domingo, 18 de dezembro de 2005

Criaturas improváveis

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Não há dúvida de que a vida é extremamente criativa. Na última década, organismos foram descobertos nos lugares mais inóspitos, enterrados sob centenas de metros de gelo na Antártida (bactérias) ou ao redor de fendas submarinas que jorram água e vapor superaquecidos a temperaturas acima de 120C, sem luz e com pouco oxigênio. Essas formas de vida adaptadas à situações extremas são chamadas de "extremófilas".


Como dizia Carl Sagan, ausência de evidência não é evidência de ausência


Sua existência é importante por várias razões, desde estudos sobre a origem da vida na Terra que, durante sua infância, era bem diferente do que é hoje, até investigações sobre a possibilidade de vida extraterrestre, em ambientes que terão condições muito diversas das que achamos aqui.

A descoberta dessas formas de vida tem inspirado um outro grupo de pessoas em sua busca por criaturas improváveis. São os caçadores de "monstros" míticos, criaturas que vivem em lendas e na imaginação, alimentando fantasias sobre habitantes de nosso planeta, talvez descendentes de animais já extintos, que ainda se ocultam em cantos pouco explorados da Terra. Será que o monstro do lago Ness ou o Abominável Homem das Neves têm alguma chance de ser reais?

Confesso que, quando garoto, tinha uma atração enorme por essas criaturas. Lembro-me de colecionar "fotos" do monstro do lago Ness, que imaginava ser um plesiossauro esquecido pela evolução, um sobrevivente milagroso do Mesozóico. Afinal, de onde vem todo esse folclore sobre dragões, criaturas dos ares e dos mares? Por que essas lendas existem em todos os cantos do mundo? Será que não poderiam ter existido no passado? Meu filho de 12 anos está convencido de que sim. (Bem, estava mais convencido quando tinha 11.) Uma possível explicação para as lendas é que fósseis dessas criaturas foram encontrados em várias localidades. Como isso se deu muito antes de a teoria da evolução e a noção de extinção das espécies terem sido propostas, o raciocínio deve ter sido que, se existem os ossos, existem as criaturas.

Os crédulos existem até hoje e em números surpreendentes. Recentemente, no Estado americano do Texas, houve uma conferência dedicada exclusivamente ao Abominável Homem das Neves, que nem é só das neves, chamado mais geralmente de "Pé Grande" (em inglês, "Big Foot"). Em torno de 400 pessoas participaram, examinando possíveis pistas, em geral moldes de pegadas supostamente deixadas pela criatura, fotos e depoimentos.
Alguns dizem que o Pé Grande é um descendente perdido do macaco gigante Gigantopithecus, um monstro pré-histórico de 3 metros de altura, (primo do King Kong, obviamente). Os "filhos" da criatura agora habitariam florestas e pântanos americanos. Existe até um Centro Texano de Pesquisas sobre o Pé Grande, fundado em 1999 por um empresário que jura ter visto uma criatura enorme vagando por uma estrada remota do Estado da Louisiana.
Alguns cientistas, como o professor de anatomia e antropologia Jeff Meldrum, da Universidade Estadual de Idaho, levam a coisa a sério. Ele já examinou mais de 150 moldes de pegadas, afirmando que a questão é científica: se as criaturas existem, poderão ser encontradas. Eu me pergunto se, em caso negativo, a questão seria mesmo posta de lado. Afinal, sempre existirão aqueles que acreditam que elas possam estar por aí, só que sabem se esconder muito bem do homem. Como dizia Carl Sagan, ausência de evidência não é evidência de ausência.

domingo, 11 de dezembro de 2005

Berços de estrelas

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Talvez alguns leitores lembrem-se ainda de uma imagem histórica produzida pelo Telescópio Espacial Hubble no início de 2002 mostrando as "Colunas da Criação", uma região perto da Nebulosa da Águia onde estrelas estavam "nascendo": gigantescas colunas de gases incandescentes pareciam ascender como cogumelos em explosões atômicas, marcando a incrível violência e beleza do fenômeno. A região, fotografada opticamente (dentro do espectro da luz visível) pelo Hubble, tinha uma extensão aproximada de 1,5 ano-luz, a distância percorrida pela luz em um ano e meio, cerca de 15 trilhões de quilômetros. Como comparação, a distância do Sol a Plutão é 250 vezes menor.


O mecanismo de nascimento de estrelas ilustra a complementa-ridade entre criação e destruição que observamos na natureza


Carl Sagan escreveu que temos a sorte de ser a geração que está explorando os planetas pela primeira vez, estudando sua estrutura, seus detalhes, enviando sondas robotizadas. Os que hoje têm em torno de 40 anos ou mais tiveram de mudar sua concepção completamente: planetas passaram de simples esferas distantes com alguns detalhes interessantes (a cor alaranjada de Marte, o "olho" de Júpiter, os anéis de Saturno) a mundos completos, com montanhas, vulcões, vales, crateras, atmosferas variadas, talvez até, no caso da lua de Júpiter, Europa, oceanos subterrâneos. Descobrimos até outros mundos, planetas girando em torno de outras estrelas a muitos anos-luz daqui.

Ao que disse Sagan, podemos adicionar que temos, também, a sorte de ser os primeiros a ver estrelas nascerem, de acompanhar o processo complementar de criação e destruição que marca a evolução cósmica.

No dia 9 de novembro, outra missão da Nasa, o Telescópio Espacial Spitzer, revelou uma imagem ainda mais espetacular do que a do Hubble: outro berçário de estrelas, agora na constelação de Cassiopéia, a 7.000 anos-luz da Terra, com uma extensão de 15 anos-luz, ou seja, 10 vezes maior do que a imagem revelada pelo Hubble em 2002. Literalmente centenas de proto-estrelas, estrelas-bebê, podem ser vistas por trás de uma nuvem de gás e poeira avermelhada. A grande vantagem do Spitzer sobre o Hubble é que ele é um telescópio infravermelho, ou seja, capaz de detectar radiação infravermelha que atravessa a poeira existente nas regiões de formação de estrelas. É como se estivéssemos num campo coberto de flores belíssimas que, devido à uma neblina espessa, permanecessem invisíveis aos nossos olhos. "Ver" no infravermelho significa poder ver através da neblina, ver as flores cobrindo o chão.

O mecanismo de nascimento de estrelas ilustra a complementaridade entre criação e destruição que observamos na natureza: o berçário de estrelas foi ativado por uma estrela com massa dezenas de vezes maior do que o Sol, que explodiu ao fim de sua curta existência. A explosão ejetou quantidades gigantescas de material e gás, gerando uma onda de choque que viajou pelo espaço interestelar até atingir uma nuvem de gás e poeira que até então estava em equilíbrio relativamente estável. Essa nuvem, despertada de seu equilíbrio pela onda de matéria e radiação proveniente da estrela defunta, sofreu variações em sua densidade: regiões com maior densidade começaram a colapsar devido à sua própria gravidade, o gás em seu interior aquecendo com o aumento de pressão, até que sua temperatura chegou a 15 milhões de graus Celsius. Quando isso ocorreu, hidrogênio começou a fundir-se em hélio, e uma ninhada de estrelas nasceu, iluminando o espaço à sua volta, trazendo consigo a memória de sua progenitora.

domingo, 4 de dezembro de 2005

A ciência (ou não) dos milagres

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das contraposições mais fundamentais entre ciência e religião pode ser resumida, talvez grosseiramente, da seguinte forma: em ciência, deve-se ver para crer, ou seja, somente após prova concreta, confirmada por grupos diversos de cientistas, pode-se afirmar que um fenômeno é real. Já em religião, ao menos na sua versão mais comum, é o oposto: deve-se crer para ver, ou seja, a fé faz com que o improvável, talvez mesmo o obscuro, seja aceitável, talvez até real. Querer acreditar torna possíveis coisas implausíveis. A igreja tem ciência disso, e leva declarações de milagres muito a sério. As autoridades eclesiásticas sabem que a empolgação da fé, a emoção do momento, pode iludir as pessoas. Na Itália, onde milagres parecem ocorrer várias vezes ao ano, um grupo de cientistas resolveu investigá-los, tentando separar o que é embuste do que aparenta ser realmente misterioso, ao menos à luz da ciência atual.


As autoridades eclesiásticas sabem que a empolgação da fé, a emoção do momento, pode iludir as pessoas


A Igreja Católica também tem o seu comitê investigativo, a Congregação do Vaticano sobre as Causas dos Santos, dedicada aos candidatos à santidade. A situação é delicada. Por um lado, ela não pode ofender a crença de seus membros: alguns milagres persistem desde tempos medievais. Por outro, a igreja tem que se proteger contra impostores. Se todas as relíquias que se espalharam pela Europa durante a Idade Média fossem reais, por exemplo, ossos de santos e papas, restos do sangue de Cristo ou de sua cruz, esses santos e papas teriam esqueletos de gigantes, e Cristo, rios de sangue e uma cruz do tamanho de um arranha-céu. A Congregação muitas vezes utiliza a opinião de médicos e cientistas em seu processo de certificação de milagres, uma posição muito louvável. Conforme afirmou um de seus membros, Peter Gumpel, "não pedimos que médicos declarem um milagre, apenas se existe alguma explicação cientificamente plausível para, por exemplo, uma cura. Muitas vezes, o que pode parecer um milagre hoje, poderá não sê-lo em cem anos, dado o avanço da ciência".

Um exemplo interessante é o do sangue de são Januário, um bispo que foi decapitado em 305 por um imperador romano. O milagre de são Januário vem sendo celebrado em Nápoles desde o século 14. O arcebispo exibe um frasco supostamente com o sangue do santo. Se o sangue estiver liquefeito, a população pode estar certa de que o futuro será benigno, um alívio para quem vive sob o monte Vesúvio, o vulcão que destruiu Pompéia. Caso o sangue permaneça sólido, o futuro não é nada promissor. Multidões assistem ao ritual em um estado de absoluto desespero. A Congregação do Vaticano evita interferir nesse tipo de situação.

Mas não a Comissão Italiana de Investigação de Fenômenos Paranormais, que tem dois Prêmios Nobel entre seus membros. Novamente, a intenção não é atacar a fé, mas desmascarar aqueles que se aproveitam dela para benefício próprio. O químico Luigi Garlaschelli, da Universidade de Pavia, investigou o milagre de são Januário. Estudos da substância no frasco não conseguiram demonstrar conclusivamente que ele contém sangue, embora acusasse traços de hemoglobina. Garlaschelli pesquisou que materiais seriam disponíveis em Nápoles no século 14 e preparou uma mistura que pode duplicar o milagre. Seu preparado, consistindo de pedra calcária, ferro e certos pigmentos, é sólido quando não sacudido e líquido quando sacudido, mais ou menos como ketchup. Há coisas que a ciência não explica. Mas por que não usá-la para as que explica, reservando o mistério para aquilo que realmente é misterioso?