domingo, 21 de dezembro de 2003

Discurso prático sobre energias e suas transformações

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Energia é uma dessas palavras que são usadas com mais facilidade do que entendidas. Comecemos com o Aurélio: 1. Força, vigor. 2. Firmeza de caráter [essa eu não conhecia] 3. Fís. Propriedade dum sistema que lhe permite realizar trabalho. Claro, estou mais interessado nessa última. Para entendê-la, é bom definir "trabalho", já que o sentido aqui não é o mais comum.

Eis um exemplo: seu carro morreu e precisa ser empurrado. Você tem de aplicar uma força sobre ele. Essa força, ao mover o carro a partir do repouso, estará realizando trabalho. Para tal, você gastará energia. E de onde vem essa energia? Dos seus músculos. E a energia dos seus músculos? Vem da metabolização dos alimentos. Eles, por sua vez, precisam ser plantados por alguém e, para crescer, precisam da energia do Sol. E a energia do Sol? Vem de processos de fusão nuclear em seu interior.

Portanto, em última instância, quem moveu o seu carro foram os prótons fundindo-se no interior do Sol. Sei que isso não é lá um grande consolo quando você está suando em bicas no meio da rua, mas ao menos você não se sentirá assim tão sozinho. Você e os prótons solares empurram juntos o seu carro.

O exemplo acima mostra que, ao empurrar o carro, ou seja, ao realizar trabalho sobre ele, você transferiu energia do seu corpo para o carro. Com isso, você mudou a sua velocidade, no caso a partir do repouso. A energia de movimento do carro se chama energia cinética. Podemos então dizer que trabalho é equivalente à mudança na energia cinética do carro de zero (carro em repouso) ao seu valor final (carro em movimento).

Tudo que se move pode realizar trabalho. Um exemplo disso é uma colisão. Você e os prótons solares estão empurrando o seu carro na rua quando vem um infeliz na contramão e bate de frente em você. Felizmente, ele estava indo devagar. Mas o estrago fica estampado nos pára-choques. Ou seja, a energia cinética dos carros foi usada na deformação de suas latarias. Esse não é mesmo o seu dia.

Aos berros, você larga o carro na rua e vai procurar um telefone público. Passando abaixo da marquise de um prédio, um moleque no quarto andar resolve testar a lei da gravidade soltando um balão de borracha cheio d'água. Ele acerta bem na mira, a sua cabeça. Num primeiro momento vem a raiva, mas a água fresca até que lhe faz bem, com o calor e o seu corpo suado. E se não fosse água? "Mais um desgraçado", você grita, olhando para cima, mas o moleque se esconde atrás da janela, às gargalhadas.

Você reflete sobre o que ocorreu. Quando o moleque está segurando o balão fora da janela, ele não está em movimento. Mas, assim que o balão cai, a sua velocidade aumenta devido à força da gravidade. No caso, é a gravidade que está realizando trabalho sobre o balão. Quanto mais alto o balão, maior será a sua energia de impacto. Se o moleque vivesse no oitavo andar, o balão explodiria bem mais violentamente em sua cabeça.

Existe aí uma transformação entre dois tipos de energia. Quando o balão está para cair, tem apenas energia potencial, a capacidade de realizar trabalho, caso entre em movimento. Ao cair, a energia potencial vai se transformando em energia cinética até que, ao chegar ao chão, toda ela virou cinética. Existem vários tipos de energia, que podem se transformar uns nos outros. Uma mola, quando comprimida, também armazena energia potencial. Ao ser solta, ela entrará em movimento, adquirindo energia cinética.

Você finalmente acha um orelhão que, claro, está quebrado. Olhando para o céu, você amaldiçoa os deuses, comparando sua sorte à de Jó. De repente, você escuta uma bela voz que diz: "O senhor quer usar meu celular?" É uma belíssima moça, sorriso estampado no rosto.

Incrédulo e molhado, você aceita. Ao discar o número da sua companhia de seguros, você imagina as cargas elétricas na bateria do celular, as negativas atraídas às positivas. Essa atração faz com que elas se movam, gerando a corrente que alimenta o telefone: energia química transformando-se em cinética.

Você dá uma olhada para a moça e timidamente pergunta: "Quer tomar um café comigo ali no bar da esquina?". Para sua surpresa, ela aceita. Uma outra transformação energética começa a ocorrer em seu corpo, fazendo seu coração bater mais rápido.

domingo, 14 de dezembro de 2003

A música das esferas

A música, dentre as artes, é a mais misteriosa. Como podem os sons invocar emoções tão fortes, alegrias e tristezas, lembranças de momentos especiais ou dolorosos, paixões passadas e esperanças futuras, patriotismo, ódio, ternura? Quando se pensa que sons nada mais são que vibrações que se propagam pelo ar, o mistério aumenta ainda mais.

A física explica como ondas sonoras se comportam, suas frequências e amplitudes. A biologia e as ciências cognitivas explicam como o aparelho auditivo transforma essas vibrações em impulsos elétricos que são propagados ao longo de nervos para os locais apropriados do cérebro. Mas daí até entender por que um adágio faz uma pessoa chorar, enquanto outra fica indiferente ou até acha aquilo chato, o pulo é enorme.

A música fala diretamente ao inconsciente, criando ressonâncias emotivas que são únicas. É bem verdade que um poema ou um quadro também afetam pessoas de modo diferente. Mas a mensagem é mais concreta, mais direta. Existe algo de imponderável na música, um apelo primordial, algo que antecede palavras ou imagens.

Não é por acaso que a música teve, desde o início da história, um papel tão fundamental nos rituais. Ritmos evocam transes em que o eu é anulado em nome de algo muito mais amplo. Quando um grupo de pessoas escuta o mesmo ritmo, as separações entre elas deixam de existir, e um sentimento de união se faz presente. Mais explicitamente, todo mundo gosta de sambar com uma boa batucada. E todos no mesmo ritmo, ou seja, indivíduos se unificam por meio da dança. A dança dá realidade espacial à música, tornando-a concreta.

A música foi o primeiro veículo de transcendência do homem. Daí sua presença tão fundamental nas várias religiões. E ela foi, também, a primeira porta para a ciência. Tudo começou em torno de 520 a.C., quando o filósofo grego Pitágoras, vivendo na época no sul da Itália, descobriu uma relação matemática entre som e harmonia. Ele mostrou que os sons que chamamos de harmônicos, prazerosos, obedecem a uma relação matemática simples.

Usando uma lira, uma espécie de harpa antiga, ele mostrou que o tom de uma corda, quando soada na metade de seu comprimento, é uma oitava acima do som da corda livre, portanto satisfazendo uma razão de 1:2. Quando a corda é soada em 2:3 de seu comprimento, o som é uma quinta mais alto; em 3:4, uma quarta mais alto.

Com isso, Pitágoras construiu uma escala musical baseada em razões simples entre os números inteiros. Como essa escala era de caráter tonal, os pitagóricos associaram o que é harmônico com o que obedece a relações simples entre os números inteiros.

E foi aqui que eles deram o grande pulo: não só a música que ouvimos, mas todas as harmonias e proporções geométricas que existem na natureza podem ser descritas por relações simples entre números inteiros. Afinal, formas podem ser aproximadas por triângulos, quadrados, esferas etc., e essas figuras podem ser descritas por números.

Portanto, do mesmo modo que a corda da lira gera música harmônica para determinadas razões de seu comprimento, os padrões geométricos do mundo também geram as suas melodias: a música se torna expressão da harmonia da natureza, e a matemática, a linguagem com que essa harmonia é expressa. Som, forma e número são unificados no conceito de harmonia.
Pitágoras não deixou as suas harmonias apenas na Terra. Ele as lançou para os céus, para as esferas celestes. Embora os detalhes tenham se perdido para sempre, segundo a lenda apenas o mestre podia ouvir a música das esferas.

Na época, ainda se acreditava que a Terra era o centro do cosmo. Os planetas eram transportados através dos céus grudados nas esferas celestes. Se as distâncias entre essas esferas obedeciam a certas razões, elas também gerariam música ao girar pelos céus, a música das esferas. Pitágoras e seus sucessores não só estabeleceram a essência matemática da natureza como levaram essa essência além da Terra, unificando o homem com o restante do cosmo por meio da música como veículo de transcendência.

domingo, 7 de dezembro de 2003

O príncipe que mediu o cosmo

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Olhando para o céu noturno, em uma noite sem luar, nos deparamos com o que parece ser uma infinidade de estrelas. Na verdade, a olho nu vemos apenas umas 3.000, que já tornam o céu bastante cheio.

É incrível que até 1610 a astronomia não dispunha de seu instrumento-mor, o telescópio. Medir a posição de uma estrela ou de um planeta significava medir o ângulo que o objeto celeste fazia com o horizonte (a sua latitude celeste, ou declinação) e a sua posição relativa aos pontos cardeais (a sua longitude). Para isso, foram criados instrumentos com nomes como quadrantes e sextantes. Portanto, armado de muita paciência, seria possível medir a posição de cada estrela e de cada planeta e assim reproduzir o arranjo dos céus em um globo ou em um pedaço de papel.

E a coisa era cara. Isso porque medidas astronômicas têm de ser precisas para ser úteis. Um instrumento barato, de pouca precisão, não produzirá bons resultados. Feito um relógio de baixa qualidade, que atrasa ou adianta sempre. O financiamento de bons instrumentos sempre foi um dos grandes obstáculos para o desenvolvimento científico.

Em geral, os cientistas não têm os fundos necessários para comprar ou construir seus próprios instrumentos. Eles dependem de recursos externos, seja do governo, seja da indústria. Mas, na história da ciência, existem algumas exceções a essa regra. Talvez a mais fascinante seja a de Tycho Brahe (1546-1601), o príncipe astrônomo.

Brahe viveu durante a segunda metade do século 16, logo após a morte de Copérnico em 1543. Sua família pertencia à fina flor da nobreza dinamarquesa, com direito a muita pompa e circunstância. Seu destino profissional estava já selado de nascença; como todo nobre, ele deveria estudar direito e se dedicar à administrar a fortuna da família.

Só que Brahe tinha outros planos. Quando era ainda adolescente, viu um eclipse parcial do Sol. Esse evento o impressionou profundamente. Não só por sua beleza, mas também porque ele foi previsto. Para Brahe, poder prever os movimentos celestes era equivalente a conhecer a mente divina. Afinal, se Deus era o arquiteto celeste, a astronomia era uma porta para o divino.
Daí para a frente, Brahe só quis saber de astronomia, para desespero de sua família. Dotado de uma personalidade muito forte, Brahe não fez por menos. Usou o dinheiro da família para construir instrumentos de altíssima precisão e, com eles, começou metodicamente a medir os céus.

Deu sorte. Vários fenômenos celestes estranhos desafiaram a sabedoria da época. Em 1572, quando voltava de seu laboratório alquímico (era normal trabalhar em alquimia, astronomia e astrologia naqueles tempos), Brahe percebeu uma nova estrela brilhando no céu. Estudou suas propriedades até ela desaparecer de vista, concluindo que estava muito além da Lua. Isso contrariava os ensinamentos de Aristóteles, que dizia que os céus para além da Lua eram imutáveis. Como uma estrela podia surgir e desaparecer por si só? Em 1577, ele mostrou que um cometa também estava além da Lua, uma nova violação dos preceitos aristotélicos. Os céus não eram imutáveis.

A essa altura, Brahe já era um astrônomo famoso. Tanto assim que, quando ele ameaçou deixar a Dinamarca, o rei lhe deu de presente uma ilha inteira e fundos para construir um grande castelo-observatório, Uraniborg, "O Castelo dos Céus". Lá, Brahe vivia como um verdadeiro príncipe, cercado de assistentes e súditos. Tinha até um calabouço com salas de tortura onde ameaçava aqueles mais rebeldes. Não era uma pessoa das mais agradáveis. Mesmo fisicamente, seu aspecto era intimidante: tinha um nariz postiço, feito de uma liga de ouro e prata, e olhos negros brilhantes e maliciosos. Parece que um de seus primos lhe rasgou o nariz em um duelo.

À noite, armado de seu quadrante de bronze e carvalho de 38 polegadas de diâmetro, Tycho se transformava. Durante 30 anos, o príncipe astrônomo mediu os céus, centenas de estrelas, as órbitas dos planetas, coletando os dados astronômicos mais precisos até então. Foram esses dados que permitiram que Johannes Kepler, seu assistente e um dos grandes gênios de todos os tempos, obtivesse as leis que regem as órbitas dos planetas. Outro dia eu conto a história de como os dois se encontraram.