domingo, 29 de outubro de 2006

Os bastidores da ciência



Descobertas precisam ser avaliadas antes de virar notícia


Existe uma percepção popular dos cientistas como sendo os donos da verdade. Quando a ciência diz que uma coisa é desse jeito e não de outro, ou que o que ocorre nesse fenômeno é isso e não aquilo, as pessoas aceitam sem saber por quê. A ciência é uma grande caixa preta. Uma das maiores dificuldades em se levar ciência ao público é explicar como essas "verdades" são obtidas sem transformá-las em dogmas. Afinal, é essa a distinção essencial entre ciência e religião: em ciência, conclusões são obtidas empiricamente, por meio de um processo progressivo de tentativa e erro, enquanto em religião a verdade é revelada por processos não explicáveis, como textos sagrados escritos por divindades sobrenaturais, visões milagrosas ou profecias misteriosas.

É muito mais fácil trazer apenas o resultado das pesquisas científicas, as descobertas feitas por esse ou aquele grupo, pelo Telescópio Espacial ou por um físico teórico, do que explicar como elas são feitas, os detalhes do processo de descoberta. Por exemplo, "astrônomos descobrem que o centro de nossa galáxia esconde um buraco negro gigantesco, com massa três milhões de vezes maiores do que o Sol". Fantástica mesmo essa descoberta, e parece ser verdadeira em quase todas as galáxias: os buracos negros, esses escoadouros cósmicos de matéria, são bem mais abundantes do que se esperava. Mas por que o público deve acreditar nisso? Qual a diferença entre essa asserção e outra como "hoje vi o fantasma de meu avô se barbeando comigo no espelho do banheiro"?

Na descrição da descoberta científica está implícita a compreensão de como cientistas trabalham: quando cientistas afirmam algo publicamente, é porque essa afirmação passou já por todo um processo de checagem que garante que ela esteja correta. Em princípio, as coisas deveriam funcionar da seguinte forma: um grupo de cientistas faz uma descoberta qualquer. O próximo passo é enviar um artigo explicando a descoberta a uma publicação especializada, lida por outros cientistas que fazem pesquisa nessa área. O editor da publicação envia o artigo para dois ou três especialistas, que dão o seu parecer. Se surgir alguma questão ou erro, o artigo é enviado de volta aos autores. Se os autores concordarem com o parecer dos especialistas, eles consertam o artigo. Se não, têm a liberdade de confrontá-los, com o editor servindo de mediador. Quando o artigo é finalmente aceito para publicação é porque os autores e os especialistas concordam com a versão final. O artigo é então lido por outros cientistas da área. Seu sucesso é medido pelo número de vezes que é citado por outros artigos: um número elevado de citações demonstra o interesse e a aprovação por parte da comunidade científica.

Quando o resultado chega à imprensa, deveria ter passado por esse processo. Pelo menos, seus autores deveriam ter conversado com outros cientistas ou dado seminários sobre seus resultados. Nem sempre isso ocorre. Na euforia da descoberta, cientistas contatam a imprensa e resultados são disseminados antes de serem propriamente checados. Outro problema é que descobertas que envolvem experimentos complexos às vezes não são duplicadas. Portanto, o processo é eficiente mas não perfeito. Afinal, ele é produto de pessoas que, mesmo bem intencionadas, não são infalíveis. Para complicar, existe a tentação da fama, das bolsas de pesquisa, dos prêmios. Vide o exemplo do pesquisador coreano que forjou os resultados sobre clonagem humana. O divulgador de ciência tem que filtrar, dentro do possível, o certo do incerto. Caso contrário, as pessoas não têm como diferenciar entre buracos negros em galáxias e fantasmas em espelhos.

domingo, 15 de outubro de 2006

Fóssil cósmico



Medir uma variação de temperatura tão pequena é um feito tecnológico incrível


Neste ano, muito merecidamente, o Prêmio Nobel de Física foi para dois pesquisadores americanos da área de cosmologia, John Mather e George Smoot. O que eles mediram foi nada mais nada menos do que as propriedades da radiação cósmica de fundo, fóssil principal do Universo primordial, produzida quando o cosmo tinha apenas 400 mil dos seus atuais 14 bilhões de anos. É essa radiação que dá ao modelo do Big Bang sua ampla aceitação na comunidade científica. Ela mostra que o Universo teve mesmo uma infância muito quente e densa, e que ele vem se expandindo e resfriando desde então.

Na sua infância mais tenra, quando tinha apenas uns cem mil anos, o cosmo era muito diferente: não existiam galáxias ou estrelas. O espaço era preenchido por uma sopa de partículas -na maioria os prótons, nêutrons e elétrons que compõem os átomos, e alguns núcleos atômicos leves, como o hélio e o lítio-, somada a radiação eletromagnética. Essa radiação, segundo a física moderna, pode ser interpretada como também sendo composta de partículas, chamadas fótons. Cada tipo de radiação eletromagnética -a luz visível, o ultravioleta, o infravermelho, as microondas ou os raios X -tem fótons com energia determinada. Por exemplo, a luz visível tem mais energia do que as microondas e menos do que os raios X.

Pois bem: segundo o modelo do Big Bang, naquela época os fótons, os elétrons e os prótons interagiam tão furiosamente que, a cada vez que os prótons e elétrons queriam juntar-se para formar átomos, os fótons interrompiam o flerte, num triângulo amoroso que não se resolvia. Finalmente, quando o Universo atingiu em torno de 400 mil anos e resfriou-se um pouco mais, os fótons perderam energia a ponto de permitir que elétrons e prótons formassem os primeiros átomos de hidrogênio, o elemento químico mais simples.

A partir daquele momento, os fótons passaram a viajar livremente pelo espaço, dando origem à radiação cósmica de fundo. Ela havia sido prevista já no final dos anos 1940, por George Gamow, Ralph Alpher e Robert Hermann, os primeiros a sugerir o modelo do Big Bang. Sua existência foi confirmada em 1964, o que rendeu o Prêmio Nobel aos seus descobridores, Arno Penzias e Robert Wilson. O que Mather e Smoot fizeram foi estudar as propriedades da radiação em grande detalhe e verificar uma outra previsão feita por físicos teóricos, a de que a radiação cósmica de fundo carrega informação do processo responsável pelo nascimento das galáxias e da sua distribuição no espaço.

Mather e Smoot fizeram suas medidas fora da Terra, com o satélite da Nasa batizado Cobe (do inglês Cosmic Background Explorer), entre 1989 e 1990. Mather e seu time mostraram que, de fato, a radiação é extremamente homogênea, tendo a mesma temperatura em todos os pontos do espaço, medida em 2,75 Kelvin, ou -270,25C. Muito frio o cosmo atual! Mas existe uma variação de temperatura de uma parte em cem mil, ou seja, de um centésimo de milésimo de grau. Essa variação é devida à aglomeração de enormes nuvens de gás, cuja gravidade afeta a temperatura dos fótons. Essencialmente, eles perdem energia ao tentar escapar das nuvens e a ganham ao cair nelas, como uma criança num escorrega. Esse ganho ou perda de energia causa a minúscula variação de temperatura medida pelo Cobe. Medir, usando um satélite, uma variação de temperatura tão pequena é um feito tecnológico incrível. Como disse Smoot metaforicamente, "foi como ver a face de Deus": a radiação é um registro das variações gravitacionais que levaram às primeiras galáxias e, finalmente, a nós.

domingo, 8 de outubro de 2006

O elétron e o futebol



Para a física do século 19, átomos não poderiam existir


Outro dia, um amigo me fez uma pergunta aparentemente ingênua sobre o elétron. Como toda boa pergunta, por trás dela escondem-se grandes revelações. No caso, as idéias da física do século 20 que revolucionaram nossa concepção da matéria, lançando a sociedade na era atômica e digital. "Marcelo, se o elétron tem carga elétrica negativa, o próton positiva e cargas opostas se atraem, por que os elétrons nos átomos giram em torno dos prótons sem cair? O que os segura?"

A pergunta é inspirada pelo modelo do átomo como sendo uma espécie de minissistema solar, com os elétrons girando em torno do núcleo como os planetas em torno do Sol. No caso dos planetas, a força responsável é a gravidade. Por que os planetas não caem sobre o Sol? A explicação é bem diferente da dos átomos.

Em vez de planetas girando em torno do Sol, vamos usar um exemplo mais palpável, uma pedra atraída pela Terra. Se soltarmos a pedra de certa altura, ela cai na vertical em direção ao centro da Terra. Se atirarmos a pedra na horizontal, ela já não cai mais na vertical, mas descreve uma curva parabólica. Quanto maior a velocidade da pedra na horizontal, mais longa a curva e mais longe ela cai. Um satélite em órbita em torno da Terra é como essa pedra; só que viajando a uma velocidade tão alta que continua sempre caindo, sem tocar no chão. Os planetas também são satélites "caindo" sobre o Sol. E por que não caem de vez? Por que no espaço não tem ar e, portanto, não tem atrito.

"Ah, então é isso? Os elétrons giram sem cair em torno do núcleo atômico porque não existe atrito no átomo?" perguntou meu amigo. Infelizmente não é tão simples. A força elétrica é bem diferente da gravitacional. Quando uma carga gira em torno de outra, ela emite radiação e perde energia. Aos poucos, o elétron cairia sobre o núcleo com certeza. Essa é a conclusão à qual chegaríamos se usássemos a física do século 19 para descrever os átomos: segundo ela, os átomos não podem existir!

A solução foi criar uma nova física, obedecida por objetos de dimensões atômicas. O mundo do muito pequeno obedece à leis muito diferentes das nossas. Onde começar? Em 1913, Niels Bohr propôs a primeira extensão do modelo do átomo além de um minissistema solar. Afirmou que o elétron não cai no núcleo porque não pode: suas órbitas são como degraus de uma escada.
Podemos estar em um ou outro mas não entre dois. Imagine então o átomo como uma espécie de um minúsculo Maracanã. O núcleo fica no centro do gramado. Os elétrons podem correr em torno dos degraus da arquibancada. De vez em quando, pulam de um degrau a outro. Se vão para cima usam energia, para baixo, liberam energia. Porém, os elétrons jamais podem sair da arquibancada invadir o campo. Bohr não explicou o porquê da proibição. Mas o modelo funcionou bem o suficiente para que ficasse claro que ele tinha elementos da explicação final.
Em 1925, foi proposto que o elétron não fosse uma simples bolinha de bilhar. Objetos de dimensões atômicas não podem ser descritos com imagens do nosso dia-a-dia. Não sabemos o que o elétron é. Apenas como se comporta, o que já é suficiente. E seu comportamento obedece ao princípio da incerteza, que diz que não podemos medir sua posição e velocidade com precisão arbitrária.

Ou seja, se acharmos que o elétron está pertinho do núcleo, já não está mais. Sua posição sempre vai ser incerta, numa espécie de vibração incessante. Feito uma partida de futebol; como vimos na Copa do Mundo passada, essa coisa de ser favorito é muito incerta também.

domingo, 1 de outubro de 2006

Ciência e democracia

Algo de terrível ocorreu no país que se diz o grande exportador de democracia, os EUA

Em época de eleição, é sempre importante revermos certas premissas sociopolíticas que permitem o livre fluir das idéias e, com isso, estabelecem as bases de uma cultura na qual a democracia é celebrada e não condenada. Um dos fundamentos da democracia é a possibilidade de cada cidadão ter liberdade de expressar suas opiniões e, através de seus representantes políticos, vê-las debatidas e, se possível dentro de uma maioria, vê-las abraçadas pela sociedade.

Ou seja, votamos para que nossas idéias e opiniões sejam representadas para o resto da sociedade pelos políticos que elegemos. Portanto, os políticos deveriam ver com muita seriedade o seu papel de representantes da opinião pública, das pessoas que os escolhem como a sua voz perante o resto da sociedade. Quando não o fazem, e, infelizmente, isso ocorre com mais freqüência do que os eleitores gostariam, é porque não levam o seu trabalho -e a confiança que neles foi depositada por milhares ou mesmo milhões de pessoas- a sério.

Claro, isso não é novidade, ou não deveria ser, para ninguém. Me vem em mente a confiança que depositamos nos nossos cientistas e engenheiros ao entrarmos num carro ou avião. Se essas máquinas não funcionarem perfeitamente, acidentes poderão ocorrer, muitas vezes com resultados fatais. Se não confiássemos nos engenheiros e cientistas, jamais viajaríamos de avião. Se televisões e computadores explodissem quando fossem ligados não assistiríamos televisão ou usaríamos computadores: a sociedade entraria em pane e retornaríamos ao século 19 -quando, aliás, a democracia ainda usava calças curtas nos EUA e não existia em vários outros lugares. Imagine se o mesmo ocorresse com a política: se não confiássemos nos nosso políticos, jamais votaríamos neles. Ou em ninguém. O resultado seria desastroso: sem eleição não pode haver democracia e, sem democracia, a opinião do povo não é representada.
Sem essa confiança a sociedade não funciona, política ou tecnologicamente. Algo de terrível ocorreu com o processo democrático recentemente no país que se diz o grande exportador de democracia para o mundo, os EUA. Menciono isso como um exemplo a não ser seguido por nós, mesmo porque muito possivelmente sofreremos, nós e o resto do mundo (inclusive os EUA), as conseqüências dele.

Em fevereiro, cientistas trabalhando para a Secretaria Nacional da Atmosfera e Oceanos (Noaa) dos EUA resolveram criar um painel para debater a possível relação entre furacões e o aquecimento global. Dadas as terríveis conseqüências dos furacões, que causam devastação e morte em proporções apocalípticas, o painel é extremamente importante. Vide o furacão Katrina, que arruinou a cidade de Nova Orleans. O painel, segundo a prestigiosa revista científica "Nature", concluiu que, de fato, existe uma relação entre o aquecimento global e o aumento no número e intensidade dos furacões. Os resultados do painel deveriam ser publicados em maio. Só que não foram. Diretores da Noaa bloquearam sua publicação, dizendo que o texto não representa a posição oficial da agência. O Estado interferiu na livre circulação das idéias.

Qual é a posição oficial? Os EUA não assinaram o Protocolo de Kyoto, que visa controlar a emissão de gases poluentes que cientistas acusam de causar o aquecimento global. Controlá-los significaria impor restrições às indústrias, o que acarretaria em custos. A quem, então, está servindo o governo americano? Certamente não à sua população ou à população mundial, que sofre as conseqüências claras dos furacões, entre outras. Essa visão de curto prazo vai custar muito mais no futuro.