origens em Platão, que acreditava que a verdade só pode ser encontrada no mundo abstrato da razão, habitado por formas geométricas. Segundo ele, a percepção sensorial da realidade é falsa: o único círculo perfeito existe apenas em nossas mentes. Qualquer tentativa de representação do círculo será necessariamente imperfeita.

O platonismo ecoa nas salas dos físicos preocupados com questões sobre origens. Como escreveu Stephen Hawking em "Uma Breve História do Tempo", entender a estrutura geométrica do cosmos é entender a "mente de Deus". A metáfora não é acidente. Deus é o maior dos geômetras.

A física busca padrões ordenados na natureza. Cada padrão tem uma simetria associada. A esfera perfeita, objeto mais simétrico que existe, é sempre a mesma após qualquer rotação. Simetrias existem também nas atrações entre as partículas fundamentais da matéria, embora não seja fácil visualizá-las como no caso da esfera. Essas simetrias definem como as partículas trocam energia entre si. Um físico de partículas descreve o mundo material como sendo composto por partículas que interagem entre si com base em certas leis. Por exemplo, quando partículas interagem, a carga elétrica total é a mesma antes e depois da interação. Essas leis são expressas por simetrias, ou padrões geométricos.

A crença mítica no Um, o criador absoluto, se manifesta na física na crença de que a formulação final das leis que regem as interações entre matéria e força também têm uma formulação única, conhecida como teoria do campo unificado. Hoje, sabemos que existem quatro forças entre partículas. A gravidade e o eletromagnetismo são duas delas. Imagine então que o campo unificado seja um rio majestoso, que vai fluindo em direção ao mar. Na medida que se aproxima do mar, vai se separando, até que, na costa, divide-se em quatro.

Nós vivemos na costa, e percebemos a realidade por causa das quatro forças. Alguns aventureiros nadaram rio acima e encontraram o ponto da primeira das unificações. Até agora, ninguém conseguiu passar desse ponto. Os que tentaram falharam. Mas lendas relatam que a união final existe, que é só continuar nadando contra a corrente, rio acima. A crença na lenda inspira novas expedições. Conforme escreveu Steven Weinberg, um dos que encontraram o ponto onde dois rios se juntam, temos de supor que teremos sucesso. Caso contrário, certamente falharemos".

domingo, 19 de setembro de 2004

O Universo e a gota d'água

Outro dia, uma leitora amiga minha me perguntou por que esta coluna se chamava "Micro/Macro". "Nomezinho estranho esse, não?" disse ela, sorrindo. Após repreendê-la, afirmando (também sorrindo) que, se ela tivesse lido todos os textos, saberia responder à própria pergunta, me dei conta de que o nome merece mesmo uma explicação.

Meu pai costumava dizer que existe um universo em uma gota d'água. "O macro cabe no micro" era uma de suas frases prediletas. Na época, não dava muita bola para o que ele dizia. Hoje, já penso diferente e sei que não só o macro cabe no micro como o Universo é uma gota. Talvez uma gota em um infinito oceano de universos.

A partir dos anos 1970, duas áreas da física aparentemente muito diferentes começaram a se aproximar. Antes, uma relação entre as duas parecia ser impossível. No início a coisa foi meio tímida -algumas idéias arrojadas aqui e ali testando uma possível união. Hoje, uma não pode viver sem a outra. As áreas são a cosmologia, que estuda o Universo como um todo, sua origem e evolução, a área mais "macro" da ciência, e a física das partículas elementares, que estuda as propriedades das menores entidades que existem, ou seja, a área mais "micro" da ciência. Tudo o que sabemos sobre a natureza fica entre esses dois extremos. O que não sabemos também.

De onde veio essa união? Em 1965, o modelo do Big Bang foi confirmado por meio de observações realizadas por dois astrofísicos dos Laboratórios Bell que testavam transmissões de microondas para comunicações via satélite. Eles descobriram um ruído em sua antena que vinha de todas as direções do céu. Aflitos, conversaram com outros astrofísicos que explicaram que o "ruído" era radiação eletromagnética que vagava pelo Universo desde a sua infância. Usando dados atuais, percebeu-se que esse ruído foi produzido quando o Universo tinha em torno de 400 mil anos de idade.

Hoje, a idade do Universo é de cerca de 14 bilhões de anos. A conseqüência é imediata: se o Universo tem essa radiação toda e ela agora é muito fria (-270C), no passado, quando o Universo era mais jovem, ela era bem mais quente: quanto mais para trás no tempo, mais quente. E, como está em expansão desde seus primórdios, menor também.

E a matéria toda que existe? Quanto mais quente o Universo, mais difícil é para a matéria se manter coesa. Como exemplo, voltemos à gota do meu pai. Muito frio, ela congela. Muito quente, ela evapora. E se o calor aumenta? As ligações entre o átomo de oxigênio e os dois de hidrogênio se rompem e temos átomos livres. Mais calor, e os elétrons não conseguem continuar unidos aos prótons: os átomos se dissociam (ionizam) e não existe mais água. No Universo, isso ocorreu aos 400 mil anos. Antes disso, o calor era ainda maior. Com um segundo de vida, o Universo era tão quente que os prótons e nêutrons nos núcleos atômicos se separaram. A um centésimo de milésimo de segundo, prótons e nêutrons não existiam: eles se dissociam em quarks, as partículas das quais são feitos. A gota de meu pai virou uma sopa de quarks e elétrons, as partículas elementares da matéria. O macro virou micro.

Ainda nem chegamos ao tempo zero e o Universo virou uma sopa de partículas e radiação e continua encolhendo. Quando chegamos a uma fração ridiculamente pequena de um segundo (10-44 s, para os interessados), o Universo inteiro é do tamanho de uma gota d'água. E a temperatura é tão alta que nem sabemos que tipos de partícula existiam. Estamos no limite: macro e micro entrelaçados. E agora? Da física de partículas, uma inspiração: talvez nosso Universo seja mesmo uma gota, flutuando em um metaoceano, o multiverso feito de todos os universos. Meu pai adoraria saber disso. "Tá vendo filho? O próprio macrocosmo não passa de um microcosmo."

O Universo e a gota d'água

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Outro dia, uma leitora amiga minha me perguntou por que esta coluna se chamava "Micro/Macro". "Nomezinho estranho esse, não?" disse ela, sorrindo. Após repreendê-la, afirmando (também sorrindo) que, se ela tivesse lido todos os textos, saberia responder à própria pergunta, me dei conta de que o nome merece mesmo uma explicação.

Meu pai costumava dizer que existe um universo em uma gota d'água. "O macro cabe no micro" era uma de suas frases prediletas. Na época, não dava muita bola para o que ele dizia. Hoje, já penso diferente e sei que não só o macro cabe no micro como o Universo é uma gota. Talvez uma gota em um infinito oceano de universos.

A partir dos anos 1970, duas áreas da física aparentemente muito diferentes começaram a se aproximar. Antes, uma relação entre as duas parecia ser impossível. No início a coisa foi meio tímida -algumas idéias arrojadas aqui e ali testando uma possível união. Hoje, uma não pode viver sem a outra. As áreas são a cosmologia, que estuda o Universo como um todo, sua origem e evolução, a área mais "macro" da ciência, e a física das partículas elementares, que estuda as propriedades das menores entidades que existem, ou seja, a área mais "micro" da ciência. Tudo o que sabemos sobre a natureza fica entre esses dois extremos. O que não sabemos também.
De onde veio essa união? Em 1965, o modelo do Big Bang foi confirmado por meio de observações realizadas por dois astrofísicos dos Laboratórios Bell que testavam transmissões de microondas para comunicações via satélite. Eles descobriram um ruído em sua antena que vinha de todas as direções do céu. Aflitos, conversaram com outros astrofísicos que explicaram que o "ruído" era radiação eletromagnética que vagava pelo Universo desde a sua infância. Usando dados atuais, percebeu-se que esse ruído foi produzido quando o Universo tinha em torno de 400 mil anos de idade.

Hoje, a idade do Universo é de cerca de 14 bilhões de anos. A conseqüência é imediata: se o Universo tem essa radiação toda e ela agora é muito fria (-270C), no passado, quando o Universo era mais jovem, ela era bem mais quente: quanto mais para trás no tempo, mais quente. E, como está em expansão desde seus primórdios, menor também.

E a matéria toda que existe? Quanto mais quente o Universo, mais difícil é para a matéria se manter coesa. Como exemplo, voltemos à gota do meu pai. Muito frio, ela congela. Muito quente, ela evapora. E se o calor aumenta? As ligações entre o átomo de oxigênio e os dois de hidrogênio se rompem e temos átomos livres. Mais calor, e os elétrons não conseguem continuar unidos aos prótons: os átomos se dissociam (ionizam) e não existe mais água. No Universo, isso ocorreu aos 400 mil anos. Antes disso, o calor era ainda maior. Com um segundo de vida, o Universo era tão quente que os prótons e nêutrons nos núcleos atômicos se separaram. A um centésimo de milésimo de segundo, prótons e nêutrons não existiam: eles se dissociam em quarks, as partículas das quais são feitos. A gota de meu pai virou uma sopa de quarks e elétrons, as partículas elementares da matéria. O macro virou micro.

Ainda nem chegamos ao tempo zero e o Universo virou uma sopa de partículas e radiação e continua encolhendo. Quando chegamos a uma fração ridiculamente pequena de um segundo (10-44 s, para os interessados), o Universo inteiro é do tamanho de uma gota d'água. E a temperatura é tão alta que nem sabemos que tipos de partícula existiam. Estamos no limite: macro e micro entrelaçados. E agora? Da física de partículas, uma inspiração: talvez nosso Universo seja mesmo uma gota, flutuando em um metaoceano, o multiverso feito de todos os universos. Meu pai adoraria saber disso. "Tá vendo filho? O próprio macrocosmo não passa de um microcosmo."

domingo, 12 de setembro de 2004

Ensinar ciência com poesia

Conversei hoje com uma jornalista especializada em divulgação científica. Ela me falou de sua preocupação com o ensino de ciência no Brasil, especialmente nas escolas públicas. Me contou das dificuldades de encontrar professores. Professores formados adequadamente são uma raridade maior ainda. Aqueles que não só sejam formados, mas gostem de ciência são heróis que precisam ser reconhecidos. Sem recursos ou salário adequado, eles se esforçam em trazer para as crianças um pouco do que sabemos sobre o mundo.
Ela me falou também do avanço do criacionismo, em particular no Estado do Rio de Janeiro, e de como ele parece estar intrinsecamente relacionado ao avanço das igrejas evangélicas. Se ela não me disse isso, digo eu. Nos EUA, alguns Estados tentaram proibir o ensino da teoria da evolução de Darwin e o modelo do Big Bang em cosmologia, afirmando que essas teorias estão erradas e incompletas. Seus proponentes diziam que a perspectiva bíblica, criada há milhares de anos, deveria ser ensinada em pé de igualdade com a ciência. Não só em pé de igualdade, mas como uma alternativa. Me pergunto o que uma criança hinduísta acha disso tudo. No mínimo, que as religiões ocidentais são muito arrogantes, já que o deus delas toma precedência sobre os deuses de todas as outras.

Falamos do que pode ser feito para aliviar o problema. Constatamos o seguinte fato: crianças são naturalmente curiosas sobre o mundo. Todo pai ouve o filho ou filha perguntar por que o céu é azul, por que a Lua não cai, como que a lagarta vira borboleta e a semente vira planta, por que o mar tem ondas e os lagos não. Por que a vovó morreu. Poucos pais têm respostas para todas essas perguntas. Mas as crianças perguntam mesmo assim. "Sei lá, filho, eu lá tenho cara de enciclopédia?" Quando elas vão à escola, a curiosidade não diminui. Ao menos até elas chegarem à puberdade, quando existe uma transição de interesse: a curiosidade sobre o mundo se transforma em curiosidade sobre o outro, especialmente o outro do sexo oposto. Essa é a hora de ensinar biologia, antropologia, história, especialmente histórias sobre heróis.

Depois, as crianças viram adultos e das duas uma: ou a curiosidade sobre o mundo volta e elas lêem o que podem sobre ciência, ou a ciência se torna um bicho-papão, "o terror de minha adolescência", coisa para chatos, nerds e crianças.

A desculpa é sempre a mesma: a falta de recursos faz com que o ensino de qualidade seja impossível. Ciência vira coisa que acontece só no quadro-negro, cheio de fatos e fórmulas que não parecem ter nada a ver com o mundo real. Fazer demonstrações em sala de aula, experiências simples que ilustrem os conceitos ensinados, é algo aparentemente impossível. Mas na realidade não é. Sem dúvida, fica difícil demonstrar a difração de elétrons sem o equipamento adequado. Mas isso só é relevante para alunos de física do terceiro ano. Falo dos princípios da física básica, como o fato de todos os corpos serem atraídos igualmente pela gravidade terrestre.

Amarre uma pedra em um barbante e faça-a oscilar como um pêndulo. Conte quanto tempo demora para a pedra completar cinco oscilações. Agora, troque por outra pedra mais ou menos pesada e repita a experiência, largando-a do mesmo ângulo. Conte novamente o tempo de cinco oscilações. Ele será o mesmo. Para se demonstrar esse princípio extremamente importante basta usar pedras e um pedaço de barbante. Ou faça como Galileu e deixe as duas pedras caírem da mesma altura. Pegue um pente de plástico e um monte de pedacinhos de papel.

Esfregue o pente nos cabelos e aproxime-o dos pedacinhos de papel. O que ocorre? Eles serão atraídos ao pente. Por quê? Porque a fricção no pente causa um déficit de cargas, tornando-o atrativo. Matéria é feita de cargas elétricas. Misture soda cáustica com vinagre (bem pouquinho) e veja o que acontece, explicando a diferença entre substâncias ácidas e básicas.

Se não é equipamento, o que falta (fora salário e formação decentes)? Falta encontrar poesia na natureza e nas explicações que temos dela. O poeta Federico García Lorca escreveu: "A ciência é mil vezes mais lírica do que qualquer teogonia." Basta ver a ciência com os olhos do poeta e fazer do mistério a luz que ilumina a razão.

domingo, 5 de setembro de 2004

Anjos e demônios

Antes do best-seller "O Código Da Vinci", o escritor americano Dan Brown publicou "Anjos e Demônios" que, com o sucesso do "Código", virou também um best-seller. Apesar de o "Código" estar na minha estante, confesso que ainda não o li. Mesmo assim, acabei entrando no mundo de grandes intrigas e sociedades secretas de Brown pela porta dos fundos.

O jornalista e editor Dan Burstein publicou um livro sobre o "Código", com ensaios de especialistas. Bem, o livro sobre o livro também virou um sucesso. Tanto que Burstein resolveu repetir a dose e está preparando um livro semelhante sobre "Anjos e Demônios". É aqui que eu entro; a pedido de Burstein, li o livro e estou respondendo às suas perguntas. Por que meu interesse em participar? Porque "Anjos e Demônios" trata da "guerra" entre ciência e religião, tema de extrema importância.

"Anjos e Demônios" é escrito em estilo irresistível e acessível. Você prefere não dormir só para ler mais um pouquinho. Ele trata de questões que passam pela cabeça de todos: a existência de Deus, a possibilidade de se ter fé em um Universo que parece ter profunda indiferença por nós, a reconciliação entre o científico e o espiritual. Só que o livro leva o conflito entre razão e fé à uma conflagração apocalíptica.

Quando se fala em "guerra" entre ciência e religião, o termo é usado de forma metafórica. O Vaticano ainda não bombardeou o Centro Europeu de Física de Altas Energias, o Cern. E o Cern também não tem planos de bombardear o Vaticano. Essa é a premissa do livro. A idéia é genial: um físico religioso acredita ter reproduzido o Big Bang em laboratório, tornando a gênese um evento científico. Sua intenção não era contestar a existência de Deus. Pelo contrário, o cientista queria provar que é possível se criar algo a partir do nada. Mas o feitiço virou contra o feiticeiro.

Claro, a ciência de Dan Brown está completamente furada: seu cientista colidiu dois feixes de partículas a energias altíssimas. Da colisão surgiram partículas de matéria e antimatéria -o oposto das partículas de matéria. Por exemplo, um elétron tem como antipartícula um pósitron, com mesma massa e carga elétrica oposta. No livro, a criação de antimatéria é tratada como um evento fantástico, surgindo milagrosamente do ponto da colisão entre os dois feixes, feito a criação de matéria no Big Bang, vinda do nada. Na realidade, esse tipo de fenômeno é observado diariamente em aceleradores de partículas espalhados pelo mundo. O que ocorre é expressão da fórmula E=mc2: a energia das partículas em colisão é transformada em matéria, pares de partículas e antipartículas que "surgem" do ponto de colisão. O Big Bang é uma outra história.

Sendo um livro de ficção, a ciência estar incorreta é menos importante do que a discussão da crise espiritual que assola o mundo. Em um certo ponto, a secretária do diretor do Cern, uma católica, exclama: "Será que os cientistas acham que quarks e mésons [partículas de matéria] inspiram o homem comum? Ou que equações podem substituir a necessidade de termos fé no divino?" Essa é a expectativa de muita gente, que o avanço da ciência implique na diminuição da fé. A ciência é vista como uma ameaça à religião: quanto mais aprendemos sobre a natureza, mais difícil é aceitar a existência de forças sobrenaturais.

Realmente, sob o ponto de vista científico, a idéia de que existem forças ou entidades sobrenaturais não faz sentido. Afinal, se algo ocorre e é observado, esse algo deixa de ser sobrenatural. Se é ou não explicado pela ciência é outro problema. Via de regra, a explicação vem, mais cedo ou mais tarde. Ou seja, a expressão "fenômeno sobrenatural" não faz sentido. Mas existe um dogmatismo muito grande, dos dois lados. O avanço da ciência deixou um vácuo espiritual que ela não pode preencher. Perdas emocionais, questões éticas ou morais não serão decididas por teoremas ou experimentos. Por outro lado, negar o avanço científico é uma postura absurda. Existem anjos e demônios dos dois lados.

domingo, 29 de agosto de 2004

De volta!

Caros leitores, desculpem o alarme falso. Mas, se estou de volta, isso se deve a vocês. Aos que perderam a "Micro/Macro" da semana passada, um resumo: a reestruturação do jornal levou a uma série de cortes, todos, imagino, muito difíceis para a administração. Um deles havia sido "Micro/Macro". Domingo passado havia me despedido, escrevendo a "última" coluna.

De lá para cá, algo fantástico ocorreu. Não sei exatamente quantos, mas muitos leitores escreveram à Folha e para mim mesmo reclamando. Depois que souberam que a escolha não havia sido minha, pediram que a coluna voltasse. E assim foi feito. Parabéns a vocês, leitores, que me apoiaram e a quem agradeço de coração. Parabéns também à Folha, por ter mantido este raríssimo espaço na imprensa brasileira para a ciência e suas repercussões sociais e culturais, e por ter mostrado enorme respeito por seus leitores.

Um dos temas abordados na "última" "Micro/Macro" foi a existência de planetas extra-solares, ou seja, planetas que circulam em torno de outras estrelas que não o Sol. Escrevi que "mais de cem planetas extra-solares foram descobertos girando em torno de estrelas vizinhas. É bem verdade que eles não têm muito a ver com a Terra, sendo mais parecidos com Júpiter".

A importância disso é saber se somos ou não especiais: se outros sistemas solares são muito diferentes do nosso, só com planetas gigantes e gasosos como Júpiter, poderíamos concluir que nossa existência, ou ao menos a de planetas semelhantes à Terra, é mesmo uma raridade cósmica. Enquanto víamos se a "Micro/ Macro" sobreviveria ou não, astrônomos europeus finalizavam sua análise de um planeta em órbita de uma estrela a 50 anos-luz do Sol chamada, não muito poeticamente, de mu Arae. (Um ano-luz equivale a aproximadamente 10 trilhões de quilômetros.) O planeta, dos 120 descobertos até agora, é o que mais se assemelha à Terra.

Ao todo, três planetas giram em torno de mu Arae. Um tem tamanho semelhante ao de Júpiter, demorando 650 dias para completar uma órbita. (Júpiter demora pouco menos de 12 anos.) Outro tem órbita bem distante da estrela. Mas o terceiro, com massa apenas 14 vezes maior que a da Terra (a de Júpiter é 317,8 vezes maior), é uma raridade. Nenhum planeta com massa comparável à da Terra havia sido encontrado em torno de uma estrela parecida com o Sol (o caso de mu Arae). Devido à pouca distância do planeta à estrela, astrônomos suspeitam que ele seja rochoso.

Em nosso Sistema Solar, os quatro planetas internos -Mercúrio, Vênus, Terra e Marte- são rochosos, enquanto os cinco externos são compostos principalmente de gases congelados. A diferença na composição se dá devido ao processo de formação de um sistema solar. Planetas muito próximos da estrela central são mais quentes, de modo que gases voláteis como hidrogênio e metano são evaporados, sobrando principalmente materiais rochosos e metálicos. No caso do novo planeta, o calor é extremamente intenso: a temperatura em sua superfície é estimada em aproximadamente 600C. Não tão propício à vida quanto a Terra, mas ao menos na direção certa.

A descoberta mostra como a ciência avança rápido. Na semana passada, não se conhecia planetas extra-solares semelhantes à Terra. À medida que os métodos de identificação desses planetas distantes forem progredindo, muito provavelmente outras "Terras" serão descobertas. O planeta encontrado possivelmente tem uma atmosfera, mesmo que bem mais tênue do que a nossa. Até 2020, será possível analisar a composição química das atmosferas de planetas extra-solares. Se água, ozônio e oxigênio forem detectados, a probabilidade de vida é muito alta. Um dia, iremos até lá para ver o que encontramos. Ninguém gosta de ficar sozinho. Especialmente no Universo inteiro.

domingo, 22 de agosto de 2004

A última Micro/Macro

Esta é a micro/macro de número 359. E é também a última. Desde 28 de setembro de 1997, todos os domingos, sem exceção, tive o privilégio de compartilhar com meus leitores um pouco do que se faz em ciência hoje pelo mundo, de sua repercussão moral e social, do que significa ser um cientista. Tentei apresentar a ciência com uma cara diferente; não o monstro de sete cabeças que afugenta a tantos na escola, mas como uma busca por significado, por respostas a perguntas tão antigas quanto a humanidade, nossas origens, nosso destino. Perguntas que definem quem somos.

Vivemos em um Universo austero, de proporções gigantescas. A luz, viajando a 300 mil quilômetros por segundo, demora 4,3 anos para chegar até Proxima Centauri, a estrela mais próxima do Sol. Um ônibus espacial, viajando a 10 quilômetros por segundo, demoraria 140 mil anos. Até onde sabemos, estamos sozinhos, ao menos em nossa vizinhança galáctica. Relatos de Ovnis à parte, não há indicação concreta de que exista vida em outro planeta do Sistema Solar ou em uma de suas tantas luas. Se formas de vida existiram ou existem ainda, elas não são inteligentes. Mesmo assim, quando contemplo a imensidão do espaço, aposto na existência de outras formas de vida no cosmo. Afinal, o Sol é apenas uma entre centenas de bilhões de estrelas.

Durante a última década, mais de cem planetas extra-solares foram descobertos girando em torno de estrelas vizinhas. É bem verdade que eles não têm muito a ver com a Terra, sendo mais parecidos com Júpiter. Mas isso pode ser conseqüência do método usado para achá-los, que funciona melhor quando eles são muito maiores do que a Terra. De qualquer forma, a descoberta mostra que planetas não são uma raridade; nosso Sistema Solar é um entre bilhões. E isso apenas em nossa galáxia. Imagine quando somarmos as outras centenas de bilhões que existem no Universo!

Quando vemos a variedade impressionante das formas de vida na Terra, a adaptabilidade de certas espécies a condições de extrema temperatura, sem oxigênio, sem luz, fica fácil imaginar que a criatividade da natureza não se limita ao nosso pequeno planeta. Mas é importante diferenciarmos entre vida e vida inteligente. É comum acreditar que, com tempo suficiente, a vida irá sempre evoluir até espécies inteligentes.

Este é o caso do único exemplo que conhecemos, o nosso. Mas, quando estudamos a história da vida na Terra, vemos que a evolução das espécies se dá juntamente com a evolução do planeta; a explosão de vida que existe hoje aqui é consequência de inúmeros acidentes cósmicos e locais. Por exemplo, a extinção dos dinossauros se deveu à colisão de um asteróide há 65 milhões de anos. Se isso não houvesse ocorrido, é possível que a Terra fosse ainda dominada por eles, e que os mamíferos permanecessem irrelevantes. Cada planeta tem a sua história. Suas formas de vida, se existirem, seguem caminhos evolutivos diferentes. Jamais nossa história será repetida em outro lugar. Muito provavelmente, somos os únicos humanos no Universo.

Essa revelação me deixa dividido. Por um lado, vejo a espécie humana como uma obra-prima da evolução, uma jóia biológica construída a partir de cadeias incrivelmente complexas de macromoléculas orgânicas. Por outro, me envergonho em ver o que andamos fazendo com o mundo e com nós mesmos. Moralmente, continuamos na Idade da Pedra, prisioneiros da dualidade bem-mal, escondendo-nos em grupos que se acham no direito de julgar outros grupos e de usá-los ou destruí-los. Se de fato estamos sozinhos na imensidão cósmica, temos o dever de nos preservar e de espalhar vida inteligente pela galáxia.

A ciência redefiniu o mundo em que vivemos. Hoje, exploramos o átomo e as galáxias, curamos doenças que antes matavam aos milhares, usamos tecnologias que há cem anos seriam inimagináveis. Em cem anos, a ciência haverá redefinido o mundo mais uma vez. Resta ainda redefinirmos o espírito humano, que continua escravizado pelos mesmos medos que nos tornam inimigos de nós mesmos.

domingo, 15 de agosto de 2004

Em busca da lula gigante: um mito que virou realidade

Em 1851, Herman Melville publicou "Moby Dick", após passar três anos a bordo de uma baleeira. A gigantesca baleia não foi o único monstro a aparecer em suas páginas. Melville narra um "fenômeno fantástico, uma enorme massa com inúmeros braços irradiando de seu centro, torcendo-se e enrolando-se como em um ninho de serpentes".

Na mesma época, o zoólogo dinamarquês Johannes Steenstrup declarou que uma besta encontrada no estreito de Resund e presenteada ao rei era, na verdade, um cefalópode, em particular uma lula enorme. Em uma palestra, Steenstrup mostrou uma mandíbula em forma de bico de uma lula gigante encontrada morta na Islândia. Conforme escreveu Richard Ellis em "Em Busca da Lula Gigante", o achado de Steenstrup "marcou a transição da lula gigante de mito à realidade científica". Essa descoberta inspirou Júlio Verne a incluir uma lula gigante em seu famoso "20.000 Léguas Submarinas".

Lendas de monstros marinhos são encontradas por todo o mundo. Até Homero, na "Odisséia", descreve um monstro chamado "scylla", "com doze pernas, todas se torcendo, saindo de seis longos pescoços, uma cabeça horrível em cada um deles". O caso da lula gigante é interessante porque sabe-se hoje que ela não é uma lenda; vários espécimes foram encontrados mortos em praias do mundo inteiro, da Nova Zelândia à Noruega; pedaços foram resgatados dentro de estômagos de baleia; tentáculos de até dez metros de comprimento foram pescados. O único problema é que jamais um espécime foi capturado vivo.

Apesar de ser real, a lula gigante é menos conhecida que os dinossauros. Vários pescadores contam de seus encontros com os "monstros", com olhos do tamanho de cabeças humanas. Mas, misteriosamente, a lula gigante, ou Architeuthis, consegue sempre escapar de seus caçadores.
Mesmo que os oceanos cubram quase 75% da superfície terrestre -só o oceano Pacífico é maior do que todos os continentes juntos-, o mundo submarino é menos explorado do que o Universo. Estima-se que os oceanos contenham mais de dez milhões de espécies animais, das quais conhecemos menos da metade.

A lula gigante é um desafio para os biólogos marinhos; a competição para encontrar um espécime vivo é ferrenha e não muito amistosa. O jornalista David Grann, em artigo recente para a revista "The New Yorker", conta a sua aventura junto a um caçador de lulas gigantes, Steve O'Shea. Seu plano é original: como lulas produzem milhares de ovos, é mais fácil capturar uma lula-bebê e acompanhar o seu crescimento em um aquário especial.

O aspecto mais fascinante da história é a determinação de O'Shea. Ele é capaz de sair sozinho em alto-mar e passar dias praticamente sem dormir jogando suas redes e armadilhas. Grann conta de sua obstinação implacável, em meio a tempestades e ondas de cinco metros, com a lanterna ligada às quatro da manhã em céu sem Lua, examinando e reexaminando o conteúdo de sua rede. Na terceira noite, O'Shea viu em sua rede o que lhe pareceu ser o exemplar que tanto queria. Mas, no esforço de esvaziá-la, a lula-bebê acabou escapando para o mar. Mais uma missão frustrada.

Mas O'Shea não desistiu. E é justamente essa determinação que leva ao sucesso em pesquisa. Não existem garantias, apenas fé de que o objetivo será alcançado. O mais importante é a persistência, é poder visualizar a lula crescendo no tanque, a equação resolvida, o enigma explicado. A imagem do cientista em meio ao oceano escuro, procurando por um animal meio mito meio realidade é pura poesia. A poesia escrita pelo nosso desejo insaciável de querer saber sempre mais.

domingo, 8 de agosto de 2004

A imperfeição criadora

Existe beleza na imperfeição. No século 18, por exemplo, a beleza de um rosto era realçada por um sinal preto no canto da boca, mesmo que fosse maquiagem. E isso tanto para homens quanto para mulheres. O leitor que teve a oportunidade de assistir ao filme Barry Lindon, de Stanley Kubrick (1975), deve lembrar do sinal no rosto de Marisa Berenson e no do mentor de Ryan O'Neal, o Chevalier de Balibari. A rigidez formal do filme reflete a rigidez da época; a visão de mundo do século 18 foi profundamente influenciada pelo racionalismo que vinha das teorias de Newton. Daí o interessante simbolismo do sinal preto na maquiagem do século 18: ele quebrava a simetria perfeita do rosto e do pensamento da época. E, com isso, realçava a ambos.

A descrição matemática da natureza é estruturada na perfeição das formas geométricas: árvores são aproximadas por cones, planetas por esferas, corpos por cilindros. Essa simplificação tem duas funções: por um lado, se levássemos em conta todos os detalhes de um objeto, seria muito difícil construir e resolver equações que descrevam seu comportamento. Por outro lado, esses detalhes, via de regra, não são necessários. Newton, Galileu e outros mostraram que é possível descrever o comportamento dos corpos sujeitos às mais diversas forças sem se deter a seus detalhes e imperfeições. Um exemplo é a Lua. Para estudarmos sua órbita, é irrelevante que saibamos os detalhes de suas crateras ou vales.


Mas a Lua não é uma esfera perfeita, e árvores não são cones. Os detalhes de um objeto o tornam único. Cada pinheiro, mesmo se aproximadamente cônico, tem imperfeições que traduzem a sua história: como e onde ele cresceu, se recebe muito sol, se o vento vem só de uma direção. Enfim, cada objeto que existe, animado ou inanimado, é produto de uma história que o torna único, mesmo que as suas propriedades gerais sejam compartilhadas por outros. As imperfeições levam à diferenciação.

Até o Universo é produto de imperfeições que o distinguem de outros universos possíveis. Imagine que, no início do tempo, existisse um multiverso, um megauniverso em que todos os possíveis universos coexistiam, cada qual com suas leis naturais, suas propriedades únicas, uma sopa de possibilidades, borbulhando aqui e ali diferentes cosmos. Alguns cresciam enquanto outros morriam, voltando ao nada. O nosso Universo é um experimento cósmico que deu certo, uma bolha que desde que começou a crescer, há 14 bilhões de anos, não parou mais. Por quê? O que o nosso Universo tem que o levou a se expandir, a ter matéria nas proporções certas para que a gravidade pudesse formar estruturas como galáxias e estrelas, a ter átomos de oxigênio e carbono que formaram moléculas complexas e a vida?

Em uma palavra: imperfeições. A existência de matéria só é possível porque na infância cósmica existia um pequeno excesso de matéria sobre antimatéria. Caso contrário, ambas se aniquilariam mutuamente e o Universo seria banhado em radiação e mais nada. Sem esse pequeno excesso, essa imperfeição no balanço de matéria cósmica, não estaríamos aqui. E, quando a matéria sobrepujou a antimatéria, a força da gravidade fez com que ela se aglomerasse em grandes nuvens quase esféricas. Quase, mas não perfeitamente. Pequenos nódulos mais densos, como caroços, começaram a se atrair mutuamente, tornando-se ainda mais densos. Deles nasceram as galáxias. E, junto com elas, as estrelas, de nódulos menores e ainda mais densos. Das estrelas vieram os planetas. E, em uma delas, uma entre centenas de bilhões de outras, um dos planetas gerou formas de vida. Inclusive uma que gosta de se lembrar de suas origens imperfeitas com sinais pretos no canto da boca.