domingo, 28 de novembro de 1999

Ciência, ética e imortalidade



A pesquisa, tanto nas universidades quanto nas indústrias, é financiada por uma combinação de fundos oriundos do governo e da iniciativa privada, isto é, a própria indústria. Daí que existe uma subdivisão não muito clara entre dois "tipos" de pesquisa, a básica e a aplicada.
Em princípio, a pesquisa básica seria a que não tem em vista sua aplicação imediata na criação e no aperfeiçoamento de tecnologias, estando mais preocupada em entender os fenômenos naturais. A pesquisa aplicada é, também em princípio, direcionada ao mercado, à criação de novas tecnologias que darão lucro para empresas ou independência tecnológica ao Estado.

Na prática, as fronteiras entre pesquisa básica e aplicada são difíceis, em muitos casos, de ser separadas. Daí que é muito comum certos projetos terem um financiamento híbrido. Projetos financiados pelo Estado, como os que vem fazendo a Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), aliás exemplarmente, podem ter aplicações futuras no mercado, como o Projeto Genoma, que busca o mapeamento genético do ser humano. Há o lado da pesquisa básica, a compreensão de nossa estrutura genética, e o lado aplicado, como a cura de doenças, que dependerá de procedimentos médicos que gerarão lucro.

Certas áreas de pesquisa têm um impacto imediato na sociedade. Dois exemplos importantes são a pesquisa na física nuclear e na área da engenharia genética. Em ambos os casos, há financiamento do governo e privado. Em ambos os casos, há a possibilidade de lucro. Na pesquisa nuclear, o lucro pode vir da geração de energia e das inúmeras aplicações médicas. No caso da engenharia genética, das várias aplicações na indústria de alimentos e na medicina. Em ambos os casos, as novas tecnologias podem ser usadas para destruir. A ciência tem o lado luz e o lado sombra.

Em um futuro não muito distante, vamos poder clonar seres humanos, cópias idênticas de você. Poderemos também criar "fazendas humanas", verdadeiras plantações de seres destinados apenas a nos prover com órgãos para transplantes. Esses seres seriam criados com cérebros atrofiados, primitivos, e não se oporiam a nada, como galinhas no matadouro. Eles seriam humanos? Quem teria direito de decidir isso? Um clone seu será mais ou menos humano que você? Esse clone não será "você" sob o ponto de vista psicológico, não terá suas memórias etc. Mas ele/ela poderá aprender tudo a seu respeito. E, se for possível construir um clone que não envelheça rápido (um problema que aflige os clones animais de agora), você poderá existir indefinidamente: imortalidade genética! É só ir de clone em clone...

Num futuro um pouco mais distante, talvez sejamos capazes de captar a essência do seu consciente, a informação neuronal do seu cérebro, o que você é, em um hipercomputador, um híbrido de tecidos orgânicos com chips rápidos. As pessoas poderão conversar com esse computador, que terá a sua voz. Quem é esse computador? Você? Existe então a possibilidade de uma imortalidade não só genética, mas também computadorizada, um programa que será a sua essência e que, em princípio, poderá existir para sempre. Você será uma máquina imortal.
Essas realidades meio que fantásticas ainda não existem. Mas elas poderão vir a existir, mais cedo do que nós pensamos. Seria inútil tentarmos controlar de alguma forma o progresso da pesquisa, genética ou qualquer outra. Ela irá acontecer do mesmo jeito, se não oficialmente, clandestinamente, o que é muito pior. Os cientistas têm o dever de alertar a população do impacto imediato e projetado de suas descobertas, sejam elas financiadas pela indústria ou pelo Estado: algumas questões vão além do lucro. Aqui entra a ética da ciência, na democratização da informação pela pesquisa. O debate do nosso futuro como espécie pertence a todos.

domingo, 21 de novembro de 1999

O paradoxo da unificação


O avanço da maioria das ciências depende da eficiência com que generalizações são feitas; dada uma grande variedade de fenômenos, é sempre muito mais atraente tentar explicá-los a partir de uma ou poucas idéias do que ter uma idéia para cada. Em física, nós usamos a mesma equação matemática para descrever vários fenômenos diferentes. É o caso das leis de movimento de Isaac Newton, que podem ser aplicadas na descrição de qualquer movimento que ocorra na natureza, contanto que: 1) ele não seja muito rápido quando comparado à velocidade da luz, de 300 mil quilômetros por segundo; 2) ele não seja o movimento de objetos muito pequenos, na escala molecular ou menor (atômica, nuclear etc.); 3) ele não esteja em uma região com fortes forças gravitacionais, como muito perto do Sol ou de um buraco negro. Ou seja, movimentos na escala "humana" são devidamente descritos pelas leis de Newton.

Quando tentamos descrever o mundo à nossa volta, temos de usar aproximações. Segundo Newton, o mundo pode ser descrito a partir de partículas (ou objetos) interagindo por meio de certas forças. O Sol atrai a Terra devido a sua gravidade (e a Terra atrai o Sol de volta; é a terceira lei de Newton); uma carga elétrica atrai outra de carga oposta ou repele sua irmã de mesma carga. A ação dessas forças nas partículas faz com que elas se movam em movimentos acelerados. Essa mesma descrição é usada em escalas bem menores, onde há outras forças, que só atuam em distâncias nucleares: as forças nucleares forte e fraca. Portanto, usando essa descrição do mundo a partir de partículas e forças, chegamos a uma realidade em que fenômenos podem, ultimamente, ser descritos por essas quatro forças atuando sobre partículas. Esse é o mundo de acordo com o método reducionista, que foi e é eficiente na nossa descrição da natureza e de suas complexidades.

O clímax do reducionismo seria chegar a uma descrição do mundo usando apenas uma força atuando nos blocos fundamentais da matéria: Essa força unificaria a ação de todas as outras quatro forças, e toda a matéria poderia ser reconstruída a partir desses blocos fundamentais. Essa teoria unificada é às vezes chamada de "teoria de tudo", um nome que, acredito, é extremamente infeliz. Sem dúvida, a evolução da física se deu, em grande parte, devido ao nosso esforço em unificar conceitos e idéias, em procurar os aspectos mais fundamentais da realidade, que se escondem por trás de uma aparente complexidade; a natureza, em muitos casos, revela uma simplicidade belíssima, que nós, a partir de nossas leis, conseguimos às vezes descrever.

Mas o sucesso pode criar vícios. Nas últimas décadas, apesar de todos os esforços por uma teoria de unificação, a física está cada vez mais fragmentada: para a maioria dos físicos, chegar ou não a uma teoria que descreva as quatro interações como apenas uma, a energias zilhões de vezes maiores que as do nosso dia-a-dia (em torno de 10 bilhões de bilhões de vezes maiores do que as energias que ligam um elétron a um próton para formar um átomo de hidrogênio), é irrelevante; essa teoria unificada não os ajudará a compreender melhor os processos térmicos que ocorrem em seus cristais ou no interior de Júpiter, ou como funciona a memória.

Aparentemente, há uma divisão "social" entre os físicos e outros cientistas com relação a essas questões. Em defesa da busca pela unificação, deve ser dito que é provável que, caso um dia tenhamos tal teoria, ela irá nos revelar aspectos profundos da natureza, impossíveis de prever. Essa é uma lição da história que não devemos esquecer. Por outro lado, deve-se também dizer que há problemas fundamentais na ciência que são independentes de uma teoria da unificação e, mais importante, igualmente relevantes. É na complementariedade das linhas de pesquisa que está a força da ciência, e não na competição por relevância.

domingo, 14 de novembro de 1999

Um mundo imerso em ondas



Ondas estão por toda a parte. Nós ouvimos porque ondas de som se propagam pelo ar, fazendo vibrar o delicado mecanismo dentro de nossos ouvidos. Quando vemos algo, nossos olhos estão captando ondas luminosas refletidas pela superfície do objeto. Os processos neuronais que traduzem esses estímulos externos em sensações são ainda objeto de muita pesquisa. Mas sabemos que os neurônios responsáveis por essa "tradução" funcionam devido à propagação de ondas elétricas pelos axônios. O mapa de realidade externa que é reconstruído em nosso cérebro é o resultado da propagação e interação de diversos tipos de ondas. Mas o que é uma onda?

Por incrível que pareça, essa pergunta tem várias respostas. Fundamentalmente, a existência de ondas deve-se ao amor que a natureza tem pelo equilíbrio estável; quando um sistema em equilíbrio é levemente perturbado, ele tenderá naturalmente a voltar à condição de equilíbrio. A superfície de um lago, ou de uma banheira cheia d'água, permanece intacta, a menos que algum estímulo externo perturbe esse equilíbrio. Rapidamente, ondas concêntricas se propagam a partir do ponto de contato, e a energia extra depositada ali é então dissipada: o sistema volta ao equilíbrio. Portanto, podemos dizer que ondas são uma propagação organizada de um desequilíbrio.

Em geral, ondas são resultados de perturbações lineares, ou seja, que provocam uma resposta proporcional ao estímulo: um estímulo duas vezes maior provoca uma resposta do sistema duas vezes maior. Quando o problema é formulado matematicamente, as soluções das equações representam as ondas que observamos no lago.

Nem todo estímulo gera uma resposta linear. Vários sistemas são dominados por efeitos não-lineares, em que um pequeno estímulo pode gerar uma resposta muito intensa e vice-versa, sem uma relação simples entre os dois. Um exemplo dramático é o de uma onda quebrando na areia. No mar, vemos ondas na superfície com períodos de cinco a dez segundos; esse regime é essencialmente linear.

Quando essas ondas se aproximam da praia, a menor profundidade aumenta a influência de termos não-lineares. A amplitude da onda aumenta, sua velocidade diminui e, não podendo mais se sustentar, ela quebra, fazendo com que o movimento organizado se torne turbulento. Mas seria prematuro concluir que toda a não-linearidade leva à destruição de ordem. Em certos sistemas, é justamente a não-linearidade que provoca a manutenção da onda, compensando exatamente sua tendência natural de se dispersar, como uma espécie de cola. Essas configurações estáveis e não-lineares são conhecidas como sólitons.

Em 1834, o engenheiro inglês J. Scott Russell relatou seu encontro com um sóliton, ou onda solitária: "Estava observando um barco puxado por dois cavalos em um canal estreito, quando os cavalos pararam subitamente. Uma massa de água formou-se em torno do barco e começou a se propagar a uma alta velocidade (15 km/h), uma formação solitária e elegante, que viajou pelo menos por dois ou três quilômetros, até eu perdê-la de vista."

Hoje vemos sólitons em praticamente todas as áreas da física, desde a propagação de sinais em fibras óticas e domínios magnéticos em vários materiais até a condução de certos impulsos nervosos. A não-linearidade também pode trazer a ordem. Claro, ondas não são restritas ao mundo visível. Átomos e partículas de matéria e de radiação (ou, no visível, luz) também são descritos por ondas. Essas "ondas de matéria" não sofrem dissipação como as ondas no mundo visível à nossa volta: a mecânica quântica mostra que ondas de matéria nunca param por si só. Talvez exista uma relação profunda entre ondas e nosso conceito de tempo. Afinal, mudanças ou transformações são uma manifestação da passagem do tempo.

domingo, 7 de novembro de 1999

Métodos para datar o passado

Quando cientistas dizem que certa espécie de dinossauro existiu há 100 milhões de anos ou que certos microrganismos têm mais de 1 bilhão de anos, certas pessoas levantam os olhos e perguntam: "Mas como isso é possível? Como os cientistas podem saber esse tipo de coisa, se eles não estavam lá para confirmar?" Essa pergunta é muito importante, e está na raiz de vários conflitos entre a ciência e a religião. Em particular, religiosos mais radicais, quando afirmam que a Terra tem apenas 6.000 anos porque assim "diz" a Bíblia, negam frontalmente esse tipo de informação científica. Por isso, hoje quero discutir como nós, cientistas, sabemos datar o passado com ótima precisão.

O método usa o decaimento de substâncias radiativas. Como sabemos, todo elemento químico tem um determinado átomo, cujo núcleo tem um certo número de prótons e nêutrons. Por exemplo, o elemento hélio tem dois prótons e dois nêutrons no núcleo. Já os isótopos de um elemento químico têm o mesmo número de prótons, mas um número diferente de nêutrons. Por exemplo, um isótopo de hélio, o He-3 (três é o número de prótons mais o de nêutrons), tem apenas um nêutron no núcleo. Conhecemos em torno de 1.500 isótopos, dos quais 305 ocorrem naturalmente e 1.200 são artificialmente produzidos. Dos que ocorrem naturalmente, 25 são isótopos radiativos, isto é, que decaem em outros isótopos e/ou elementos químicos. Esses radioisótopos naturais são usados para datar fósseis e materiais biológicos.

O datamento por radioisótopos baseia-se na lei da radiatividade, descoberta em 1902 por Ernest Rutherford e Frederick Soddy. Essa lei explica a desintegração de átomos radiativos. Todos os métodos usam o fato de que cada radioisótopo decai a uma taxa constante, sua meia-vida. O carbono-14 tem meia-vida de 5.730 anos. Portanto, uma amostra contendo 1 milhão de átomos de C-14 conteria 500 mil após 5.730 anos, 250 mil após 11.460 anos etc. Se soubermos a quantidade de átomos na amostra original, podemos facilmente estimar sua idade atual medindo sua radiatividade. Caso contrário, podemos estimar essa quantidade, pois todos os animais ingerem C-14 depositado em plantas verdes. Quando o animal ou a planta morrem, o nível de C-14 decai, sendo gradativamente transformado no isótopo de nitrogênio, N-14: medindo a quantidade de C-14 e N-14 na amostra, estimamos sua idade. O método é usado para amostras de até 40 mil anos, para evitar erros de contaminação.

Outros isótopos são usados para datar amostras mais antigas. O rubídio-87 é um isótopo com uma meia-vida de 48,8 bilhões de anos, decaindo no estrôncio-87, que é estável. O método compara a quantidade de dois isótopos, estrôncio-87 (que vem do R-87) e o estrôncio-86, e foi usado para datar as rochas mais antigas da Terra, com 3,8 bilhões de anos, no sul da Groenlândia. Quando usado em meteoritos, o método acusa uma idade de 4,6 bilhões de anos, aproximadamente a idade do Sistema Solar.

Existem vários outros métodos usando radioisótopos. Esses métodos são replicáveis e quantitativos. Albert Einstein dizia que a ciência sem religião é capenga e que a religião sem ciência é cega. Ou seja, que a ciência nasce de uma inspiração espiritual com relação ao desconhecido, que Einstein atribuía a uma inspiração religiosa. Por outro lado, a religião não pode negar os avanços da ciência, pois corre o perigo de ficar cega. Interpretar a Bíblia como uma descrição literal da história do Universo e da Terra vai de encontro aos achados da ciência moderna. Não acredito que a Bíblia tenha sido escrita com essa intenção, do mesmo modo que artigos científicos não devem ter um conteúdo religioso. É na complementaridade de ambos que reside a solução desse suposto conflito, na aceitação das missões e dos limites da ciência e da religião em nossas vidas.