domingo, 31 de outubro de 2004

Ciência e Hollywood

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Infelizmente é verdade: explosões não fazem barulho algum no espaço. Não me lembro de um só filme que tenha retratado isso direito. (Pode ser que existam alguns, mas se existirem não fizeram muito sucesso.) Sempre vemos explosões gigantescas, estrondos fantásticos. Para existir ruído é necessário um meio material que transporte as perturbações que chamamos de ondas sonoras. Na ausência de atmosfera, ou água, ou outro meio, as perturbações não têm onde se propagar. Para um produtor de cinema, a questão não passa pela ciência. Pelo menos não como prioridade. Seu interesse é tornar o filme emocionante, e explosões têm justamente este papel: roubar o som de uma grande espaçonave explodindo torna a cena bem sem graça.

Recentemente, o debate sobre as liberdades científicas tomadas pelo cinema tem aquecido. O filme "O Dia Depois de Amanhã" e seu cenário de uma Idade do Gelo ocorrendo em uma semana em vez de décadas ou, melhor ainda, centenas de anos, levantaram as sobrancelhas de cientistas mais rígidos, que vêem as distorções com desdém, e esbugalharam os olhos dos espectadores que pouco ligam se a ciência está certa ou errada. Afinal, cinema é diversão.

Tudo começou em 1902, quando o francês Georges Méliès dirigiu o curta "Uma Viagem à Lua". No filme, seis aventureiros chegam até a Lua em uma cápsula disparada por um canhão. Após sua chegada, os tripulantes são raptados por habitantes lunares com intenções nada amistosas. Os heróis escapam, empurram a espaçonave da beira da Lua de modo que ela caia sobre a Terra, bem sobre o oceano Atlântico. Tudo no filme está errado, claro. A aceleração de um tiro de canhão potente o suficiente para levar pessoas até a Lua as mataria quase que imediatamente. Cair da Lua é impossível. Desconto a questão dos habitantes lunares, pois na época isso não era sabido. Esse filme, o primeiro de uma nobre linhagem indo até "O Dia Depois de Amanhã", exagera, inventa ciência para criar um enredo emocionante. A questão então é o que devem fazer os cientistas a respeito, se é que devem fazer algo. Cabe a eles tentar "consertar" a ciência dos filmes, escrevendo cartas e artigos sobre o assunto? Será que faz sentido criticar a indústria cinematográfica pelos erros crassos?

Até recentemente, eu defendia a posição mais rígida, que filmes devem tentar ao máximo ser fiéis à ciência que retratam. Claro, isso sempre é bom. Mas não acredito mais que seja absolutamente necessário. Existe uma diferença crucial entre um filme comercial e um documentário científico. Documentários devem retratar fielmente a ciência, educando e divertindo a população. Filmes não têm um compromisso pedagógico. As pessoas não vão ao cinema para serem educadas, ao menos como via de regra. Claro, filmes históricos ou mesmo aqueles fiéis à ciência têm enorme valor cultural. Outros educam as emoções por meio da ficção. Mas se existirem exageros, eles não devem ser criticados como tal. Fantasmas não existem, mas filmes de terror, sim. Pode-se argumentar que, no caso de filmes que versam sobre temas científicos, as pessoas vão ao cinema esperando uma ciência crível. Isso pode ser verdade, mas elas não deveriam basear suas conclusões no que diz o filme. No mínimo, cinema pode servir como mecanismo de alerta para questões científicas importantes: o aquecimento global, a inteligência artificial, a engenharia genética, as guerras nucleares, os riscos espaciais como cometas ou asteróides. Mas o conteúdo não deve ser levado ao pé da letra. A arte distorce para persuadir. E o cinema, com efeitos especiais espetaculares, distorce com enorme facilidade e poder de persuasão.

O que os cientistas podem fazer, e isso está virando moda nas universidades americanas, é usar filmes para educar seus alunos sobre o que é cientificamente correto e o que é absurdo.
Ou seja, usar o cinema como ferramenta pedagógica. Os alunos certamente prestarão muito mais atenção e será possível educar a população para que, no futuro, um número cada vez maior de pessoas possa discernir o real do imaginário.

domingo, 24 de outubro de 2004

Liberdade Assintótica

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Quando o Prêmio Nobel de Física deste ano foi anunciado, não pude deixar de sorrir. Os três, Frank Wilczek, do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), David Gross, do Instituto de Física Teórica (IPT) da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, e H. David Politzer, do Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech), foram premiados pela teoria que desenvolveram explicando o misterioso comportamento dos quarks, as partículas que compõem prótons, nêutrons e centenas de outras menos famosas. Sorri porque o prêmio era esperado há muito pela comunidade de físicos. E pelos premiados.

Em 1988, iniciei meu pós-doutorado no ITP, hoje dirigido por David Gross. Na época, ele ainda estava em Princeton e era Frank Wilczek quem trabalhava no ITP. Participava sempre de discussões com Wilczek, um desses raros talentos da física que pesquisam em várias áreas. Fora sua famosa gargalhada, que vai de fora para dentro como se ele estivesse se asfixiando, Wilczek era também conhecido pelo seu nervosismo, que atingia o clímax justo em outubro, quando o Nobel é anunciado.

Em uma manhã de outubro de 1988, caminhava pelo corredor do ITP conversando com Wilczek quando apareceu David Schramm, um astrofísico de Chicago que também almejava o cobiçado prêmio. Schramm, que morreu tragicamente pilotando seu avião sobre as montanhas do Colorado, veio todo animado, exclamando que Leon Lederman, um físico experimental muito seu amigo, havia ganho o Nobel.

A expressão de Wilczek dizia tudo: um sorriso amarelo, derrotado e nada amistoso. As pessoas que o conhecem melhor dizem que todo outubro era a mesma coisa. Wilczek mal podia dormir, esperando pelo tal telefonema de Estocolmo. Bem, finalmente ele pode descansar em paz.
O prêmio é mais do que merecido. Durante os anos 1950, experimentos mostraram um número enorme de partículas ditas elementares, os hádrons. Todos eles, que incluem o próton e o nêutron, têm algo em comum: interagem entre si por meio da força nuclear forte, a mesma responsável pela coesão do núcleo atômico.

De fato, se o núcleo atômico é feito de prótons, com carga elétrica positiva, e nêutrons, sem carga, e cargas iguais se repelem, o que evita a sua dissociação? A resposta, encontrada nos anos 1930, é que outra força atua no núcleo como um tipo de cola, a força nuclear forte.
Em 1963, Murray Gell-Mann, do Caltech, propôs que os hádrons fossem compostos por partículas chamadas quarks. Tal como os 92 átomos são compostos por apenas três partículas (elétrons, prótons e nêutrons), os hádrons seriam produto de combinações de seis quarks. O único problema é que, ao contrário de elétrons ou prótons, ninguém jamais observou um quark isolado. Como explicar isso?

Basicamente, os quarks não podem existir livres, fora dos hádrons; eles são prisioneiros eternos, como se fossem sementes que jamais saíssem de dentro das frutas. Imagine que os três quarks dentro de um próton fossem ligados um ao outro por molas. É fácil separar duas massas ligadas por uma mola. Mas vai chegar um ponto em que a mola arrebenta. Se tentarmos separar os quarks dentro do próton, a força atrativa entre eles mantém-se a mesma e mais energia é necessária. Eventualmente, a "mola" se rompe e um novo par de quarks aparece no ponto de ruptura.

O mesmo ocorre com uma corda ou um ímã. Não podemos isolar um lado da corda ou um pólo de um ímã, quebrando-o ao meio; ficamos com dois ímãs menores na mão, cada um com seus dois pólos.

Quando prótons colidem com elétrons muito energéticos, a colisão ocorre com um de seus três quarks. Experimentos mostram que esse quark comporta-se com se estivesse livre, viajando dentro do próton. Gross, Politzer e Wilczek mostraram que, em altas energias, a força atrativa entre os quarks é desprezível. Os quarks ganham liberdade, uma liberdade assintótica, mesmo que efêmera.

quarta-feira, 20 de outubro de 2004

Entrevista Istoé 20/10/2004

A alma não existe
Marcelo Gleiser

Ganhador de dois Jabuti, físico diz que a ciência está em constante mutação e que é um erro buscar na religião as respostas para o mundo
Darlene Menconi
Vidal da Trindade/AE
• Mestre em física, doutor pelo King’s College da Inglaterra
• Professor catedrático da Faculdade Dartmouth, em New Hampshire (EUA)
• Prêmio Jabuti de 1998 e 2002 pelos livros A dança do universo e O fim da Terra e do céu
• Bolsista da NSF, fundação de ciência americana, e da Nasa, agência espacial americana
• Idade: 45 anos

Certa vez, a escritora Raquel de Queirós justificou seu ateísmo dizendo que a culpa não era sua. “Deus me deu pouca fé”, explicou. Do mesmo mal padece o físico e escritor Marcelo Gleiser, que, apesar de jovem, é uma das principais vozes da divulgação científica. Tanto que recebeu, das mãos do ex-presidente Bill Clinton, um prêmio por sua dedicação ao estudo e à pesquisa em cosmologia. De origem judaica, Gleiser frequentou a sinagoga quando pequeno, mas não achou inspiração nas tábuas divinas.

Aos 45 anos, e há 22 anos vivendo nos EUA, ele não perdeu o sotaque carioca. Muito menos o prazer em buscar respostas para os mistérios do universo, da vida e da mente. Conforto e paz de espírito ele afirma encontrar na natureza, no amor e nos filhos, de 15, 11 e oito anos. Eleitor de John Kerry, a quem doou dinheiro para a campanha, Gleiser não aposentou os planos de retornar ao Brasil. Professor de física e filosofia natural de uma das mais conceituadas faculdades americanas, a Dartmouth, em New Hampshire, ele ganhou dois prêmios Jabuti por seus livros sobre o universo e o embate entre ciência e religião, um de seus assuntos preferidos. Gleiser acaba de escrever, em inglês, um romance sobre o astrônomo alemão Johannes Kepler (1571-1630), que conviveu com o italiano Galileu Galilei, condenado pela Igreja por defender que o Sol, e não a Terra, era o centro do universo. “Sou profundamente místico”, diz Gleiser, cujo hobby é a pesca com isca artificial (fly fishing). “É uma atividade zen, em que é preciso estar em contato com a água, o céu, o peixe e o sol”, explica o físico, que falou a ISTOÉ antes de embarcar para uma série de palestras no Brasil.

ISTOÉ – Por pressão religiosa, algumas escolas do Rio de Janeiro não ensinam a teoria da evolução, na qual humanos descendem de macacos. Qual sua opinião sobre isso?
Marcelo Gleiser –
É um absurdo. Em Kansas (EUA), houve muito debate sobre isso e se decidiu que a teoria da evolução seria ensinada junto com o texto bíblico, como uma alternativa. Depois de dois anos, eles reverteram a decisão e voltaram a ensinar a teoria da evolução como a única válida para descrever como os animais evoluíram na Terra. O Estado de Ohio vive discussão parecida. Não se pode apresentar religião como a descrição científica do mundo. Isso é o que se fazia há 500 anos. É justamente contra esse dogmatismo da Igreja que Galileu lutou. É perigoso usar como científico qualquer texto religioso criado para servir de parâmetro ético e moral das pessoas.

ISTOÉ – Qual a linha que divide ciência e religião?
Gleiser –
Elas são complementares. A ciência se propõe a descrever o mundo natural, com a maior precisão possível. Não se propõe a ser bengala espiritual. Se alguém querido morre, ela não tem nada a dizer. Nisso, a religião é imbatível. Essa é a razão pela qual, mesmo numa sociedade tão tecnológica e científica, ainda existe tanta gente religiosa. O ser humano é um ser espiritual. As pessoas vão em massa às igrejas, sinagogas e mesquitas procurar consolo, espírito de comunidade e fraternização. Já a ciência é uma narrativa que evolui. Sua função é descrever o mundo e explicar nosso papel dentro dele.

ISTOÉ – Sendo assim, sempre haverá meias-verdades?
Gleiser –
O universo em que um cara do século XVI vivia, quando a Terra era o centro de tudo, é diferente do século XVIII, quando o Sol já era o centro, e é diferente do nosso universo, que não tem centro e se expande em todas as direções. Não há verdades finais em ciência. O mundo está sempre se transformando. Acho possível encontrar espiritualidade na descrição científica do mundo. Sou do time do (Albert) Einstein, que dizia que esse questionamento sobre o desconhecido é essencialmente espiritual. Não significa acreditar numa entidade sobrenatural controlando o mundo. Ou na existência da alma e de outras coisas além das leis da natureza.

ISTOÉ – Na sua opinião, não existe alma?
Gleiser –
Eu adoraria ter alma e, quando meu corpo pifasse, poder renascer em outro corpo. Histórias de espiritismo, de vida após a morte e as várias versões das religiões para isso são mecanismos que criamos para lidar com nosso problema mais fundamental, que é a mortalidade. Vários amigos espíritas dizem que a maneira científica de pensar o mundo é apenas uma. Existem outras. Usar a ciência para justificar a existência ou não da alma nunca vai dar certo. No século XVII, o que se chamava de eu, a pessoa, vinha da alma. Quando a pessoa morria, a alma ia embora e o corpo ficava. Toda a noção de ser humano era relacionada à existência ou não dessa faísca divina. Aristóteles achava que a alma ficava no coração, assim como os egípcios. Não se sabia que o centro era na cabeça. Hoje, a gente sabe que não tem alma e que o cérebro é um organismo extremamente complexo.

ISTOÉ – Como se pode ter conforto diante dessa visão?
Gleiser –
Ninguém aceita a mortalidade. O que a gente faz é se contentar com explicações e se encantar mais ou menos com as possibilidades sobrenaturais. Tem aqueles que se encantam muito e vão a terreiros de macumba, recebem espírito, etc. E tem os que se encantam menos, como eu, que não acreditam nesse mundo paralelo. A questão entre ciência e religião é parte fundamental do meu próximo livro, um romance histórico baseado na vida do astrônomo alemão Johannes Kepler, que viveu no início do século XVII. Ele é famoso por descobrir que as órbitas planetárias são elípticas e não circulares. Sua vida é um dos episódios mais fascinantes da ciência. Ele tinha um pé na Idade Média e seus misticismos, e outro na modernidade e na revolução científica. O livro conta a história de sua vida, em uma Europa imersa no caos, dividida por guerras religiosas entre católicos e protestantes, bruxas sendo torturadas e queimadas, Galileu julgado pela Inquisição na Itália. De muitos modos essa realidade retrata os dias atuais, com disputas religiosas, intolerância e iniquidade social.

AE
"Histórias de espiritismo, de vida após a morte são mecanismos que criamos para lidar com nosso problema fundamental, que é a mortalidade"
ISTOÉ – Como é possível comparar os dias atuais com a Idade Média, quando as disputas acabavam na fogueira?
Gleiser –
Por volta de 1600, a Europa estava dividida entre protestantes e católicos. Entre os protestantes, brigavam luteranos e calvinistas. As pessoas morriam feito moscas. No século XVII, a Igreja Católica tinha muito poder na Itália e algum na Alemanha e na Boêmia, parte do que é hoje a República Tcheca. Quem tinha terras, dinheiro e poder eram barões e condes protestantes. Havia uma disputa de fundo religioso que na verdade era pelo controle das terras. Agora é o cristianismo contra o islamismo. Temos os EUA como potência imperialista tentando impor seus valores morais. Parece uma cruzada ideológica, mas é uma tentativa de colocar pé firme no Oriente Médio, não só em Israel, mas numa potência como o Iraque, onde está o petróleo. Por trás dos grandes conflitos religiosos há sempre o engenho político e econômico.

ISTOÉ – Qual o efeito da intolerância no pensamento científico?
Gleiser –
Um exemplo importante é o que chamo das “três origens”, do universo, da vida e da mente. Todas as religiões, de uma maneira ou de outra, têm respostas para essas perguntas. A mais conhecida, que vem do Velho Testamento, é a criação do mundo e a idéia da alma, que dá consistência ao espírito. Diferentes religiões têm diferentes explicações. Todas, por natureza, são inflexíveis. Não se pode questionar a palavra divina. Isso é o dogma da religião. A informação vem de cima para baixo, não tem conversa. Os padres, sacerdotes, rabinos e monges são intérpretes da verdade divina. Na ciência, a estrutura é horizontal, o conhecimento pode ser descoberto por qualquer pessoa e, em princípio, há um fórum para discutir idéias. Quando um cientista tem uma idéia sobre a origem do mundo, ele ou ela escreve artigos e vai a conferências nas quais busca provar sua veracidade. Se for provada errada, joga-se a idéia no lixo. Existe uma evolução construtiva do saber.

ISTOÉ – Seria possível explicar fatos religiosos como o dilúvio e a Arca de Noé?
Gleiser –
Acho perfeitamente razoável tentar justificar fatos bíblicos usando a pesquisa científica. Afinal de contas, os livros da Bíblia foram escritos por pessoas que relatavam uma história, carregada de simbolismo. O grande perigo é usar textos religiosos como científicos. Se alguém fala que está escrito na Bíblia que o mundo tem 6.775 anos porque ali foi a gênese e Abraão foi o primeiro patriarca, isso é um erro, obscurantismo. A Terra tem em torno de 4,6 bilhões de anos. Não há dúvida disso.

ISTOÉ – Mais de 90% do universo é composto de uma força misteriosa. Será que Shakespeare estava certo ao dizer que “há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”?
Gleiser –
A chamada energia escura passou a dominar o universo há mais ou menos cinco bilhões de anos. Ela não tem um papel na origem do cosmo. Essa descoberta foi em 1998 e é um ótimo exemplo de como as coisas mudam. Foi uma surpresa para todo mundo. Não sabemos o que é essa tal energia escura, nem como será o futuro do universo. O paradoxo é que a natureza é muito mais esperta do que nós. Quanto mais se sabe, mais há o que descobrir. Outras perguntas surgem, e é isso o que torna a ciência emocionante. Não há uma reta final, só a contínua busca pelo conhecimento.

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ISTOÉ – Só que a ciência também virou um ramo de negócios, com lucratividade e retorno financeiro.
Gleiser –
É importante separar ciência das aplicações tecnológicas da ciência. A nanotecnologia, a biotecnologia, a microeletrônica, o GPS, os celulares cada vez mais incríveis, a internet, tudo isso é aplicação da ciência para o mercado econômico. O mecanismo que gera esse tipo de aplicação não tem nada a ver com a exploração da natureza. São universos diferentes. Essa apropriação da tecnologia pelo mercado é um lado da ciência, e é filosófica e culturalmente menos interessante do que o lado da ciência que gera conhecimento sobre o mundo e as pessoas. Quando falo do romantismo do cientista, falo do lado explorador, de pessoas que se confrontam diariamente com o não-saber. Somos os descobridores da natureza, os que vão ampliar as fronteiras do mundo. E olha só quantas fronteiras têm sido descobertas através de telescópios, microscópios, mundos antes invisíveis. Há uma beleza, uma simplicidade e mesmo uma elegância com que a física descreve a natureza.

ISTOÉ – E por que é tão difícil entender o que dizem os cientistas?
Gleiser –
O mesmo princípio usado para fazer pizza serve para descrever como nascem as galáxias. E também para explicar como uma patinadora dá piruetas no gelo. Ela começa com os braços estirados, traz os braços para o peito e gira mais rápido. É o mesmo princípio que explica como se gira a massa da pizza no dedo para ela ficar achatada nos pólos e se alongar no equador, e é assim que nasceu o sistema solar e as galáxias. Não tem poesia e elegância quando se consegue descrever tantas coisas diferentes com as mesmas idéias? O que falta no ensino da física é mostrar sua relação com o mundo em que se vive. Quando se escreve uma fórmula no quadro-negro, ninguém dá bola. Informar o público é fundamental para nossa sobrevivência em um contexto global cada vez mais dependente da ciência e suas aplicações.


Vidal da Trindade/AE


"O mesmo princípio
usado para fazer pizza serve para descrever como nascem as galáxias e como a patinadora dá piruetas no gelo"

ISTOÉ – Um dia vamos habitar outros planetas, como Marte?
Gleiser –
Não há outra saída. A Terra tem os dias contados. Vivemos num sistema que tem uma estrela, o Sol. Como toda estrela do universo, um dia ela vai pifar e se tornar uma gigante vermelha. Vai inchar, engolfar Mercúrio, Vênus e chegar pertinho da Terra. Isso ainda demora bilhões de anos, mas em centenas de milhões de anos, o Sol vai tornar impossível a vida na Terra. A verdade é que, se a gente ainda existir até lá, de forma a preservar o que somos, temos que colonizar o sistema solar e a galáxia. O destino do ser humano é se espalhar pelo universo. Muito possivelmente, há outras regiões, outros universos, separados do nosso.

ISTOÉ – Existe vida em outros planetas?
Gleiser –
São centenas de bilhões de galáxias como a Via Láctea. Pense no universo como uma bolha de 13,8 bilhões de anos-luz. Não sabemos o que existe fora da bolha. Não significa que não existam outras galáxias, estrelas e sistemas solares onde não enxergamos. Em cosmologia, se diz que vivemos num multiverso. Nossa bolha é só uma de infinitas outras. Parece até um conto do Jorge Luis Borges (escritor argentino), são milhões de mundos pululando por aí.

domingo, 17 de outubro de 2004

Tempestades solares

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Na primavera de 1613, o italiano Galileu Galilei em seu "História e Demonstração Sobre as Manchas Solares", argumentou que as manchas vistas no Sol estavam localizadas sobre a sua superfície.

Um ponto de vista alternativo, defendido pelo astrônomo jesuíta padre Scheiner, dizia que as manchas solares eram pequenos planetas orbitando o Sol. Scheiner, treinado na doutrina aristotélica, não podia aceitar que um objeto celeste tivesse qualquer tipo de imperfeição. Segundo Aristóteles, todos os objetos celestes eram feitos de éter - a quintessência-, sendo, portanto, perfeitos. Venceu Galileu, após humilhar bastante seu oponente, como era seu estilo.

O que não sabia é que as manchas solares têm dimensões maiores do que da Terra e representam uma medida de atividade magnética na superfície solar. Hoje, sabemos que o Sol apresenta ciclos de atividade de duração de onze anos, nos quais o número de pares de manchas solares aumenta durante o pico dos ciclos, indicando o borbulhar magnético do astro-rei. Essa atividade tem sérias implicações para a Terra.

No dia 14 de julho de 2000, cientistas no Centro Ambiental Espacial em Boulder, no Colorado, monitorando o satélite Goes-8, detectaram uma emissão violenta de raios X emitida por uma região do Sol que, durante os dias precedentes, havia demonstrado alta atividade. Os raios X acusavam a formação de uma gigantesca centelha, emitindo energia equivalente a bilhões de megatoneladas de TNT: literalmente, uma explosão apocalíptica na superfície do Sol. Outro satélite, Soho, também detectou a centelha em sua órbita a 1,5 milhão de quilômetros da Terra, um décimo da distância até o Sol. Após meia hora, o Soho detectou outro fenômeno, de proporções assustadoras: a ejeção de uma bolha de bilhões de toneladas de plasma, partículas eletricamente carregadas. Destino: Terra.

A bolha, um exemplo de ejeção de massa coronal (do inglês "coronal mass ejection", ou CME), viajando a 1.700 quilômetros por segundo, chegou aqui 25 horas mais tarde. Ao passar pelo Soho, a bolha provocou pane em seus instrumentos, desligando-os temporariamente. Em um dia suas células solares sofreram danos equivalentes aos de um ano. Um satélite japonês foi perdido. Outros tiveram seus instrumentos de detecção e transmissão de dados arruinados.

Em outubro do ano passado, uma tempestade solar emitiu outra massa coronal gigantesca. Essa eu mesmo vi -ao menos uma de suas consequências- do jardim da minha casa: as partículas de plasma, ao se chocarem com a atmosfera terrestre, provocaram uma belíssima aurora boreal, cortinas de luz oscilando no céu em tons de vermelho e laranja. Uma das (poucas) vantagens de morar em latitudes altas.

A conexão Terra-Sol tem uma importância que vai além das belas auroras. As partículas solares, altamente energéticas, são afuniladas pelo campo magnético terrestre, concentrando-se principalmente nos pólos. Caso a Terra não tivesse um campo magnético, nosso casulo, não poderíamos sobreviver à radiação. De fato, durante tempestades solares, astronautas da estação espacial têm de procurar abrigo em partes da espaçonave com proteção extra. Imagine o Sol e a Terra como duas bolas ligadas por elásticos. Esses elásticos são as linhas de campo magnético, que gosto de visualizar como um cordão umbilical unindo-nos ao astro que nos mantém vivos. As bolhas de plasma seguem essas linhas como se fossem trilhos, juntamente com as partículas que formam o vento solar, a emissão normal proveniente do Sol, composta principalmente por prótons. A maior pressão durante uma tempestade solar modifica o campo magnético terrestre, diminuindo sua eficiência. Partículas carregadas colidem com satélites, provocando faíscas e danificando instrumentos. Mais ainda, as tempestades aquecem a atmosfera, fazendo-a dilatar. Isso causa aumento no atrito que pode levar à queda dos satélites em órbitas mais elevadas.

A vida moderna depende crucialmente de satélites: transações bancárias, GPS, telefonia celular, telecomunicações. A conexão Terra-Sol representa mais um lembrete que não devemos nos esquecer de nossos vizinhos cósmicos.

domingo, 10 de outubro de 2004

Repensando o nada: uma deconstrução da matéria

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Como definir o nada? Segundo o "Aurélio", nada significa "nenhuma coisa", "de modo algum", ou "a não-existência". Aparentemente, é tudo muito simples: o nada é a ausência de algum objeto material, de alguma "coisa". Ou, puxando para o lado da metafísica, o nada é a não-existência, o não-ser. Portanto, o nada pode ser igualado à ausência de coisa material ou existência. Ao vazio, físico ou metafísico.

Uma vez definido o nada, a próxima questão é, naturalmente: "Será que o nada existe?" Será possível que um determinado volume do espaço seja completamente vazio de coisas ou de ser? Até o início do século 20, a resposta, baseada no que chamamos de física clássica, seria: "Sim, em princípio é possível selar um determinado volume, por exemplo, uma garrafa inquebrável, e usar uma bomba de vácuo para sugar o ar e outras substâncias em seu interior até que toda a matéria tenha sido expelida. O que resta é apenas espaço vazio, o nada".

Veja que, mesmo aqui, no mundo clássico, existem duas suposições essenciais para que o vazio seja criado: primeiro, a garrafa ou volume que o contém tem de ser inquebrável. Caso contrário, a bomba de vácuo causaria a sua implosão. Segundo, a bomba de vácuo tem de ser perfeita, capaz de sugar toda a matéria, todos os átomos do que quer que esteja na garrafa. Como garrafas inquebráveis ou bombas de vácuo com eficiência perfeita não existem, atingir o nada, mesmo no mundo clássico, é, na prática, impossível. O que é factível é atingir um nada aproximado, um volume tão destituído de matéria que, para fins experimentais, podemos chamá-lo de nada. Pelo menos para fins experimentais que não envolvam efeitos atômicos.

Ao descermos à escala dos átomos, as coisas tornam-se bem mais sutis. Um dos resultados mais importantes da física quântica, a física que estuda o mundo dos átomos e das partículas subatômicas, é que, na natureza, nada está em repouso absoluto. Imagino o leitor mais cético dizendo que isto é besteira, que se você deixar um vaso sobre uma mesa ele ficará lá, sem se mexer até o fim dos tempos. É verdade que o vaso inteiro estará lá, aparentemente imóvel. Mas, se pudéssemos olhá-lo com lentes especiais, capazes de revelar distâncias de centésimos de milionésimos de centímetro, veríamos uma realidade muito diferente: átomos ligados a átomos por forças elétricas, vibrando como gelatina; elétrons escapando e voltando a eles, mudando de posição constantemente, interagindo com partículas de luz. O que chamamos de vaso passa a ser um conjunto de vibrações materiais, ondulações que respondem à radiação eletromagnética (as partículas de luz e outras radiações, como infravermelho e ultravioleta).

O mundo quântico é caraterizado pela ausência de permanência: há uma agitação perene, incessante. A rigidez material familiar é uma ilusão causada pela nossa percepção macroscópica da realidade.

Na escala quântica o nada não existe, nem mesmo como suposição. A agitação das partículas de matéria redefine a energia de um sistema físico. Se, no mundo macroscópico, um vaso imóvel sobre uma mesa pode ser definido como tendo energia zero (para os leitores mais técnicos, tomamos a mesa como o zero de energia potencial gravitacional), na escala quântica a vibração constante de seus átomos torna isso impossível. Existirá sempre uma agitação residual, com uma energia associada.

E o que isso tem a ver com o nada? Lembrem-se da relação E=mc2, que diz que matéria e energia, sob certas condições, são interconversíveis. Tomemos então um espaço sem matéria, "vazio". A física quântica mostra que, mesmo neste caso, flutuações de energia existem. O nada tem uma energia associada. Sendo assim, partículas podem surgir dessas flutuações, matéria brotando do nada.

Em 1948, H. Casimir, um físico holandês, propôs que as flutuações do vácuo provocariam uma força atrativa entre duas placas metálicas. O efeito foi confirmado: por incrível que pareça, a energia do nada foi medida recentemente em laboratório. O vazio está cheio de energia.

domingo, 3 de outubro de 2004

Testes parapsicológicos




Quando era garoto, uma de minhas maiores frustrações era ter um cérebro normal, desprovido de poderes mágicos. Eu passava vários minutos me concentrando, tentando mover objetos com a "força" da minha mente. Tinha ouvido falar de que conhecíamos apenas uns 10% do nosso cérebro e que, se fôssemos capazes de explorar os outros 90%, coisas milagrosas aconteceriam. Estava convencido de que somos todos dotados de superpoderes mentais que só não se manifestam devido ao caos de nossas vidas atribuladas; era só eu me concentrar um pouco mais.

Mas o garfo permanecia indiferente, o guardanapo também, até o palito. Decididamente, não era dotado de poderes telecinéticos. Meu cérebro só movia pensamentos e músculos. Foi então que assisti na TV à uma apresentação do famoso médium israelense Uri Geller. Ele olhava para uma colher e, após alguns instantes, ela estava toda torcida, para surpresa e deleite da audiência. Relógios quebrados voltavam a funcionar. Tudo isso, segundo Geller, devido aos seus poderes mentais. Eu era mesmo um azarado, fadado a ter um cérebro normal. Resolvi deixar a parapsicologia de lado e estudar física.

Por uma dessas coincidências que afrontam o senso comum, fui fazer meu doutorado no King's College em Londres, sob orientação de John G. Taylor, um físico especializado em teorias de partículas elementares. O que não sabia é que Taylor tinha um passado oculto, que o ligava diretamente a -adivinhem- Uri Geller!

Durante os anos setenta, quando Geller viajou pelo mundo com seu show, recolhendo muito dinheiro com seus supostos poderes, Taylor foi convidado pela rede BBC para participar de uma exibição ao vivo. Quando viu o que Geller fazia ficou perplexo. Resolveu montar um laboratório para testar poderes telecinéticos. Escreveu livros sobre o assunto que se tornaram best-sellers. O próprio Taylor virou uma celebridade, o cientista que iria demonstrar a veracidade dos poderes da mente.

Passado um tempo o laboratório estava montado, um assistente havia sido contratado (um argentino enorme, barbudo, com olhos azuis profundos, muito parecido com o Rasputin) e os testes começaram. O próprio Geller foi convidado. Sensores capazes de detectar pressão mecânica foram postos sobre garfos e colheres, eletrodos ligados ao cérebro dos paranormais, câmeras de filmar montadas em pontos estratégicos do laboratório.

E nada. Nenhum efeito foi detectado. Um após outro, os sensitivos desfilaram pelo laboratório, todos fracassando miseravelmente. Taylor escreveu um livro retratando-se, mas a empreitada lhe custou caro. Quando eu dizia que era aluno dele, alguns físicos mais velhos davam um sorrisinho de desdém profundamente irritante. Quando tentei abordar o assunto, Taylor me disse categoricamente que isso era coisa do passado, "tudo besteira".

Uri Geller foi sumindo de circulação. Hoje poucos sabem dele. Mas a crença em poderes parapsicológicos continua firme e forte. O físico francês Georges Charpak, vencedor do Prêmio Nobel, escreveu um livro com outro físico, Henri Broch, expondo a falácia da parapsicologia. Broch, que também é mágico, é capaz de repetir todos os truques ditos paranormais exatamente como fazem os ditos sensitivos.

O mágico americano "Fabuloso Randi" há anos vem fazendo o mesmo. Tudo não passa de mágica enganosa, feita por pessoas desonestas que exploram a credulidade e inocência das pessoas como eu adolescente, que querem acreditar em mundos ocultos e poderes sobrenaturais. Pessoas enfadadas com os limites da realidade.

Foi então com surpresa que li uma resenha do livro de Charpak e Broch no "New York Review of Books" escrita por Freeman Dyson, um mentor e amigo. Segundo Dyson, a parapsicologia não deve ser descartada só por que testes em laboratório falham. Talvez, especula, os métodos científicos atuais sejam inadequados para examinar o mundo paralelo de certos fenômenos mentais. Acho pouco provável. Por que nenhum cientista sério tem esses poderes? Por que um paranormal não faz uma demonstração que Randi ou Broch não possam reproduzir? Mas adoraria concordar com Dyson. Estamos sempre querendo ser mais do que somos.