domingo, 25 de janeiro de 2004

O tempo e a mente


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

O americano William James, em seu livro "Princípios da Psicologia", de 1890, criou o conceito do fluxo de consciência -que tanto influenciou escritores como Virginia Woolf e James Joyce- para descrever o funcionamento da mente. A imagem sugere o fluir de um rio, um pensamento dando lugar a outro continuamente. Ao mesmo tempo, James se perguntava se essa continuidade não era uma fabricação da mente, que coordenava uma quantidade enorme de estímulos internos e externos, simulando de alguma forma uma percepção contínua da realidade.

Nesse caso, a nossa percepção do passar do tempo, desde o seqüenciamento de fenômenos externos, como o passar de um carro, até o mundo psicológico interno, seria uma ilusão criada pela mente. Feito um filme, que nos dá a ilusão de continuidade, mesmo que seja feito da rápida passagem de uma seqüência de imagens. Henri Bergson, 20 anos após James, usou essa analogia.

Quando o estímulo é externo, uma borboleta passando à sua frente quando você está sentando em uma praça, fica mais fácil pensar na questão. Se nossa visão capta imagens seqüencialmente, como uma câmera fotográfica, então o cérebro tem de fundi-las, criando a sensação da continuidade do movimento.

Tudo mundo sabe que o olho não é capaz de captar movimentos muito rápidos. Basta olhar para um ventilador ligado: você não vê as lâminas da hélice, mas um disco amorfo. O mesmo com uma calota de um carro em movimento.

Em certas doenças neurológicas e até em fortes ataques de enxaqueca, uma pessoa pode perder esse poder de fusão, passando a perceber a realidade como uma sequência de momentos distintos. Em outras, a percepção é como uma daquelas superposições fotográficas em que se vêem vários estágios intermediários de um movimento, como sob uma luz estroboscópica em uma boate.

O médico e escritor Oliver Sacks conta a história de uma paciente que, de vez em quando, perdia completamente a noção da passagem do tempo. O tempo, para ela, simplesmente congelava. Ela começava a encher a banheira d'água, e quando voltava a si a banheira estava transbordando. Durante esses surtos, a sua consciência congelava, enquanto as funções automáticas do sistema nervoso (respiração, batida do coração, ficar de pé) continuavam normalmente.

Esse e outros casos mostram que o fluxo da consciência não é exatamente como um rio: ele pode ser suspenso por minutos ou mesmo horas a fio. A percepção do tempo está intimamente ligada ao mecanismo pelo qual o cérebro compila e combina os sinais e impulsos recebidos pelos cinco sentidos, transformando-os no que chamamos de realidade. Entender os detalhes dessa operação é um dos grandes desafios para os cientistas cognitivos e os filósofos da mente. Um conceito que tem sido bastante usado é o de "populações neuronais".

O cérebro tem em torno de 100 bilhões de neurônios. Mais importante ainda, cada neurônio pode ter até 10 mil sinapses, as pontes que o ligam a outros neurônios. Dependendo dos estímulos, sinapses podem ser ativadas ou não. Essa capacidade dá enorme plasticidade ao cérebro, que pode ser transformado por meio de ligações ativadas entre grupos de neurônios, criando populações que trabalham em sincronia. Diferentes populações respondem a diferentes estímulos, como grupos de instrumentos em uma orquestra, que respondem a diferentes movimentos do maestro.

Segundo essa visão, o que chamamos de mente é a coreografia de vários grupos de neurônios em resposta a estímulos externos e internos. Certos cientistas cognitivos acreditam que a memória de algum evento ou sensação seja conseqüência da estimulação de um determinado conjunto de neurônios e sinapses.

Quando você vê, come ou ouve, um determinado grupo de neurônios e sinapses é ativado. O mesmo estímulo (ou parecido), e você "lembra" ter visto, comido ou ouvido aquilo antes. O que chamamos de realidade é altamente pessoal, produto de como cada cérebro ressoa com o que percebe e com o que lembra. Faça o teste: compare a sua descrição do mesmo evento -a borboleta passando à sua frente- com a de um amigo. Os detalhes de cada narrativa serão únicos, mesmo que o evento seja o mesmo. Cada pessoa vê a sua borboleta.

domingo, 11 de janeiro de 2004

Invenções e curiosidades de 2003


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

No dia 14 de dezembro, foi publicada na revista dominical do jornal "The New York Times" uma lista das melhores e piores idéias e invenções de 2003. Mesmo que não tenha espaço para discorrer sobre todas elas, acho que vale a pena citar algumas das mais interessantes, em especial aquelas ligadas à ciência e à tecnologia.

Asas humanas - Pela primeira vez um ser humano conseguiu voar sem motores ou aviões. Felix Baumgartner pulou de um avião a 10 mil metros munido apenas de um par de asas de fibra de carbono com dois metros de extensão, uma espécie de miniasa-delta presa nos braços do voador.

Seu objetivo era voar da Inglaterra até a França, avançando um metro para cada quatro de queda a uma velocidade de 330 km/h. Quando atingiu altitude de mil metros, a costa da França estava já à vista. A aterrissagem foi por pára-quedas. Uma companhia austríaca planeja vender a "Arraia Celeste" em breve. (Acho que em português o nome não vai pegar. "Asas Humanas" parece bem melhor.) Militares e atletas de esportes extremos já estão de olho.

Minibombas nucleares - Como se já não houvesse controvérsia de sobra na área de proliferação nuclear, o governo americano está discutindo minibombas atômicas, com capacidade de até 1/3 da que destruiu Hiroshima. A idéia é manter a política de detenção usando minibombas para assustar os novos inimigos da paz: células terroristas escondidas em cavernas (Afeganistão) ou programas nucleares clandestinos (o inexistente programa iraquiano, que supostamente ocorria em galpões subterrâneos). Mesmo que menores, as bombas geram enormes quantidades de radiação e podem ser detonadas em alvos errados ou inexistentes, como o programa nuclear iraquiano. Ou com objetivos terroristas, como o Pentágono.

Câncer, a vacina - Descobrir uma vacina contra o câncer é um sonho antigo. Mas um laboratório de biotecnologia americano parece ter dado um passo na direção certa. As células cancerígenas se parecem muito com células normais, ao menos o suficiente para enganar as células dendríticas, as primeiras a reconhecer um objeto estranho invadindo o corpo. Com isso, as células cancerígenas permanecem no corpo sem encontrar resistência. Isolando as células dendríticas do paciente e expondo-as à células cancerígenas em grandes quantidades, o processo de defesa passa a funcionar: as células dendríticas digerem os invasores e, quando reinjetadas na corrente sanguínea, mandam um sinal de identificação ativando as células T, a milícia de defesa do corpo. Resultados preliminares em pacientes com câncer de próstata avançado foram promissores: 36% permaneceram estáveis por seis meses. Testes em pacientes com câncer de ovário, cólon e mama estão em andamento.

Ameaça nanotecnológica - Criar máquinas com dimensões moleculares pode parecer ficção científica, mas não é. A idéia é ter exércitos de minirrobôs capazes de construir objetos variados -circuitos de computadores, carros, TVs, remédios e vacinas- em fábricas do tamanho de células, usando material (átomos e moléculas) coletado do mundo natural, como crianças fazem com blocos de Lego. Para gerar algo com dimensões humanas, os robôs teriam de se auto-reproduzir usando também matéria-prima natural. Se algum entrar em pane e se auto-replicar sem parar, passando a informação defeituosa para a sua prole, bilhões de minirrobôs poderão devorar o planeta em apenas alguns dias, um apocalipse nanotecnológico. A ameaça é um tanto exagerada. Robôs podem ser criados com dispositivos de autodestruição, caso não cumpram as suas funções. Como sempre, novas idéias geram promessas e medos.

Mente sobre matéria - Cientistas construíram um dispositivo capaz de enviar mensagens do cérebro de macacos para braços mecanizados. O dispositivo capta a agitação elétrica produzida por grupos específicos de neurônios, traduzindo-a em instruções legíveis pelo órgão robótico. Com isso, paralíticos poderão manipular objetos através de seu pensamento. Claro, militares também estão interessados: imagine um exército de robôs controlados pela mente de apenas um humano. Mais promessas e medos, confirmando que a ciência é espelho do que temos de melhor e pior.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2004

O espírito da coisa

Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Após viagem de quase seis meses, no último dia 4 a sonda Spirit (Espírito), da Nasa (agência espacial americana), pousou em Marte. O local do pouso é a cratera Gusev, onde cientistas acreditam ter existido um lago. Imagino que o leitor já tenha visto fotos enviadas pela sonda ou esteja a par do acontecimento por este jornal ou outros meios. Não dá para exagerar o quanto é impressionante esse feito tecnológico.

Quem já brincou com carrinho de controle remoto sabe que não é fácil evitar acidentes, colisões ou interrupções na transmissão de sinais, mesmo quando se vai só da sala de jantar até o quarto. Imagine quando o carrinho é um foguete que tem de pousar em um planeta ao qual ninguém jamais foi, a uma distância de 80 milhões de quilômetros.

Recentemente, assisti a um programa da série "Nova", de documentários científicos semanais (é, a televisão americana encontra espaço para excelentes documentários semanais sobre ciência), do canal público PBS (Public Broadcasting System), que apresentava a construção da Spirit: os inúmeros testes, os momentos angustiantes (quando toda a missão estava para ser cancelada se uma falha não fosse consertada em dias), os momentos de triunfo (quando os testes funcionavam), enfim, anos de trabalho envolvendo centenas de engenheiros, técnicos e cientistas que desbravavam as fronteiras da tecnologia espacial.

Quando a câmera mostrava os cientistas trabalhando, eu via um grupo de garotos e garotas brincando com seus carrinhos de controle remoto, empinando pipa, gritando e chorando, extasiados com a possibilidade de dedicar suas vidas à exploração do desconhecido, misturando o lúdico com o profissional. Não é à toa que o grande físico americano Isidore I. Rabi dizia que os cientistas são os "Peter Pans" da sociedade.

Marte é mesmo um lugar estranho: o céu é rosa, e o pôr-do-sol, azul. A temperatura pode variar em mais de 30C dos pés à cabeça. Um de seus vulcões é maior do que o Estado de São Paulo. Montanhas são mais altas do que o monte Everest. O frio é terrível e constante, e o vento, horrendo. Decididamente, Marte não é um lugar para passar as férias. Que sejam antes enviados os robôs. Se os portugueses tivessem robôs no século 16, certamente os teriam mandado antes.

Spirit é a quarta missão a pousar em Marte. Os ingleses, coitados, perderam contato com o seu robô Beagle-2, que chegou a Marte alguns dias antes da Spirit. Duas sondas Viking pousaram lá nos anos 70, e a Pathfinder chegou em 1997. Seu carro robotizado, Sojourner, circulou pela superfície por meses, encantando o mundo. O seu sítio na internet é o mais visitado em toda a história. Mas nenhuma dessas missões se compara à Spirit e à sua companheira, Opportunity, que deve pousar no próximo sábado.

Oito minutos antes da "marterrissagem", a espaçonave libera o módulo que irá chegar ao solo. Ele deve atingir a atmosfera a um ângulo de 11,5. Um erro de 0,2 e ele ricocheteia para o espaço ou explode na atmosfera. Divida um círculo em 1.800 segmentos iguais; esse é um ângulo de 0,2. O módulo entra com uma velocidade de 20 mil km/h e tem apenas seis minutos para chegar à velocidade zero no solo.

Um escudo aumenta a fricção (brilhando como um pequeno sol) e diminui sua velocidade até 1.600 km/h. Um pára-quedas abre e a velocidade cai para 300 km/h. Um cabo de 30 metros é usado para baixar a sonda de dentro do módulo, como um bebê em um cordão umbilical. Um cinturão de bolsões de ar de três metros de altura infla em torno da sonda em meio segundo, e retrofoguetes entram em ignição para diminuir ainda mais a velocidade. Imediatamente antes do pouso, o cabo é cortado e a sonda cai, quicando pela superfície feito uma bola até parar. Todos esses estágios tiveram de funcionar perfeitamente para o sucesso do pouso. E todos funcionaram.

O objetivo principal da missão é encontrar água líquida ou seus vestígios. Por isso o pouso no suposto lago. Sem água, a vida é impossível, ao menos nas formas que conhecemos. Marte pode nos surpreender. Espero que sim. Mas, caso não seja com alguma forma de vida, presente ou passada, será com outra coisa. E tudo isso porque alguns garotos nunca deixaram de brincar com seus carrinhos de controle remoto.

domingo, 4 de janeiro de 2004

Inércia e balas de canhão


Marcelo Gleiser
especial para a Folha

Antes da época de Galileu Galilei, no início do século 17, existia uma grande confusão com relação ao que seria o movimento natural de um corpo.

Uma gravura feita durante a Idade Média mostra a trajetória de uma bala de canhão. A gravura faz parte de um tratado de balística, provavelmente para educar futuros comandantes de artilharia. O canhão estava na parte interior de um castelo protegido por uma grande muralha. As tropas inimigas estavam do lado de fora. O objetivo militar era disparar a bala de canhão de modo que ela atingisse as tropas inimigas. A gravura mostrava a trajetória "ideal" da bala: ela saía do canhão em uma linha reta, inclinada com relação ao chão, passava sobre a muralha e, quando estava bem acima das tropas, simplesmente caia verticalmente, como uma pedra jogada do alto de um prédio.

Sempre achei essa gravura incrível. Como seria possível alguém acreditar que a bala se move desse jeito? Qualquer criança sabe muito bem que, quando se atira uma pedra para a frente, sua trajetória descreve um arco, mais precisamente uma parábola, e não duas linhas retas formando um triângulo com o chão. Será que o ilustrador nunca havia atirado uma pedra, ou visto uma catapulta lançar bólidos contra tropas inimigas? (Aliás, os bólidos incluíam de pedras e bolas de piche em chamas a vacas, cabras e até cadáveres putrefatos.)

A resposta é que o ilustrador separava o que via de como explicava o que via. Na época, os movimentos eram explicados pela física aristotélica, que os dividia em dois tipos, naturais ou forçados. Segundo Aristóteles, o movimento natural dos objetos era retornar ao seu lugar de origem em linha reta. Portanto, o que era feito de terra deveria retornar à terra, o que era feito de água, à água, de ar, ao ar, e de fogo, ao fogo. O que cai cai em linha reta, o que sobe (ar e fogo) sobe em linha reta.

Para impor movimentos que não sejam verticais, deve-se forçar o objeto. Essa é a função do canhão. Quando a quantidade de movimento forçado acaba, a bala cai em linha reta, seguindo seu movimento natural. O soldado tinha então de saber como inclinar o canhão de modo que o movimento forçado terminasse bem acima das tropas. Outro detalhe importante: segundo Aristóteles, quando mais pesado um objeto, mais rápido ele cairia, pois maior seria a tendência de retornar ao seu lugar de origem.

O fato de uma bala de canhão não andar em linha reta não significa que a previsão do ilustrador estivesse errada. Se o soldado soubesse como inclinar o canhão ele acertaria o alvo. Muitas vezes, explicações que são eficientes podem estar conceitualmente erradas. Quando Galileu entra em cena, ele destrói as explicações aristotélicas com uma série de experimentos. No mais famoso, ele deixa duas balas de canhão caírem do alto da Torre de Pisa, uma bem mais pesada que a outra, e mostra que ambas atingem o chão praticamente ao mesmo tempo. A hipótese de Aristóteles estava errada: a gravidade acelera todos os corpos do mesmo jeito, sem discriminação.

Galileu usou seus experimentos para mostrar que o movimento dos projéteis, balas de canhão ou não, pode ser decomposto em duas partes: um movimento retilíneo com velocidade constante e um acelerado verticalmente para baixo, também em linha reta. Isso não deixa de ser meio parecido com a ilustração da Idade Média. A grande diferença é que Galileu mostrou que, quando os dois movimentos são combinados, o projétil descreve uma parábola.

Ele também entendeu algo muito profundo com relação ao movimento dos objetos: na ausência de distúrbios externos, um objeto movendo-se em linha reta com velocidade constante continuará nesse movimento indefinidamente. É a semente do conceito de inércia. Pense em um patinador no gelo. Se não houvesse atrito entre os patins e o gelo, o patinador continuaria seu movimento para sempre.

O que faltava a Galileu eram os conceitos de massa e força, que vieram com Isaac Newton: massa é uma medida da inércia de um corpo, sua tendência a manter o movimento na ausência de forças externas. Curioso que Newton nasceu em 1642, o ano que Galileu morreu, como se a lei da inércia pudesse também ser aplicada ao seu próprio desenvolvimento.