domingo, 25 de julho de 2004

Intriga celeste

De todos os encontros entre grandes personagens da ciência, nenhum é mais fascinante que o dos astrônomos Tycho Brahe e Johannes Kepler nos primeiros meses do século 17. Brahe, nobre dinamarquês, era a antítese do plebeu alemão Kepler. Brahe, tirânico, meticuloso. Kepler, intenso, brilhante. Porém, um precisava do outro como a caatinga da chuva.

Brahe havia observado o movimento dos planetas durante décadas e queria comprovar seu sistema cósmico, no qual a Terra era o centro, o Sol orbitava à sua volta e outros planetas orbitavam o Sol. Brahe sabia que Kepler tinha talento para fazer os cálculos necessários. Só que o jovem astrônomo era um copernicano ferrenho. Para Kepler, não havia dúvida que o Sol era o real centro do cosmo. Após brigas e reconciliações, Brahe morreu, ao que parece devido a uma infecção urinária após uma bebedeira.

Um livro recente, "Intriga Celeste: Johannes Kepler, Tycho Brahe e o Assassinato por Trás de uma das Grandes Descobertas Científicas da História" (Doubleday, Nova York, 2004), de Joshua e Anne-Lee Gilder, usa estudos forenses para chegar a uma conclusão chocante: Tycho Brahe foi envenenado e o assassino era Kepler!

O livro chegou a mim pelo editor do "Jornal de História da Astronomia", que pediu que eu o resenhasse. A premissa dos autores baseia-se em três partes. Primeiro, que Brahe ingeriu uma dose elevada de mercúrio 13 horas antes de morrer. Segundo, que o mercúrio foi dado a ele para matá-lo. Terceiro, que o assassino foi Kepler, desesperado para pôr as mãos nos dados astronômicos de Brahe. A primeira parte parece estar correta. A segunda é possível, mas improvável. A terceira é absurda.

Existem muitos modos de contar uma história, especialmente quando os personagens estão todos mortos e não podem se defender de acusações. A versão dos Gilder é no mínimo tendenciosa, pintando Brahe como um nobre magnânimo e honesto e Kepler como um neurótico profundamente egoísta. Ambas são distorções.

Jan Pallon, da Universidade de Lund, na Suécia, usou uma técnica chamada emissão de raios X induzida por partículas para concluir que Brahe ingeriu mercúrio 13 horas antes de sua morte. Para isso, Pallon analisou uma amostra do célebre e longo bigode de Brahe obtida na exumação de seu corpo, em 1901. A técnica identifica as substâncias presentes na amostra. Como cabelos crescem, analisando partes distintas dos fios Pallon pôde reconstruir o que circulava pela corrente sangüínea de Brahe pouco antes da morte. Ele ingeriu mesmo uma alta quantidade de mercúrio. O que não significa que a dose houvesse sido letal, algo que o teste não pôde comprovar. Ainda assim, a primeira parte está confirmada.

Mas será que ele foi assassinado? Brahe, como muitos outros cientistas da época, lidava rotineiramente com mercúrio em seu laboratório alquímico. Ele tinha até uma receita para males da bexiga baseada em sulfato mercúrico. Será que ele tomou o remédio e errou, em seu estupor doentio, a dosagem? Os autores dizem que não. Segundo eles, Brahe, extremamente meticuloso, não cometeria um erro desses. Se ele não errou, será que ingeriu uma dose propositadamente alta e se suicidou? A hipótese é tão válida quanto a de assassinato.

Brahe andava deprimido desde a morte de seu irmão mais novo. Estava enfrentando sérias dificuldades financeiras na corte de Rodolfo 2º, que não pagava seu salário. Disputas profissionais corroíam a sua saúde. E, muito provavelmente, Brahe sabia que seu sistema cósmico estava errado, mesmo que não o admitisse a Kepler.

Ainda que Brahe tenha sido assassinado, não há nada que indique que Kepler fosse capaz de algo tão horrendo. Ser intenso e ambicioso não faz de alguém assassino. Jamais saberemos ao certo. Kepler deve ser deixado em paz e ter sua

domingo, 18 de julho de 2004

Férias no espaço

Que tal começar a planejar as férias de 2020? Destino: o espaço, ou melhor, um vôo a uma altitude de aproximadamente 100 km, considerada a fronteira entre a atmosfera terrestre e o espaço sideral. Preço? Talvez uns US$ 20 mil. Caro, sem dúvida. Mas o preço deverá cair com o tempo. Em 2050 será já bem mais barato. Parece ficção científica, mas não é. Muito em breve, o espaço não será província apenas de astronautas treinados pela Nasa ou organizações governamentais para-militares; o espaço será acessível a qualquer cidadão com dinheiro para pagar a passagem.

A era da exploração privada do espaço, com fins comerciais, começou dia 21 de junho, quando o piloto Mike Melvill, contratado da companhia americana Scaled Composites, alcançou uma altitude de 100 km com o foguete SpaceShipOne. Primeiro, a nave foi alçada a uma altitude de 15 km por um avião chamado White Knight. O foguete foi então liberado e, após planar por alguns instantes, seus jatos, usando um combustível combinando óxido nitroso (usado em carros "envenenados") e borracha, bem menos inflamável do que a mistura de hidrogênio e oxigênio usada pelo ônibus espacial da Nasa, o transportaram acima da atmosfera. O piloto relatou que a experiência foi "quase religiosa". "É uma coisa sensacional, a Terra lá em baixo. Deu para ver a sua curvatura." Ele não chegou a entrar em órbita, pois sua velocidade horizontal era de apenas 1 km por segundo e são necessários 8 km por segundo. Mas ele ficou em queda livre durante três minutos; para ilustrar o efeito, abriu um saco de balas e as deixou flutuando pela cabine até começar a viagem de volta.

Melvill é o primeiro homem a atingir o espaço em veículo construído pela iniciativa privada. Um novo capítulo foi escrito na história da exploração espacial. A empresa para a qual ele trabalha está atrás de um prêmio de US$ 10 milhões, o Prêmio X Ansari, que será dado ao primeiro foguete pilotado por humanos e construído pela iniciativa privada, capaz de carregar o peso equivalente a três pessoas até uma altitude de 100 km duas vezes em duas semanas. Ou seja, o veículo deve não só voar acima da atmosfera terrestre, mas, também, pousar e retornar ao ponto de partida. O veículo SpaceShipOne foi construído com uma doação de US$ 20 milhões de Paul Allen, co-fundador da Microsoft.

Mas a Scaled Composites não é a única empresa atrás do prêmio. Mais de 20 competidores estão inscritos, prometendo muita criatividade. Por exemplo, um grupo do Canadá terá seu foguete lançado do maior balão de hélio já construído. E isso é típico da conquista do ar pelo homem, motivar a iniciativa privada através de prêmios.

O próprio Santos Dumont voou em torno da Torre Eiffel e ganhou um prêmio de 100 mil francos, que doou para caridade. (Ele não precisava do dinheiro.) Em 1927, Charles Lindberg atravessou o Atlântico para ganhar o Prêmio Orteig, de US$ 25 mil. Agora é a vez do Prêmio X Ansari. Claro, o dinheiro é muito menos importante do que a glória do feito e sua repercussão financeira. Não é difícil imaginar que muita gente irá querer correr os riscos inerentes aos vôos espaciais para ter essa experiência "quase religiosa". Há aqui um paralelo entre a exploração marítima e aérea da Terra, que também teve riscos. Até hoje, navios naufragam e aviões caem. Mas o desejo de querer ir além é muito mais forte.

Em um futuro próximo, companhias especializadas irão levar pessoas ao espaço, além da atmosfera terrestre. (A Verig, Viação Espacial Rio Grandense.) Hotéis orbitais serão construídos, estações de banhos em que piscinas de águas térmicas imersas em cabines transparentes permitirão vistas únicas de nosso planeta, enquanto saboreia-se uma caipirinha. A gravidade poderá ser simulada com a rotação do hotel espacial, de modo que os clientes não fiquem flutuando durante todas as suas férias. (Mas quem quiser flutuar pode, em módulos sem rotação.) Dos hotéis orbitais até férias na Lua ou em Marte é só questão de tempo. E com a criatividade e competição de mercado que regem a iniciativa privada, não será nem tanto tempo assim.

domingo, 11 de julho de 2004

Depois de amanhã

Esse deveria ser o título, em português, do filme sobre mudança climática que em inglês se chama "The Day after Tomorrow". A fita já levou pancada de climatologistas do mundo inteiro, pela maneira facilitária com que trata de processos ultracomplexos da atmosfera, mas esta coluna vai se permitir com ela uma generosidade que não teve com a trilogia "Matrix", por exemplo.

Apesar de todas as barbaridades científicas do enredo, é bom avisar, logo de cara, que o filme é apreciável. Vá lá, é de doer o entrecho do pai ausente, depois arrependido, que parte em busca do filho ilhado numa Manhattan soterrada em neve e gelo, mas as imagens...
Com tanta mobília para queimar na Biblioteca Pública de Nova York, a fogueira de livros permanece uma estupidez, também, mas a visão de centenas de milhares de refugiados norte-americanos cruzando o rio Grande e invadindo ilegalmente o México permite esquecê-la rápido.

Mesmo o artifício de fantasiar uma coleção de vórtices gigantescos sobre o hemisfério Norte para explicar a glaciação em cinco minutos aparece como licença cinematográfica aceitável. Mais, ainda, o cargueiro que desliza silencioso e fantasmagórico diante da biblioteca.
De um ponto de vista político atual, é de dar um prazer quase perverso assistir -ainda que só no escuro do cinema- a um presidente norte-americano desculpar-se em cadeia de TV por não ter dado crédito, no devido tempo, a cientistas alarmados com a possibilidade de uma mudança súbita no clima da Terra. E isso em solo estrangeiro -mexicano, para piorar-, agradecendo a generosidade de países que costumava chamar de Terceiro Mundo.

A onda gigantesca que se aproxima da Estátua da Liberdade também é de arrepiar -assim como o ícone nova-iorquino coberto de pingentes de gelo. Idem para a reciclagem da cena da fenda oculta sob a camada de neve, um clássico dos filmes sobre geleiras, que ao se abrir revela o imenso vazio de um shopping center. Cinema é isso, imagens para não esquecer.

Por que não mobilizá-las, então, na propagação de consensos científicos que o governo mais poderoso do planeta se recusa a reconhecer?

Há anos o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC, como é conhecido em inglês o grupo de cientistas investido pela ONU) afirma que não há mais dúvidas quanto ao efeito da espécie humana sobre o clima. Veículos, indústrias e usinas termelétricas emitem compostos de carbono que agravam o efeito estufa, retendo mais radiação solar na atmosfera, aquecendo-a além da conta. O IPCC projeta que tal acumulação de gases possa causar um acréscimo de pelo menos 1C até o ano 2100.

Nem por isso George W. Bush e seus amigos da indústria do petróleo dão o braço a torcer. Escolhem estudos e cientistas que se especializaram em levantar dúvidas sobre tais projeções, uma vez que elas são coalhadas de incertezas (como reconhece o próprio IPCC). Constituem uma minoria entre climatologistas, mas -o que fazer?- os americanos simplórios gostam desses heróis quixotescos, que lutam contra tudo e contra todos para afirmar a própria convicção.

Quixote por Quixote, é preferível ver Dennis Quaid espinafrando o presidente dos EUA, numa fita ligeiramente implausível, do que aturar Bush, na vida real, dando uma banana para o resto do mundo.

domingo, 4 de julho de 2004

As formigas, o grilo e as dimensões escondidas

Uma formiga, andando sobre um fio, não tem muita escolha, a não ser andar para frente ou para trás. Uma outra, andando sobre uma bola sempre na mesma direção, irá caminhar em círculos fechados, voltando sempre ao seu ponto de partida.

Em sua inocência de inseto, ela não se dá conta de que está repetindo o mesmo trajeto, espantada, após horas de caminhada carregando uma pesada folha, de como se afastou do formigueiro. De repente, alguém chuta a bola, e formiga e folha voam até bater no fio onde está a outra. Caem as duas no chão e, felizes da vida, percebem que podem se locomover outra vez em duas direções, norte-sul, leste-oeste. "Que alívio, achei que ia ficar sempre andando em linha reta, sem saber como chegar ao formigueiro", diz a primeira. "E eu?" -diz a outra-, "caminhei, caminhei e não sabia aonde estava indo, pois tudo parecia igual."

Um grilo, passando pelas duas, escuta a conversa. "Vocês formigas são muito burras mesmo", diz ele, saltando alegremente sobre as duas. "Aliás, burrice é uma característica de seres bidimensionais. Nós, grilos, somos privilegiados, pois podemos pular, além de andar. E eu digo para vocês, nada como um bom pulo para se sentir em paz com o mundo."

As formigas olham uma para a outra, batem as antenas e resolvem ir embora sem dar bola para o pretensioso grilo. "Que grilo mais metido, só porque ele pode pular, e nós, não, ele se acha todo importante", diz uma delas. "É, grilo é assim mesmo", responde a outra.

Na volta ao formigueiro, elas se deparam com uma árvore tombada. O tronco, já corroído, formava um túnel. Elas resolvem entrar para ver se encontram pulgões para o almoço. "Olha só que engraçado, se eu andar para frente e para trás, esta árvore é igual ao fio onde eu estava", diz uma. "É mesmo", responde a outra. "Se eu andar para o lado, acabo voltando ao ponto de onde comecei, feito o lugar onde eu estava antes."
O grilo, que seguiu as duas, entra pulando dentro do tronco. "Eta burrice, vocês nunca viram um cilindro? Ci-lin-dro. Em uma direção é reto e na outra é fechado, como um círculo."

"Ih, grilo, deixa a gente em paz, tá?" -diz uma formiga. "Nós temos muito o que fazer." O grilo sai pulando, balançando a cabeça.
Um físico e seu filho de oito anos estavam passeando pela mesma floresta. "Filho, você sabe que nós vivemos em três dimensões, certo? Norte-sul, leste-oeste, em cima e embaixo. Olha só aquelas duas formigas. Elas só andam em duas dimensões e nem sabem que existe uma terceira. Já aquele grilo ali, pulando sobre as duas, sabe que existem três."

O menino, muito esperto, responde: "Pai, é como a gente. No carro, andamos em uma dimensão, para frente ou para trás. Em um barco, andamos em duas. E em um avião, em três."

O físico olha para o filho, todo orgulhoso. "Isso mesmo! Filho, tenho uma idéia. Vamos confundir aquele grilo. Eu trouxe aqui um cano tão fino que ele não vai ter espaço para pular dentro dele. Põe ele dentro." O garoto pega o grilo e empurra o coitado para dentro do cano.

As formigas, que estão de longe assistindo à cena, rolam no chão de rir. "E agora, seu grilo?" -diz uma-, "você vai pular aí dentro também?" O grilo, humilhado, tenta atravessar o cano com o máximo de dignidade. O físico pega outro cano, ainda mais fino. O menino logo exclama: "Ô pai, esse aí é fino demais, nem as formigas dão dentro."

"Exatamente", diz o físico. "Mesmo que o cano seja perfeitamente real, nem as formigas nem o grilo poderão explorar o seu interior. Para esses insetos, o cano fino é uma dimensão invisível."

"Quer dizer que é possível que existam dimensões invisíveis para nós também, tão pequenas que não podemos explorá-las?" -pergunta o menino. "Exatamente, filho. Existem teorias que dizem que o espaço tem dez dimensões, e não três. As seis dimensões extras são tão pequenas que não podemos vê-las. O que não significa que elas não existam. Veja só."

O físico pega uma aranha bebê, bem pequenina, e a põe dentro do cano fino. Após alguns segundos, ela sai pelo outro lado, feliz da vida. "Para essa aranha, o mundo dentro do cano é perfeitamente real." O menino olha para o pai, desconfiado. "Mas por que dez dimensões, pai? E por que só três são grandes?" O físico sorri. "Ah filho, isso a gente vai ter de deixar para um outro passeio pela floresta."