domingo, 27 de abril de 2003

O quarteto fantástico

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Existem muitas janelas para os céus. Aquela aberta ao olho humano -as cores que percebemos diretamente entre o vermelho e o violeta do arco-íris- não passa de uma mera fresta no enorme espectro da radiação eletromagnética. Apesar de invisível aos nossos olhos, grande parte deste espectro é bastante familiar: os raios X usados em medicina e odontologia, as lâmpadas ultravioleta usadas para melhorar o bronzeado (muito populares onde moro, no norte dos EUA), as ondas de rádio, o infravermelho do controle remoto. Existe todo um mundo de radiação à nossa volta que, mesmo invisível aos olhos, não deixa de ser real. A reconstrução da realidade física não deve se limitar à porção do espectro eletromagnético que vemos: o invisível é tão importante quanto o visível. E, às vezes, muito mais.

Por trás dessa radiação toda está um fato muito simples: tudo na natureza é composto por átomos. Por sua vez, os átomos são compostos por partículas que carregam pequenas cargas elétricas; o elétron, negativo, girando em torno do núcleo, positivo. Quando cargas elétricas são aceleradas, elas irradiam ondas eletromagnéticas. As características da radiação emitida dependem de seu movimento. Movimentos mais energéticos emitem, em geral, radiação mais energética. O que distingue um tipo de radiação -a luz amarela, por exemplo- de outro -como o raio X- é a sua frequência. Quanto mais energética a radiação, maior é a sua frequência.

Por exemplo, quando o controle de temperatura de um fogão elétrico é girado apenas um pouco, sentimos o calor saindo da resistência, mas ela não emite luz. Essa radiação invisível faz parte do infravermelho. Ao aumentarmos a temperatura, a resistência começa a brilhar em um tom de vermelho. A luz visível tem maior frequência (e, portanto, energia) do que a radiação infravermelha.

Quando olhamos para o céu noturno, vemos o que emite luz visível, as estrelas, os planetas, a Lua e, em noites claras, nuvens de gás na Via Láctea. Mas essa é apenas uma fresta da radiação que existe nos céus. A partir da segunda década do século 20, foram desenvolvidos instrumentos para "ver" as outras partes do espectro eletromagnético, de modo a obter a maior quantidade possível de informação sobre o cosmo. Hoje, astrônomos vasculham os céus com vários tipos de telescópio, capazes de detectar radiação em praticamente todas as partes do espectro eletromagnético, desde os raios X emitidos por matéria sendo sugada por buracos negros até ondas de rádio emitidas por objetos muito distantes, a bilhões de anos-luz do Sistema Solar.

Melhor ainda é ter telescópios no espaço, onde eles estão livres das várias perturbações causadas pela atmosfera da Terra. Com isso em mente, a Nasa projetou quatro telescópios-satélites. Pense no espectro eletromagnético como uma torta, com cada satélite podendo comer apenas parte dela. O mais famoso é o Telescópio Espacial Hubble, lançado em 1990, que vem fornecendo imagens espetaculares do cosmo. O Hubble trabalha na porção visível do espectro.

Outro é o Observatório Compton de Raios Gama, a radiação mais energética que existe, emitida quando estrelas explodem ao fim de sua vida. O terceiro é o Telescópio de Raios X Chandra, lançado em 1999 que, entre outras coisas, é usado na observação de buracos negros.

O último integrante do quarteto, com lançamento previsto para agosto, detecta infravermelho. Sua missão principal é observar o nascimento de planetas extra-solares, orbitando estrelas distantes. Será que esses sistemas solares são muito diferentes do nosso? Ou será que nosso Sistema Solar é típico? Em breve teremos uma resposta. Mas, se o que aprendemos no decorrer da história da ciência serve como guia, nada no Universo se distingue por ser único, mas por ser múltiplo.

domingo, 20 de abril de 2003

Como datar a origem da vida

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Imagine observar uma pessoa idosa durante um tempo sem poder conversar com ela e tentar, a partir dessas observações, reconstruir detalhes de sua vida: onde cresceu, se teve doenças sérias ou filhos, se foi ou é casada etc. Por mais atento que você seja, certamente apenas partes da história serão óbvias, aquelas que deixaram marcas distintas ou outras pistas. Uma cicatriz, uma aliança no dedo, o jeito de se vestir.

Em várias áreas da ciência a proposta é, de certa forma, semelhante: não podendo voltar diretamente ao passado, temos de obter o máximo de informação sobre o que ocorreu através de pistas indiretas. Esse é o caso, por exemplo, da paleontologia, que tenta reconstruir as diferentes formas de vida que existiram na Terra através de fósseis, ou de partes da geologia, que tenta reconstruir a história da Terra, a sequência de suas várias transformações físico-químicas e estruturais, através do estudo da composição mineral de suas várias camadas. De fato, descobertas em paleontologia e em geologia muitas vezes andam de mãos dadas -e as crises, também.

Veja o exemplo da extinção dos dinossauros. Apenas na década passada ficou claro que os dinossauros foram extintos há 65 milhões de anos, devido a um impacto devastador de um asteróide de aproximadamente dez quilômetros de diâmetro sobre a Terra. Paleontólogos sabiam da extinção relativamente rápida dos sáurios gigantes, mas apenas quando geólogos descobriram a enorme cratera na península de Yucatán, no México, o debate foi finalizado. Se essa história é um exemplo da colaboração entre os dois grupos (nem sempre amistosa, deve-se dizer), uma nova crise mostra sua importância: a reconstrução das primeiras formas de vida na Terra.

A infância da Terra foi extremamente violenta. Durante o seu primeiro bilhão de anos, ela e os outros planetas do Sistema Solar foram furiosamente bombardeados por inúmeros asteróides e planetóides. A Lua, por exemplo, parece ter sido a sobra de uma colisão entre a jovem Terra e um planetóide do tamanho de Marte. Essa fase violenta terminou aproximadamente há 3,7 bilhões de anos. E não é coincidência que os primeiros sinais de vida também datem dessa época. Aparentemente, assim que as coisas se acalmaram por aqui, os primeiros seres que podemos chamar de vivos apareceram: conjuntos complexos de moléculas à base de carbono, capazes de se reproduzir. Na Austrália, foram descobertos restos de colônias de micróbios chamadas de estromatólitos -um dos primeiros testemunhos da vida na Terra, datados em 3,5 bilhões de anos. Em Isua, Groenlândia, restos com 3,7 bilhões de anos. E antes disso?

A situação fica muito complicada. Três bilhões e meio de anos é muito tempo, mesmo em geologia. Tempo suficiente para as rochas terem passado por inúmeras transformações, que, infelizmente, destroem e corrompem fósseis de seres que porventura tenham vivido nessa época ou antes.

Ao procurar sinais da vida que existia há bilhões de anos, geoquímicos têm de achar pistas muito discretas, traços infinitesimais de compostos de carbono gravados ainda nas rochas. O problema é que alguns desses traços podem ser criados por processos inorgânicos, ou seja, que não envolvem seres vivos ou seu metabolismo. Esse é, aparentemente, o caso de achados em rochas da Groenlândia, datados em 3,8 bilhões de anos, ou seja, ainda no meio do bombardeio primordial. Esses seriam, se provados corretos, os primeiros sinais de vida na Terra.

Qualquer que seja o veredicto final (as coisas não vão bem para os defensores da vida com mais de 3,8 bilhões de anos), o impressionante é a possibilidade de a vida ter existido em condições tão extremas. Esse é o aspecto mais importante do debate, seres vivos sobrevivendo em ambientes hostis. Nem é necessário voltar 3,8 bilhões de anos, 3,7 bilhões já está bastante bom, pois a Terra era então um verdadeiro inferno.

A consequência é óbvia: se formas de vida existiram aqui em condições tão extremas, devem ter necessariamente existido em outros planetas pela galáxia. Nesse caso, a curiosidade fica ainda mais aguçada: que formas de vida serão essas? A esperança é que elas sejam mais do que meros micróbios, quem sabe até inteligentes, se questionando, como nós, se existem outras formas de vida na galáxia.

domingo, 13 de abril de 2003

Três visionários cósmicos

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Para uma pessoa vivendo no século 21, o fato de o Sol ser o centro do Sistema Solar e de a Terra e os outros planetas girarem à sua volta é tão conhecido que é considerado óbvio. Porém, se perguntarmos como é que sabemos disso, as coisas começam a ficar menos óbvias. Afinal, o que vemos da superfície da Terra é o céu girando à nossa volta e não vice-versa: é o Sol que nasce no leste e se põe no oeste todos os dias; são as estrelas que parecem girar nos céus com o passar da noite, o mesmo ocorrendo com os planetas.

Mais ainda, como podemos afirmar que a Terra gira em torno de seu eixo, se não sentimos essa rotação? Por que ninguém fica tonto com ela?

Tenho certeza de que a maioria dos leitores sabe responder a essas perguntas. Na Grécia Antiga, as coisas eram muito diferentes. Em torno de 600 a.C., quando os primeiros filósofos ocidentais começaram a explicar o funcionamento da natureza com argumentos racionais e não ações divinas, não havia razão para acreditar que a Terra estivesse em movimento. Aliás, esse é um excelente exemplo de como as aparências enganam.
Cerca de 150 anos se passaram até que alguém propusesse que a Terra não era imóvel, mas que girava em torno do centro do cosmo, juntamente com os demais planetas, a Lua e as estrelas. O interessante dessa idéia, proposta por Filolau de Crotona em torno de 450 a.C., é que o centro do cosmo não seria ocupado pelo Sol, mas pelo "fogo central", uma espécie de fornalha cósmica onde se originavam todo o calor e toda a luz.

O Sol, que também girava em torno desse centro, simplesmente redistribuía a energia do fogo central pelo resto do cosmo. Filolau era seguidor das idéias do legendário Pitágoras, que havia fundado uma tradição místico-racional baseada na adoração dos números e de sua capacidade de descrever a beleza e harmonia do mundo natural.

Algumas fontes atribuem a Pitágoras a suposição de que a forma da Terra era esférica. Suas idéias, combinando geometria e aritmética na descrição da natureza, influenciaram alguns dos maiores pensadores e cientistas da história, de Platão a Kepler e mesmo Einstein.

Aparentemente, Filolau propôs o movimento da Terra para explicar a rotação diurna dos céus: em vez de todos os planetas, o Sol e as estrelas girarem em torno da Terra, ele propôs que a Terra giraria em torno do fogo central. Essa rotação teria o mesmo efeito que percebemos ao girarmos em um carrossel: o mundo gira em sentido contrário.

Claro, teria sido mais fácil supor que a Terra gira em torno de si própria, mas isso não correspondia à inspiração mística de Filolau, segundo a qual o centro do cosmo era a morada de Zeus, a fonte de toda a luz.

Cerca de cem anos depois de Filolau, outro pensador grego, Heráclides do Ponto, deu o pulo-do-gato: ele propôs que a rotação diurna dos céus resultaria da rotação da Terra em torno de si mesma. Heráclides propôs ainda que os planetas Mercúrio e Vênus girariam em torno do Sol, e não da Terra. Ou seja, ele propôs um cosmo híbrido, com o Sol e os outros planetas (na época Marte, Júpiter e Saturno) girando em torno da Terra, mas não Mercúrio e Vênus.

Contemporâneo de Aristóteles, Heráclides não foi levado a sério. Segundo Aristóteles, a Terra deveria ser o centro imóvel do cosmo. Afinal, diria ele, como podemos provar que a Terra gira se, quando atiramos uma pedra para cima ela retorna às nossas mãos? Se a Terra girasse, seríamos carregados pela sua rotação, e a pedra cairia atrás de nós. Não se conhecia então o conceito de inércia, que diz que algo que está em movimento tende a permanecer em movimento. A pedra, quando atirada para cima, tem também um movimento horizontal causado pela rotação da Terra, tal como nós.

O último dos visionários que menciono hoje é Aristarco de Samos, o homem que, em torno de 300 a.C., pôs o Sol no centro do cosmo, com a Terra e os outros planetas girando à sua volta. Usando geometria, Aristarco provou que a Lua era bem menor do que a Terra, e a Terra bem menor do que o Sol. Portanto, concluiu, seria muito mais natural supor que o Sol estivesse no centro. Mais uma vez, predominaram as idéias aristotélicas e Aristarco foi esquecido. Pelo menos até o século 16, quando o polonês Nicolau Copérnico, ciente das idéias de Aristarco, pôs, de volta, o Sol no centro.


domingo, 6 de abril de 2003

Raios e trovões!

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Vivemos em um mundo elétrico. Em condições normais, durante um dia calmo num local plano e descampado, o aumento na eletricidade da atmosfera é inicialmente de cem volts por metro. Ou seja, do seu nariz até o chão existe uma diferença aproximada de 200 volts, quase duas vezes maior do que a eletricidade na tomada. Imagino o leitor perguntando: "Mas, nesse caso, por que não levamos grandes choques o tempo todo?". A razão é que o corpo é um bom condutor de eletricidade. Quando em contato com o chão, temos a sua mesma voltagem, que definimos como sendo zero. Já com a atmosfera, a situação é bem diferente.

Com o aumento de altitude, a variação na voltagem diminui. Isso porque a voltagem depende da densidade do ar, que também diminui com a altitude. Mas os números são impressionantes. A diferença de potencial entre o topo da atmosfera, a 50 quilômetros de altitude, e o chão é de 400 mil volts.

De onde vem essa eletricidade toda? E o que a mantém? Antes de mais nada, é importante frisar que ninguém vai ser eletrocutado pela atmosfera. A menos, claro, que a pessoa seja atingida por um raio. O ar, felizmente, não é um bom condutor de eletricidade. Mas alguma flui, passando cargas elétricas do céu para o chão.

Essa condutividade é causada por íons, por exemplo, uma molécula de oxigênio que ganhou ou perdeu um elétron, tornando-se eletricamente carregada. É bom lembrar que correntes elétricas são causadas pelo fluxo de cargas elétricas de um ponto a outro. Essas cargas são atraídas por cargas opostas. No caso da Terra, cargas positivas são atraídas para o chão. A questão então é de onde vêm esses íons e por que eles não acabam ao serem neutralizados na superfície.

Os íons caem dos céus. Em 1912, o físico austríaco Victor Hess usou um balão para testar a ionização da atmosfera. Para sua surpresa, descobriu que ela aumenta com a altitude. Uma nova área de pesquisa surgiu com a descoberta de Hess, os raios cósmicos. No Brasil, por exemplo, um dos expoentes dessa pesquisa no século 20 foi Cesar Lattes.

Raios cósmicos são originados provavelmente no centro ativo de galáxias distantes e outros objetos astrofísicos capazes de gerar verdadeiros jatos de partículas, acelerando-as pelo espaço interestelar. Ao chocarem-se com moléculas na atmosfera da Terra, essas partículas podem arrancar alguns de seus elétrons. Como a chuva cósmica é constante, a reserva de íons e, portanto, a fraca corrente atmosférica são sempre renovadas.

Existem outros tipos de íon. Quando uma onda arrebenta na areia, pequenas gotículas d'água salgada são atiradas para o alto. Quando a água evapora, cristais microscópicos de sal (NaCl) permanecem no ar, flutuando e coletando íons que porventura passem perto deles. Mas esses cristais são maiores e mais lentos do que os íons criados por raios cósmicos. A condutividade do ar é bastante variável, pois ela depende da quantidade local de íons mais rápidos e mais lentos.
Em grandes altitudes, a condutividade do ar aumenta indiscriminadamente. A corrente total atingindo a superfície é de aproximadamente 1.800 ampères. Com um potencial de 400 mil volts, isso gera 700 milhões de watts de potência. O que mantém esse enorme dínamo?

A 50 quilômetros de altitude, o ar é um excelente condutor. É como se a Terra fosse envolvida por uma esfera metálica, capaz de conduzir correntes horizontalmente. Mas, se cargas positivas caem sobre a superfície da Terra constantemente, o que a alimenta com as cargas negativas necessárias para neutralizá-las?

Existe aqui um equilíbrio de extrema elegância. As cargas negativas são supridas por raios durante tempestades. Em torno de 90% dos raios trazem cargas negativas para a superfície da Terra. Estima-se que cem raios caiam por segundo sobre a superfície da Terra, com um pico de atividade às 19h de Londres. (A floresta amazônica tem um papel fundamental nesse mecanismo regulador.)

Os detalhes de como raios são gerados ficam para outro dia. Mas, na próxima vez em que o leitor praguejar quando a tempestade elétrica começar, lembre-se de seu papel regulador da eletricidade em nosso planeta, constantemente bombardeado por cargas vindas do espaço.