domingo, 31 de março de 2002

Matéria confronta antimatéria


O escritor Milan Kundera afirmou que as perguntas mais fundamentais são aquelas que uma criança faz, simples e sem respostas. Segundo ele, são essas as perguntas que definem os limites do conhecimento, da nossa humanidade. Se a única motivação que temos é a absoluta necessidade de respondê-las, a busca será talvez fútil. A meu ver, quando nos deparamos com perguntas que aparentemente não têm resposta, devemos continuar a tentar respondê-las, conscientes de que não existe apenas a resposta final, mas várias que vão sendo achadas pelo caminho.


Uma dessas perguntas que as crianças fazem é de onde vem tudo o que existe. No decorrer da história da humanidade, inúmeras religiões ofereceram diversas respostas a essa pergunta, desde a ação divina, resposta mais familiar no Ocidente, até a origem de tudo a partir do nada absoluto, sem uma intervenção divina, conforme acredita o povo maori, da Nova Zelândia. Essa mesma pergunta, como não poderia deixar de ser, ocupa um lugar central na cosmologia moderna, a parte da física que estuda a origem e a evolução do Universo.

O fato de a cosmologia, ciência quantitativa firmemente baseada na formulação de leis matemáticas e na confirmação empírica dessas leis, também procurar responder a essa pergunta é muito importante. Ele prova como a ciência faz parte dos questionamentos mais profundos do homem, como ela também participa do processo que define os nossos limites. Dito isso, que respostas temos hoje para a questão da origem da matéria?

Segundo a física de altas energias, que descreve o comportamento das partículas elementares, toda partícula de matéria tem uma companheira de antimatéria. A diferença principal entre as duas é a carga elétrica, que é oposta. Por exemplo, a antipartícula do elétron (que tem carga negativa) é o pósitron, que tem carga positiva. O leitor sabe, porém, que não vemos pessoas ou carros feitos de antimatéria. Ainda bem. Quando matéria se encontra com antimatéria, ambas se desintegram em radiação eletromagnética. Portanto, se existisse tanta matéria quanto antimatéria, o Universo seria um grande oceano de radiação, sem estruturas materiais complexas.

Inúmeras observações astronômicas confirmam que a antimatéria é praticamente inexistente no Universo. Algo deve ter ocorrido durante a sua história de modo a selecionar o excesso de matéria sobre antimatéria. Aqui entram várias possibilidades, modelos propostos por cosmólogos (inclusive este que lhes escreve) para explicar de alguma forma plausível essa assimetria cósmica. Essas são as pequenas respostas, os passos que damos em direção a uma resposta que, espero, não seja intangível. Talvez entender por que existe mais matéria do que antimatéria seja mais fácil do que procurar saber qual é a origem de tudo.

Quando o Universo tinha em torno de um trilionésimo de segundo de existência, ele passou por um processo dramático. Antes disso, as forças da radioatividade e do eletromagnetismo eram descritas conjuntamente, a partir de uma única força. Dizemos que elas eram unificadas. Nessa fase, matéria e antimatéria coexistiam em pé de igualdade. Após essa fase, as forças se separaram e ficaram como as que vemos hoje. Segundo os modelos mais aceitos, foi esse processo de separação das forças que propiciou o excesso de matéria sobre antimatéria.
Quando a água congela, ela o faz a partir de um pequeno núcleo que vai crescendo até que todo o volume seja convertido de líquido em sólido. Suponha que esse núcleo seja uma bolha que vai crescendo. A separação entre as duas forças é semelhante ao congelamento da água. Na região equivalente à fase líquida (do lado de fora da bolha), as duas forças são unificadas; na região equivalente à fase sólida (dentro da bolha imaginária), as forças são distintas.

Imagine, então, uma bolha crescendo no Universo primordial. Quanto mais ela cresce, maior o volume da fase em que matéria se distingue da antimatéria. O interessante é que a parede da bolha funciona como um filtro para as partículas de antimatéria: só passam para dentro da bolha as partículas de matéria. Portanto, na separação entre as duas forças, só sobraram as partículas de matéria que vemos no Universo tal qual ele é hoje. Essa pode não ser a resposta final. Mas, provavelmente, ela envolverá alguns elementos dessas idéias.

domingo, 24 de março de 2002

Horror à ciência

.
Imagino que o leitor se interesse por ciência. Caso contrário, por que estaria lendo esta coluna? Pois nós, você e eu, pertencemos a uma minoria. Crescente, mas ainda uma minoria.

Infelizmente, pouca gente percebe a importância da ciência em sua vida. Existe a influência mais explícita, ligada às inúmeras tecnologias que definem o estilo de vida da sociedade moderna. O que seria da vida sem carros, telefones celulares e computadores cada vez mais rápidos e fáceis de usar? (Hoje, me abstenho de discutir a questão de como a afluência econômica determina o papel prevalente da tecnologia na sociedade. Tecnologia custa caro.)

Essas tecnologias que parecem surgir do nada são, na verdade, produto de anos de pesquisa, nos quais físicos, químicos e engenheiros tentam desenvolver materiais e produtos capazes de satisfazer uma demanda sem fim por mais velocidade e conveniência. Seria difícil imaginar uma volta ao passado. Quando eu era criança nos anos 60, ainda não existia TV em cores no Brasil, computadores pessoais ou videogames. Para um adolescente de hoje, a vida sem esses produtos seria absurda. Mas, tanto para a maioria dos adolescentes de hoje como para aqueles dos anos 60, a aula de ciência "é sacal", "perda de tempo". Por quê?

Eu não poderia deixar a medicina de lado. A expectativa de vida dobrou durante o século 20. E, certamente, se não dobrar, irá aumentar e muito no século 21. (Eu fico torcendo para isso.) Discute-se até o controle do envelhecimento celular, no qual os processos bioquímicos que determinam a deterioração da célula são desacelerados geneticamente, de modo que 20 anos de envelhecimento hoje corresponderiam a cinco anos no futuro. Outra possibilidade é uma espécie de imortalidade genética, onde os seus genes são preservados e o seu corpo, reclonado indefinidamente. Claro, o seu clone não é você, pois ele não terá as mesmas memórias. Mas até essa barreira poderá ser superada. Em princípio (muito em princípio), finalmente será possível reproduzir não só o seu corpo mas, também, a sua mente. Aí sim, a cópia será idêntica ao original.

Essa revolução da medicina, baseada em uma dupla revolução na genética e nas ciências cognitivas, está mais próxima do que imaginamos. O cenário pessimista descrito no filme "Inteligência Artificial", de Steven Spielberg, não veio de pura ficção, mas de questões em debate hoje em laboratórios e conferências científicas no Brasil e no resto do mundo. É possível contemplar um futuro no qual a sofisticação dos materiais e da bioeletrônica será tamanha que robôs se comportarão como seres humanos. Aliás, os robôs serão tão mais sofisticados do que nós que a nossa própria existência estará ameaçada; nós nos tornaremos supérfluos, à mercê de nossas criações, mais fortes e mais inteligentes do que nós.

Essa ciência assusta. Ainda mais se parece acontecer como por mágica, em laboratórios clandestinos controlados por cientistas seduzidos pela fama e manipulados por capitalistas interessados apenas no balanço final de suas empresas ou por militares obcecados por poder.

Nas mãos da ignorância, a ciência é rapidamente transformada em um monstro, causando um conflito estranho nas pessoas: por um lado, a sociedade é cada vez mais dependente das várias amenidades e confortos da vida moderna, das promessas de uma vida ainda melhor no futuro devido à incessante marcha da ciência. Por outro lado, a ciência também ameaça, cria armas de destruição global e local, podendo até comprometer a nossa posição como a espécie dominante na Terra. Pode-se até especular que a missão evolutiva da espécie humana seja criar uma nova espécie, de híbridos bioletrônicos que, mais dia, menos dia, acabarão por nos suplantar.

A ignorância gera o medo. Os monstros mudam, mas a reação é a mesma: tememos aquilo que não conhecemos ou que não podemos controlar. É aqui que entra a educação científica, elucidando, guiando, instruindo o cidadão de modo a que a ciência não seja vista como uma criatura horrorosa, um monstro com intenções destruidoras. É importante lembrar que a ciência não existe sozinha. Ela é criação nossa e somos nós, por meio de nossas escolhas dentro do processo democrático, que determinamos o que fazer com as descobertas que ocorrem nos laboratórios. O lado luz e o lado sombra da ciência são reflexos da nossa moralidade, do que a sociedade faz com o conhecimento que possui. Essa é a diferença entre o conhecimento e a sabedoria.

domingo, 17 de março de 2002

Vida, extinção e evolução

.
É comum dizer que existe uma tensão na natureza entre tendências criadoras e destruidoras. Essa polarização é fruto de nossa percepção limitada da realidade, que tende a organizar tudo a partir de opostos: o frio e o quente, o macho e a fêmea, a luz e as trevas. A Natureza não tem uma dimensão moral, e pouco se importa com o que chamamos de criação e destruição. Dito isto, aqui estamos nós, produtos improváveis de apenas alguns bilhões de anos de evolução, seres vivos capazes de não só sobreviver em um mundo hostil mas, também, de se questionar sobre as suas próprias origens. O homem é o maior dos mistérios.

Para tentarmos entender as nossas origens, temos antes de reconstruir a história da Terra e dos seus vários habitantes que nos antecederam. Se os primeiros hominídeos apareceram há aproximadamente 3 milhões de anos, a vida pelo que determinamos hoje apareceu em torno de 3,5 bilhões de anos atrás, quando a Terra resfriou o suficiente para ter oceanos. De onde vieram as primeiras formas de vida e como elas se formaram permanecem questões em aberto.

Questões que, aliás, talvez sejam impossíveis de serem respondidas precisamente. Para tal precisaríamos de detalhes, de fósseis dos primeiros seres vivos, que podem estar perdidos para sempre.

Talvez seja mais prudente começar com questões simples, relacionadas à diversidade das formas de vida e não à sua origem. O registro fóssil da Terra mostra que a história da vida aqui é extremamente dramática; em muitos (mas não todos) casos, períodos de grande diversificação e estabilidade foram terminados por grandes extinções, nas quais uma fração alta das espécies desapareceu abruptamente e não gradualmente. A extinção dos dinossauros, que ocorreu há 65 milhões de anos, é o exemplo mais popular dessas catástrofes do passado.

Após duas décadas de muita discussão entre geólogos, palentólogos, químicos e físicos, e do acúmulo irrefutável de provas, ficou claro que a extinção dos dinossauros foi causada pelo impacto com um asteróide de aproximadamente 10 quilômetros de diâmetro, que ocorreu onde hoje é o Golfo do México. A cratera cavada pelo invasor extraterrestre tem um diâmetro de quase 200 quilômetros. Para chegar a essa conclusão foram necessárias várias pistas diferentes, deixadas pela violência do impacto: cristais de quartzo exibindo fraturas devido ao aumento absurdo de temperatura de milhares de graus e pressão milhões de vezes acima do normal; rochas desfiguradas pela energia do impacto; microesferas de vidro, criadas pelo rápido resfriamento de rochas derretidas durante o impacto; traços do elemento irídio, raríssimo na superfície da Terra, mas comum em certos asteróides; gases raros aqui na Terra, mas comuns no espaço, encontrados aprisionados dentro de certas moléculas com a estrutura de uma bola de futebol, chamadas fulerenos; traços de carvão vegetal em concentrações milhares de vezes maiores do que o normal, devido à queima de florestas inteiras.

Cito essa longa lista de provas para que o leitor fique a par de como certas conclusões são obtidas por cientistas. O trabalho de inspeção é exaustivo e a análise é quantitativa, numa combinação de lógica dedutiva e técnicas de laboratório. A idéia especulativa (a extinção causada por um impacto) é apenas o início do processo de descoberta, não o seu fim.

Recentemente, o refinamento das técnicas de análise geológica motivado pelo debate sobre os dinossauros vem gerando mais polêmica: aparentemente, uma outra extinção em massa responsável pelo desaparecimento de 90% da vida no planeta conhecida como "a grande morte", também foi causada por um impacto catastrófico com um bólido celeste. Esse evento ocorreu há 250 milhões de anos, e uma possível cratera do mesmo tamanho que a deixada no Golfo do México foi encontrada na Austrália. A conclusão ainda não é firme como com os dinossauros, mas é bastante plausível.

O que comprova a incrível versatilidade da vida. A cada impacto as formas de vida se renovam com uma intensidade impressionante, como se um caldeirão genético entrasse em ebulição juntamente com as rochas em torno do ponto de impacto. Os seres humanos, aliás, são consequência dessa renovação. Com a extinção dos dinossauros, os mamíferos, que antes eram insignificantes, tornaram-se os novos donos da bola. Em última análise, o homem é resultado de um acidente cósmico e da frenética criatividade da Natureza. O mistério permanece, mas não é inescrutável.

domingo, 10 de março de 2002

O grande caldeirão cósmico

.
Em noites claras, sem lua, é possível ver, ao menos longe o suficiente das luzes da cidade, um tênue corredor de luz, uma mancha de poeira luminosa estendendo-se pelo céu. Essa mancha é parte da Via Láctea, galáxia que é a nossa casa cósmica. É difícil, da nossa perspectiva terrestre, ter uma idéia das dimensões da Via Láctea. Foram necessários mais de 2.000 anos de astronomia para que fosse demonstrado que ela não é a única galáxia no Universo, mas apenas uma entre centenas de bilhões de outras.

Sem dúvida, essa descoberta, atribuída ao astrônomo americano Edwin Hubble em 1924, revolucionou a visão existente até então de nosso lugar no Universo. O Universo passou a ser muito maior, um oceano vazio, pontilhado por ilhas aqui e ali, cada uma delas uma galáxia. E nós, sozinhos em uma delas, flutuando pelo espaço, nosso planeta girando em torno de uma estrela bem simples, uma entre centenas de bilhões de outras. E pensar que, até em torno de 1610, acreditava-se que a Terra fosse o centro do Universo.

Muitas pessoas que conheço, cientistas ou não, acham uma galáxia espiral como a Via Láctea um dos objetos mais belos que existem. Os braços de gás e estrelas, encurvando-se elegantemente na direção de rotação em torno de um centro luminoso, lembram a estrutura de um redemoinho em torno de uma depressão profunda, como se uma criatura estivesse sugando vorazmente a matéria que se atreveu a passar perto demais de suas garras. Essa imagem, de algo residindo no centro da galáxia, corresponde à realidade, segundo observações astronômicas recentes. O centro da galáxia, a 26 mil anos-luz da Terra, é um verdadeiro caldeirão cósmico, berçário de várias estrelas e estação final de inúmeras outras.

O grande monstro residindo no centro da galáxia é um buraco negro com uma massa gigantesca, equivalente à de 2,5 milhões de sóis. Buracos negros são os objetos mais exóticos que se conhece no Universo. Os comuns têm massas não muito maiores que a do Sol (10 ou 20 vezes maiores) e aparecem quando estrelas muito maciças deixam de gerar a radiação necessária para contrabalançar a própria gravidade. Como um balão que vai murchando (mas sem deixar o ar escapar), a estrela vai ficando cada vez menor e mais densa. E como a gravidade aumenta com a densidade do objeto, a gravidade da estrela vai crescendo cada vez mais, fazendo com que a estrela encolha progressivamente. Aí vem o problema: segundo a teoria da relatividade geral, de Einstein, a gravidade pode ser interpretada como a curvatura do espaço em torno de um corpo maciço. Portanto, quanto mais denso o corpo, maior a gravidade à sua volta e maior a curvatura do espaço à sua volta. No caso extremo de um buraco negro, a curvatura é tamanha que o espaço se fecha sobre si mesmo como uma ostra, e nada escapa de seu interior -nem mesmo a luz.

Para concluir que, de fato, um buraco negro gigante habita o centro da Via Láctea, astrônomos precisaram criar modos de "ver" o que acontece por lá sem usar a luz visível. Isso porque, como o leitor pode imaginar, é impossível ver o que ocorre no centro galáctico, pois ele é cercado por densas nuvens de gás e poeira. Felizmente, existem outros modos de ver sem utilizar a luz visível, outras formas de radiação que atravessam a densa "neblina" central. Em um incêndio, sabemos que existe uma intensa fonte de calor, mesmo que ela esteja cercada por fumaça. O calor é radiação infravermelha, invisível aos olhos mas nem por isso menos real do que a luz visível. O mesmo vale para os raios X, que podem penetrar objetos opacos à luz visível. Essas outras formas de radiação, que incluem as ondas de rádio, os raios gama e a radiação ultravioleta, também pertencem ao espectro das ondas eletromagnéticas. A astronomia moderna vê o Universo com múltiplos olhos, capazes de enxergar realidades que antes eram totalmente invisíveis.

Imagens do Observatório Espacial de Raios X Chandra revelam uma enorme atividade em torno do centro galáctico: emissões de raios X extremamente energéticas devido a mais de mil estrelas superdensas sugando a matéria de suas vizinhas; uma nuvem em torno do centro emitindo raios X menos energéticos, restos de estrelas que foram sugadas pelo buraco negro há centenas de anos, quando o seu "apetite" era maior. E a Via Láctea não é único caldeirão cósmico: cada galáxia tem o seu, com um gigantesco buraco negro em seu centro.

domingo, 3 de março de 2002

A teoria de tudo e a via do meio

.
Reduzir para entender! Esse tem sido o brado retumbante da ciência moderna desde as suas origens no século 17, nas mãos de Galileu, Kepler, Newton e tantos outros. Newton reduziu a natureza a um imenso mecanismo constituído de massas pontuais sujeitas à ação de forças externas. A idéia de que tudo é composto por elementos menores, indivisíveis, é bem mais antiga do que a ciência moderna, datando do século 5º a.C., com Demócrito, Leucipo e outros filósofos da tradição atomista.

Sem dúvida, os átomos da ciência moderna têm pouco a ver com os átomos gregos. Mas o germe da idéia, de que é possível decodificar a complexidade da Natureza através da redução de seus sistemas em seus componentes mais básicos, permanece vivo até hoje. Há quem diga que os dias do reducionismo estejam contados. Não tomo essa posição tão extrema, mas acredito que as técnicas reducionistas não são eficazes no estudo de alguns dos problemas mais interessantes da ciência atual. É aqui que entra o que os físicos americanos Robert Laughlin e David Pines chamam de "via do meio".

Tomemos um organismo vivo, como o corpo humano. Cada órgão tem uma função bem determinada, que é desempenhada individualmente. No entanto, seja qual for a função individual do órgão em questão, ela faz parte de um conjunto de missões complementadas por outros órgãos. Se quisermos estudar a função e as propriedades de um determinado órgão, não podemos tratá-lo individualmente, mas sim como parte de um todo; um fígado isolado não vive e não desempenha as suas funções. De certa forma, um fígado isolado não é um fígado. Sua função só faz sentido quando integrada dentro do corpo humano. Se adotarmos um reducionismo extremo, temos de isolar todos os "componentes" do corpo para estudar seu funcionamento, o todo sendo igual à soma das partes. Acabamos por destruir o corpo. A vida um excelente exemplo de como o todo é muito mais do que a soma das partes.

A crítica ao reducionismo tem sido cada vez maior, especialmente na física. Um dos grande sonhos de muitos físicos é a obtenção da "teoria de tudo", um conjunto de leis fundamentais capazes de explicar todos os fenômenos naturais, da origem do Universo ao aparecimento da consciência na mente humana. Essa idéia também não é nova, sendo uma herança do pensamento de outro grego, Platão. Segundo ele, a essência de todas as coisas está no mundo das idéias e não no das sensações; o que vemos ou ouvimos pode nos iludir, mas o que existe no mundo da razão pura é perfeito. Por exemplo, a idéia de um círculo é perfeita, mas a sua representação no papel jamais o será. O sonho de construir uma teoria de tudo é a encarnação direta dessa conceituação do mundo natural, o clímax do ideal platônico de reduzir tudo a hierarquias, partindo do mais simples ao mais complexo com um único conjunto de leis.

Acredito que esse projeto, mesmo se ele vier a ser concluído um dia, será inútil na descrição de fenômenos onde comportamentos complexos surgem espontaneamente, "ordem vinda do caos".

A natureza não pode ser reconstruída exclusivamente como um desses jogos de blocos plásticos (como "legos"), em que algumas peças (as "partículas fundamentais") e alguns tipos de encaixe (as "interações fundamentais" entre essas partículas) determinam todas as estruturas possíveis. A mecânica quântica descreve muito bem o comportamento de átomos simples, com um, dois ou alguns elétrons. Mas ela é incapaz de descrever o comportamento de um átomo com 10 elétrons. O comportamento de átomos maiores tem de ser estudado por métodos aproximados, com graus variados de sucesso. Mesmo que seja verdade que tudo é composto por átomos, é impossível prever exatamente o comportamento de estruturas com muitos átomos. Mais ainda, o aumento da complexidade é acompanhado pelo aparecimento de novas leis, princípios organizadores que não podem ser previstos a partir do método reducionista. Por exemplo, se o neurônio é o "átomo" do cérebro, é impossível deduzir o funcionamento do cérebro a partir do funcionamento de um ou alguns neurônios. É em seu comportamento coletivo que os neurônios geram o que chamamos de pensamento. A busca por esses princípios organizativos é a "via do meio", ainda em sua infância, mas com um futuro muito promissor.