domingo, 8 de agosto de 2004

A imperfeição criadora

Existe beleza na imperfeição. No século 18, por exemplo, a beleza de um rosto era realçada por um sinal preto no canto da boca, mesmo que fosse maquiagem. E isso tanto para homens quanto para mulheres. O leitor que teve a oportunidade de assistir ao filme Barry Lindon, de Stanley Kubrick (1975), deve lembrar do sinal no rosto de Marisa Berenson e no do mentor de Ryan O'Neal, o Chevalier de Balibari. A rigidez formal do filme reflete a rigidez da época; a visão de mundo do século 18 foi profundamente influenciada pelo racionalismo que vinha das teorias de Newton. Daí o interessante simbolismo do sinal preto na maquiagem do século 18: ele quebrava a simetria perfeita do rosto e do pensamento da época. E, com isso, realçava a ambos.

A descrição matemática da natureza é estruturada na perfeição das formas geométricas: árvores são aproximadas por cones, planetas por esferas, corpos por cilindros. Essa simplificação tem duas funções: por um lado, se levássemos em conta todos os detalhes de um objeto, seria muito difícil construir e resolver equações que descrevam seu comportamento. Por outro lado, esses detalhes, via de regra, não são necessários. Newton, Galileu e outros mostraram que é possível descrever o comportamento dos corpos sujeitos às mais diversas forças sem se deter a seus detalhes e imperfeições. Um exemplo é a Lua. Para estudarmos sua órbita, é irrelevante que saibamos os detalhes de suas crateras ou vales.


Mas a Lua não é uma esfera perfeita, e árvores não são cones. Os detalhes de um objeto o tornam único. Cada pinheiro, mesmo se aproximadamente cônico, tem imperfeições que traduzem a sua história: como e onde ele cresceu, se recebe muito sol, se o vento vem só de uma direção. Enfim, cada objeto que existe, animado ou inanimado, é produto de uma história que o torna único, mesmo que as suas propriedades gerais sejam compartilhadas por outros. As imperfeições levam à diferenciação.

Até o Universo é produto de imperfeições que o distinguem de outros universos possíveis. Imagine que, no início do tempo, existisse um multiverso, um megauniverso em que todos os possíveis universos coexistiam, cada qual com suas leis naturais, suas propriedades únicas, uma sopa de possibilidades, borbulhando aqui e ali diferentes cosmos. Alguns cresciam enquanto outros morriam, voltando ao nada. O nosso Universo é um experimento cósmico que deu certo, uma bolha que desde que começou a crescer, há 14 bilhões de anos, não parou mais. Por quê? O que o nosso Universo tem que o levou a se expandir, a ter matéria nas proporções certas para que a gravidade pudesse formar estruturas como galáxias e estrelas, a ter átomos de oxigênio e carbono que formaram moléculas complexas e a vida?

Em uma palavra: imperfeições. A existência de matéria só é possível porque na infância cósmica existia um pequeno excesso de matéria sobre antimatéria. Caso contrário, ambas se aniquilariam mutuamente e o Universo seria banhado em radiação e mais nada. Sem esse pequeno excesso, essa imperfeição no balanço de matéria cósmica, não estaríamos aqui. E, quando a matéria sobrepujou a antimatéria, a força da gravidade fez com que ela se aglomerasse em grandes nuvens quase esféricas. Quase, mas não perfeitamente. Pequenos nódulos mais densos, como caroços, começaram a se atrair mutuamente, tornando-se ainda mais densos. Deles nasceram as galáxias. E, junto com elas, as estrelas, de nódulos menores e ainda mais densos. Das estrelas vieram os planetas. E, em uma delas, uma entre centenas de bilhões de outras, um dos planetas gerou formas de vida. Inclusive uma que gosta de se lembrar de suas origens imperfeitas com sinais pretos no canto da boca.

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