domingo, 26 de março de 2000

A estranha cadeira quântica

O mundo do muito pequeno, dos átomos e seus integrantes, apresenta comportamentos que destoam totalmente do "nosso" mundo, que os físicos chamam de mundo clássico. Essas diferenças de comportamento entre sistemas quânticos e clássicos deu, e ainda dá, muita dor de cabeça aos físicos que se preocupam com o que podemos chamar de definição da nossa "realidade".

Eis aqui a questão essencial: definimos realidade, ou o mundo em que vivemos, por meio de nossas interações sensoriais com esse mundo. Daí que, ao vermos uma cadeira, estamos "interagindo" com essa estrutura de madeira. A luz ambiente -na forma de suas partículas conhecidas como fótons- é refletida por essa estrutura e vem de encontro aos nossos olhos. O estímulo é então levado pelo nervo ótico à parte (ou partes) do cérebro responsável pela decodificação desse impulso e pela sua reconstrução interna: nossa mente reinventa o mundo exterior. Mas essa é uma outra história.
O ponto é que, para vermos uma cadeira, recebemos uma informação que nos permitiu identificar esse objeto como tal. Se estivéssemos no escuro, teríamos de tatear a estrutura de madeira para identificá-la como uma cadeira. O que acontece se, em vez de uma cadeira, queremos identificar um átomo de hidrogênio?

Usando a mesma analogia da cadeira e da luz, para "vermos" um átomo, temos de interagir com ele. Claro, como nosso olho é cerca de dez bilhões de vezes maior que o átomo, não dá para acender a luz e enxergá-lo diretamente. Vamos então ao caso intermediário de uma bactéria, uma ameba com um milionésimo de metro. Precisamos usar um microscópio, que, com uma pequena lâmpada, ilumina nossa ameba e amplia sua imagem de forma que possamos enxergá-la.

Portanto, o mecanismo que usamos para enxergar a ameba no microscópio é semelhante ao que usamos para enxergar uma cadeira. Ambos são objetos clássicos. Já com o átomo a coisa é bem diferente. Não dá para enxergá-lo com um microscópio comum. Na verdade, jamais podemos "ver" um átomo. Isso (entre outras coisas) porque a luz é uma onda, e como tal tem uma certa distância associada a ela, seu "comprimento de onda" ou a distância entre duas cristas consecutivas. O ponto é que a luz visível tem comprimentos de onda entre 4 e 7 centésimos de milésimo de centímetro, ou seja, 10 mil vezes maior que um átomo: o átomo passa despercebido. Para contornar esse problema, temos de "ajeitar" nosso foco, o que significa diminuir o comprimento da onda da luz. O problema é que, ao diminuir o comprimento da onda da luz, aumentamos sua energia: a luz violeta tem comprimento de onda menor do que a luz vermelha e é mais energética. Para chegarmos em comprimentos de onda de escalas atômicas, temos de usar os raios X ou gama, as radiações mais energéticas que existem.

O problema agora complica bastante. Como sabemos, ondas transportam energia e momento: basta ficar na frente de uma onda do mar para conferir tal fenômeno. Ao "focar" nossa luz, diminuímos seu comprimento de onda, aumentando sua energia. O resultado é que, agora, a radiação é tão energética que, ao rebater no átomo, lhe dá um empurrão, mudando sua posição. Conclusão: no mundo quântico, o ato de medir interfere com o que está sendo medido. No caso do átomo, ao tentar "vê-lo", isto é, medir sua posição, acabamos empurrando-o para outra posição, devido à transferência de momento da radiação. Ou seja, jamais conseguiremos medir exatamente a posição e velocidade do átomo. Todas as nossas medidas vêm com um limite intrínseco devido à interferência do próprio ato de medida. Esse é o famoso "princípio de incerteza", que Werner Heisenberg propôs em 1925.

Se nossa cadeira fosse um objeto quântico, ela não pararia no mesmo lugar jamais, mudando de posição de forma aleatória. Felizmente, vivemos em um mundo clássico, onde a energia e o momento transferidos pela luz a uma cadeira são desprezíveis. Ainda bem, pois, senão, estaríamos todos nós, cadeira, eu e você, nessa perpétua dança quântica.

domingo, 19 de março de 2000

Matéria às escuras

Copérnico, ao proclamar que o Sol era o centro do cosmos, e não a Terra, desferiu um duro golpe em nossa dignidade. Afinal, fomos rebaixados do centro para a periferia, dividida com um bando de outros planetas. De reis passamos a ser corte, fadada a rodear o "astro-rei" por toda a eternidade, ou pelo menos por um bom tempo. Claro, a idéia não foi de Copérnico, mas de um astrônomo grego do século 3 a.C., o grande Aristarco de Samos. Mas a redescoberta de Copérnico foi apenas o início. Logo, descobrimos que o Sol é uma mera estrela, como bilhões de outras na Via Láctea, nossa galáxia. Mas pelo menos nossa galáxia era especial, a única no cosmos, uma ilha de estrelas cercada de imensidão por todos os lados.

Mas nem esse tênue resquício de dignidade durou muito. Em 1924, o astrônomo americano Edwin Hubble provou que a Via Láctea é apenas um dos bilhões de "universos-ilha", isto é, outras galáxias, que existem no Universo. Fora o fato de nós estarmos aqui, nossa galáxia não tem nada de muito especial. Ao menos, nos resta o consolo de que somos parte do Universo, dividindo com ele sua composição material. Nós somos, como dizem os poetas astrofísicos, poeira das estrelas, feitos dos mesmos prótons, nêutrons e elétrons que o Sol e seus primos. Isso está garantido. Poetas e cientistas, ou poetas-cientistas, podem ficar sossegados. Só que a matéria da qual somos compostos é praticamente insignificante quando comparada com o material que realmente domina a dinâmica cósmica. Ou seja, somos poeirinha cósmica.

Eu explico. Nos anos 30, Fritz Zwicky, um grande iconoclasta da astronomia, descobriu que as velocidades das galáxias quando em grupos era muito maior do que a resultante da força gravitacional que elas exercem entre si. Zwicky argumentou que em torno de 90% da massa no "aglomerado" era invisível, isto é, algo que não gera sua própria luz. Várias soluções foram propostas para explicar essa "matéria escura": nuvens de gás interestelar, estrelas que não têm massa suficiente para iniciar o processo de fusão, planetas como Júpiter etc. Na última década, ficou claro que todas essas "soluções" não contribuem em quantidade suficiente para a matéria escura. Na verdade, a coisa é bem mais exótica: aparentemente, a matéria escura não é o que nós chamamos de matéria, isto é, prótons, nêutrons ou elétrons. A matéria normal constitui apenas cerca de 10% a 30% da matéria cósmica. E o resto?

Claro, se o assunto é a composição material do cosmos, o macro se mistura com o micro; físicos de partículas examinam a possibilidade de que esse outro tipo de matéria seja composto pelas chamadas partículas supersimétricas, pares das partículas normais de matéria. Segundo essa teoria, cada partícula de matéria tem sua parceria supersimétrica: o elétron tem o selétron, o quark tem o squark, o fóton tem o fotino etc. Ainda não as descobrimos porque elas interagem tão fracamente com a matéria ordinária que passam completamente despercebidas, ou quase.

Aproximadamente 10 trilhões dessas partículas passam por um quilograma de matéria por segundo! Não adianta querer escapar, pois elas vêm de todos os lados. Mas nem todas as partículas supersimétricas são estáveis; apenas a mais leve delas sobrevive. As outras se desintegram em partículas mais leves, até chegar na peso-pena. É essa que se transformou na menina dos olhos dos caçadores de matéria escura.

Um grupo de físicos italianos e chineses, em um laboratório sob a montanha Gran Sasso, na Itália, declarou em fevereiro ter detectado sinais dessa partícula: seus detectores acusaram colisões entre as superpartículas e núcleos atômicos. Já outro grupo em Berkeley não viu nenhuma colisão em seus detectores, questionando o resultado italiano.

Durante essa década, detectores mais sensíveis irão decidir a questão. No meio tempo, temos de ficar às escuras, juntamente com a maior parte do Universo.

domingo, 12 de março de 2000

Perguntar é preciso

Existem três questões abertas em ciência que dividem uma temática única: a questão das origens. Eu costumo chamar essas questões de "o problema das três origens": a origem do Universo, a origem da vida e a origem da mente. Leitores mais fiéis desta coluna certamente já se depararam com textos que discutem os desafios e progressos relacionados a essas questões. O que as torna tão fascinantes é que elas não são apenas de interesse científico, mas questões que volta e meia qualquer um se pergunta. Aliás, essa é a razão pela qual elas são tão interessantes para os cientistas: de certa forma, o questionamento sobre nossas origens é o que define a humanidade, é o que nos permite conviver com o fato que pensamos, existimos e morremos.

Não é à toa que as primeiras respostas às três perguntas foram criadas pelas várias religiões que pontuam nossa história. As respostas têm a dupla função de nos trazer a paz de espírito, para que possamos aceitar nossas limitações perante o acaso, ou aquilo que não podemos controlar -uma morte súbita, uma tempestade cataclísmica -, e nos permitir funcionar moralmente em uma sociedade em que todos dividem ao menos parte de uma história: seu início.

As narrativas das várias religiões para as três perguntas criam uma cultura em comum, que funciona como um indicador do grupo; outros grupos têm outras histórias, outras culturas, outras origens. Infelizmente, essas disparidades em geral geram intolerância e desrespeito. Muitas das guerras religiosas que tingem de sangue a história da humanidade foram disputas de origens, de uma origem mais "nobre" (para os membros daquela cultura, claro) ou de um "direito" divino sobre a hegemonia de uma história. Em geral, os deuses não aparecem nas batalhas para defender seus defensores, se bem que, às vezes, eles "mandam" sinais cósmicos: eclipses, arco-íris, cometas etc.

No século 17, a ciência entra e começa a se perguntar as mesmas questões "sacras". Qual a origem do Universo? Será que podemos, pela razão, compreender a origem de "tudo"? E a origem da vida? Será que ela foi um acaso bioquímico, um acidente local em um insignificante planeta orbitando uma estrela em uma galáxia comum, ou será que a vida tem um "plano", se estendendo pelo Universo afora com o objetivo de povoá-lo como um vírus povoa o corpo de um doente? Ou será que ela existe, mas sem plano nenhum? E a mente? Como é possível que processos bioeletroquímicos no cérebro possam gerar nossa consciência, nosso senso de saber que existimos? Ou será que a mente é algo diferente, que necessita de uma ciência que não podemos ainda nem contemplar? Como dizia o grande escritor de ficção científica Arthur C. Clarke, a tecnologia do futuro longínquo aparecerá sempre como mágica no presente. Exemplo: Galileu "surfando" na Internet, imagine que absurdo para uma mente do século 17 (mas talvez não para Galileu).

Passados quase 400 anos desde que Galileu apontou um telescópio para a Lua, as três questões estão completamente integradas dentro da pesquisa científica. Respostas ainda não temos, alguns acham que jamais as teremos. Mas tentar sem dúvida devemos, e dessas tentativas descobertas maravilhosas têm sido feitas sobre o Universo, sobre a base biológica da vida e sobre a estrutura neurológica do cérebro. O Universo está em expansão, bilhões de galáxias com bilhões de estrelas cada, muitas cercadas de pequenos mundos como o nosso; a multiplicidade biológica da vida tem uma base genética comum, que está sendo mapeada em detalhe, abrindo possibilidades fantásticas e aterrorizantes; as complexas atividades do cérebro são compostas de bandos de neurônios que, individualmente ou em grupo, trabalham para construir nosso senso de realidade. Tudo isso, e o que nem podemos ainda imaginar, devido às perguntas que fazemos.

domingo, 5 de março de 2000

Rumo a Marte, mas devagar!

O planeta vermelho! Quantos filmes e livros de ficção cientifica já foram escritos, especulando sobre as estranhas formas de vida que habitam Marte. Infelizmente, até agora as sondas que lá pousaram trouxeram apenas notícias um tanto desanimadoras; Marte é aparentemente um vasto e frígido deserto, cheio de rochas e poeira avermelhadas.

Alguns canais foram encontrados, talvez leitos ressecados de antigos rios que cruzavam sua superfície há milhões de anos. É possível que Marte tenha tido água em abundância. E onde tem água, possivelmente tem vida, o que significa que formas de vida podem ter existido em Marte no passado. Ou quem sabe ainda existem e foram responsáveis pelo misterioso desaparecimento da sonda enviada pela Nasa recentemente? (Caro leitor, só para evitar alguma confusão, estou apenas brincando!)

O jeito é irmos até lá diretamente. Missões tripuladas a Marte fazem parte de uma espécie de desejo coletivo da humanidade; nós somos exploradores por natureza, e o próximo grande passo a ser dado é chegar a Marte.

O problema é que a visão romântica de uma viagem interplanetária se esvanece em segundos quando encaramos as enormes dificuldades técnicas de uma tal missão. A Nasa está planejando uma missão tripulada a Marte para o ano 2020. E, por incrível que pareça, os maiores desafios não são o desenho de naves e combustíveis, mas nossa biologia. Como que seres humanos irão suportar uma missão a Marte com duração de três anos (incluindo seis meses de ida e seis de volta) em um ambiente sem gravidade, alta exposição a radiação cósmica e sérias privações psicológicas?
Nossos corpos e sua fisiologia evoluíram em um ambiente extremamente controlado, com poucas variações de temperatura, gravidade constante e baixos níveis de radiação.
O movimento dos fluidos em nossos corpos e a densidade dos ossos dependem dessa constância. Em um ambiente sem gravidade, como o que ocorre em viagens espaciais, nossa fisiologia entra em pane total.

Astronautas sofrem sérios problemas de adaptação, incluindo vários dias com náusea (o vômito flutua na cabine, o que torna sua "captação" extremamente desagradável...), desidratação e tonteiras. Quando astronautas retornam de suas missões, eles mal conseguem distinguir os pés da cabeça. Repare que a Nasa sempre cobre as passarelas de desembarque, para que o público não veja o estado indigno de seus heróis. Períodos de quarentena têm a dupla função de isolar uma possível contaminação de "germes espaciais" e restituir a fisiologia dos tripulantes ao normal.

Veja o que acontece com o sistema circulatório: normalmente, o sangue se acumula na parte inferior de seu corpo, atraído pela gravidade. Em gravidade próxima de zero, esse sangue sobe como um vulcão; você pensa que sua cabeça irá explodir com a pressão, enquanto seu coração bate mais rápido, tentando expelir o excesso de sangue. Seu corpo calcula que existe um excesso de fluido, e você elimina mais de um litro de água a cada dois dias. A desidratação aumenta a densidade do seu sangue e, em resposta, o corpo diminui a produção de células vermelhas. Conclusão: você termina anêmico e desidratado, se não sofrer um ataque cardíaco ou um derrame antes. E isso em missões de curta duração.

Imagine passar seis meses no espaço sob essas condições e então chegar em um planeta cuja gravidade é metade da terrestre e onde não há uma equipe médica à espera. E isso sem falar nos raios cósmicos, que aumentam a incidência de câncer, o envenenamento por ferro e as mutações em bactérias que existem em nossos corpos. Sabe-se lá que novas doenças serão criadas no espaço!

Ciente desses problemas, a Nasa está buscando soluções, incluindo ambientes com gravidade simulada a bordo, espaçonaves giratórias como uma centrífuga, proteções contra radiação cósmica e técnicas cirúrgicas na ausência de gravidade: o sangue se transforma em aerossol, se espalhando pela cabine, enquanto os instrumentos não têm peso na mão do cirurgião.
Esses desafios devem ser vencidos por qualquer forma de vida que queira viajar no espaço. Quem sabe os homenzinhos verdes de Marte não podem nos passar umas dicas?