domingo, 28 de dezembro de 1997

O cérebro humano e o mistério da consciência

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O cérebro e o seu funcionamento representam um dos grandes desafios para a ciência moderna. É irrelevante, para compreender por que alguém chora ao ouvir um poema ou ao dizer adeus a uma pessoa amada, descrever o cérebro como um conjunto de bilhões de neurônios que se comunicam por impulsos elétricos.

Até mesmo a compreensão do funcionamento de um único neurônio apresenta dificuldades. Neurônios aparentemente podem tomar "decisões" individualmente, resolvendo quando transmitir ou não um determinado impulso. Representações simplistas de um neurônio como um ente inerte que apenas dá passagem a sinais elétricos levam a modelos do cérebro que estão longe de corresponder ao seu funcionamento real.

Passando dos neurônios para as funções superiores do cérebro, cria-se uma série de problemas extremamente complexos. Como definir a mente? Como temos consciência de nós mesmos? Como definir o que é a consciência? Qual a relação entre a mente e a consciência?
O neurologista português Antonio R. damásio, que trabalha há muitos anos nos Estados Unidos, acredita que "consciência" é um fenômeno biológico que nos permite explorar o conteúdo da mente, dos sentimentos, dos pensamentos e do conhecimento.

Note o uso do termo "biológico" na definição de consciência. Para damásio e muitos outros (em geral a maioria dos cientistas que trabalham nessa área), a consciência é um estado emergente do cérebro, explicável cientificamente. Não é necessário inventar uma faísca divina, uma alma ou outra explicação sobrenatural para preencher nossa ignorância de como funciona o cérebro. Apesar disso, cientistas admitem que é necessário descobrir novos aspectos da atividade cerebral, talvez um novo paradigma científico.

Em 1937, o grande neurobiólogo Charles Sherrington usou a seguinte metáfora para descrever o funcionamento do cérebro: "De repente, a parte superior da grande massa cinzenta, que há momentos jazia perfeitamente inerte, começa a ser iluminada por pequenos pontos de luz que produzem pulsos viajando em todas as direções. O cérebro está acordando e, com ele, a mente desperta mais uma vez. É como se a Via Láctea entrasse em uma dança cósmica. Rapidamente, a massa cinzenta se transforma em uma roça de fiar mágica, milhões de pontos de luz acendendo e apagando de forma precisa e harmônica, gerando padrões e subpadrões plenos de significados que se renovam constantemente." (C.S. Sherrington, "Man on His Nature", Cambridge University Press, Cambridge, 1951. Tradução minha.)

Essa visão dinâmica do cérebro permanece até hoje. Técnicas modernas de observação, como a ressonância nuclear magnética e a tomografia por emissão de pósitrons, permitem que os pesquisadores possam "observar" o cérebro em ação. O aspecto mais imediato que é revelado nessas observações é a imensa complexidade do funcionamento cerebral, até mesmo em tarefas que aparentemente são tão simples.

Por exemplo, pense em alguma pessoa querida que esteja longe. Você consegue recriar a imagem e a voz dessa pessoa, acionando neurônios responsáveis pela visão e pela audição. Você pode também recriar a presença dessa pessoa em algum lugar especial, como uma casa de campo durante alguma ocasião especial, como uma noite de Ano Novo. Surgindo em sua mente, essa memória faz você ficar consciente de quanto você tem saudade dessa pessoa, trazendo lágrimas aos seus olhos. Você sussurra, em uma linguagem silenciosa, interna a sua mente: "Feliz Ano Novo!", estabelecendo um canal de comunicação entre você e seu passado, um tempo que só existe em sua consciência.

domingo, 21 de dezembro de 1997

O mundo que poderemos deixar para nossos filhos

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Outro dia, almocei com um colega astrônomo italiano, que tinha participado em Genebra, na Suíça, de um painel mundial de cientistas que estudam os possíveis efeitos de mudanças globais e locais no clima devido à interferência humana. Em meia hora de conversa, meu colega me deixou completamente arrasado. Como é quase Natal, acho que devemos refletir sobre o nosso presente para as gerações futuras.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) foi estabelecido em 1988 pela Organização Meteorológica Mundial e pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente com os objetivos de avaliar cientificamente os processos responsáveis por mudanças climáticas e seus impactos socioeconômico e ambiental e de formular estratégias de ação. Vários brasileiros estão envolvidos nesse Painel, incluindo L. G. Meira Filho, J. Goldenberg, P. Nastari, P. Moura Costa e outros, trabalhando com centenas de cientistas da Argentina ao Zimbábue.

As conclusões das análises científicas são baseadas em modelos climáticos sofisticados, que utilizam computadores dos mais poderosos do mundo. Abaixo cito algumas das conclusões do segundo estudo do painel, apresentadas em 1995.

Existem dois agentes principais de mudanças climáticas. O primeiro resulta da ação combinada dos gases que produzem o efeito estufa, ou seja, que impedem que a radiação de calor vá para as camadas superiores da atmosfera, provocando um aquecimento global do planeta. O painel concluiu que as concentrações desses gases aumentaram substancialmente durante a era industrial (de 1800 em diante). Por exemplo, o metano aumentou em 145%, enquanto o dióxido de carbono aumentou em 30% e o óxido nitroso, em 15%.

O aumento da concentração desses gases levou a uma elevação de 0,3°C a 0,6°C na temperatura média do planeta desde o final do século passado, com ênfase nos últimos anos, que foram os mais quentes desde 1860. O nível global do mar subiu entre 10 cm e 25 cm nos últimos cem anos.

O segundo agente das mudanças climáticas são os aerossóis, partículas microscópicas em suspensão no ar, geradas principalmente na queima de combustíveis fósseis e de biomassa. Aerossóis causam o efeito inverso ao dos gases do efeito estufa, produzindo um resfriamento que, na maioria das vezes, é local e de duração curta em comparação com o aquecimento causado por gases-estufa.

As extrapolações para o futuro levaram em conta grande parte das possíveis incógnitas que aparecem nesses difíceis estudos. Mesmo assim, as conclusões são terríveis. Até o ano 2100, a temperatura global média subirá entre 1°C e 3,5°C, com um aumento associado no nível do mar entre 15 cm e 95 cm. Localmente, as variações climáticas irão exacerbar secas e enchentes, com incêndios de vastas proporções, pestes agrícolas descontroladas, alterações em diversos ecossistemas, que, por sua vez, influenciarão a produção agropecuária e a indústria pesqueira.

Fora prejuízos ao planeta como um todo e às atividades econômicas locais, a poluição atmosférica causará cada vez mais danos à saúde global da população mundial, com um aumento nos tipos de agentes infecciosos, nas doenças do aparelho respiratório e na incidência de câncer. A isso, se deve adicionar o impacto psicológico devido, por exemplo, à emigração de comunidades costeiras, forçada por furacões, maremotos ou pelo aumento aparentemente inofensivo do nível do mar. (O que será do mundo sem Veneza? Ou Trancoso?)

Nessa época em que nos preocupamos tanto com histórias apocalípticas inspiradas pela Bíblia, talvez devêssemos nos preocupar mais com o lento apocalipse que nós próprios estamos causando, com nossa ganância e arrogância, ao mundo que vamos deixar para nossos filhos.

domingo, 14 de dezembro de 1997

Há cem anos, Thomsom descobria o elétron

Em outubro de 1897, o físico inglês J. J. Thomson (1856-1940), no Laboratório Cavendish da Universidade de Cambridge, "descobriu" o elétron, um dos feitos científicos mais importantes dos últimos cem anos.

Thomson estava interessado nos estranhos fenômenos que ocorrem quando descargas elétricas atravessam tubos catódicos, que são ampolas de vidro com duas placas metálicas em seu interior, ligadas aos pólos de uma bateria. A ampola contém gás bastante rarefeito. Os tubos de televisão são versões modernas desses tubos catódicos.

Ao se conectar à bateria, um estranho raio se propaga pelo tubo catódico, produzindo uma mancha fosforescente em sua parede. Thomson mostrou que esses "raios catódicos" eram defletidos por um campo magnético e por um campo elétrico. (O leitor pode fazer uma experiência divertida, passando um imã em frente a uma tela de TV e checando a distorção da imagem.)

Baseado em suas medidas, Thomson mostrou que esses raios eram compostos de "corpúsculos" com carga elétrica negativa e com massa pelo menos 1.000 vezes menor do que um átomo de hidrogênio, o objeto mais leve conhecido na época. (Ele não usou o nome elétron, inventado em 1891 pelo físico irlandês G. Johnstone Stoney.)

Seus resultados eram independentes do tipo de gás usado no tubo catódico. Corajosamente, Thomson concluiu que esses corpúsculos eram constituintes dos átomos de todas as substâncias. O elétron foi descoberto!

A descoberta do elétron foi também a descoberta da primeira partícula elementar. Por elementar, denotamos objetos que não podem ser subdivididos em outros ainda menores.
Segundo essa definição, o átomo não é uma partícula elementar, já que é composto por prótons, nêutrons e elétrons. Nem mesmo os prótons e nêutrons são elementares; eles são compostos por quarks.

Com sua descoberta, Thomson deu continuidade a uma tradição antiga, herdada dos filósofos pré-socráticos da Grécia Antiga, a busca pelos constituintes fundamentais da matéria.
O elétron criou sérias dores de cabeça para os físicos do início do século 20. Em 1924, o físico francês Louis de Broglie propôs que, tal como Einstein havia sugerido para o fóton (partículas de radiação eletromagnética) em 1905, elétrons também exibem a chamada dualidade onda-partícula, isto é, exibem propriedades físicas de ondas, como a difração, e também propriedades de partículas. Tudo depende do preparo do experimento.

Essa dualidade de comportamento sugere que na realidade o elétron não é partícula nem onda. Mas nós apenas sabemos representá-lo através dessas duas imagens concretas. E já que o elétron exibe esta ou aquela propriedade, de acordo com os detalhes do experimento, o próprio observador tem um papel na definição da realidade física do elétron. Não podemos dizer que um determinado elétron existe antes de ele ser observado.

A tecnologia depende de modo fundamental das propriedades do elétron. Correntes elétricas são elétrons em movimento.

Imagens em tubos de televisão são formadas quando elétrons se chocam contra o interior da tela, pintado de material fosforescente. Transistores, usados em quase todos aparelhos eletrodomésticos e computadores, dependem da mobilidade de elétrons em diversos tipos de materiais, como silício e germânio.

Inúmeras aplicações tecnológicas futuras sendo estudadas hoje são baseadas nas propriedades do elétron, como por exemplo supercondutividade a altas temperaturas, chips ultravelozes, ou "computadores quânticos", que usam moléculas para efetuar cálculos.
Sem dúvida, esse é o século do elétron. E pelo jeito, o elétron continuará a nos surpreender ainda por muitos outros séculos.

domingo, 7 de dezembro de 1997

Os problemas sobre o cálculo da idade do Universo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Em 1929, o astrônomo americano Edwin Hubble concluiu, a partir de suas observações, que o Universo está em expansão, com as galáxias se afastando umas das outras com velocidades proporcionais a suas distâncias. Hubble raciocinou que, como as galáxias estão se afastando cada vez mais agora, em algum instante no passado elas estavam praticamente se superpondo. Medindo as velocidades de várias galáxias e as distâncias entre elas, ele concluiu que esse instante ocorreu há cerca de 2 bilhões de anos.

O problema com essa estimativa é que já se sabia que a Terra tinha mais de 2 bilhões de anos. Como ela pode ser mais velha que o Universo? A questão roubou o sono de vários cosmólogos até 1952, quando Walter Baade demonstrou, com medidas mais precisas, que o Universo teria pelo menos 5 bilhões de anos. A idade da Terra hoje é estimada em torno de 4,5 bilhões de anos.
Mas a questão da idade do Universo está longe de ser resolvida. Existem três métodos usados para se estimar a idade do Universo. O primeiro deles é o usado por Hubble e Baade, que estima distâncias entre galáxias remotas e suas velocidades, extraindo delas a idade do Universo.

Em Astronomia, distâncias são estimadas a partir de uma lei que diz que a luminosidade de uma fonte cai com o quadrado da distância. Se temos duas fontes iguais em lugares distintos, sabendo-se a distância até o lugar mais próximo, podemos estimar a distância até o lugar mais distante. Assim, Hubble estimou a distância até a galáxia Andrômeda, que está a aproximadamente 2 milhões de anos-luz do Sol.

Esses "indicadores de distância" são fundamentais para se obter medidas precisas de distância. Em suas observações, Hubble usou um tipo de estrela conhecida como variável Cefeida, cuja luminosidade varia periodicamente. Mas encontrar variáveis Cefeida ou outros indicadores de distância em galáxias muito distantes não é nada fácil. E aí é que começa o problema dos astrônomos modernos. Diferentes indicadores de distância resultam em estimativas diferentes de distância e, portanto, em estimativas diferentes da idade do Universo. Valores atuais variam entre 8 e 25 bilhões de anos!

O segundo método utilizado para se estimar a idade do Universo vem do estudo de aglomerados estelares, conjuntos de milhares de estrelas atraídas entre si pela gravidade. A idéia é que nesses aglomerados podem ser encontradas algumas das estrelas mais velhas que existem. Como nós conhecemos razoavelmente bem como uma estrela se desenvolve queimando seu hidrogênio como combustível, podemos estimar sua idade a partir dos diferentes estágios durante sua evolução. A idade do Universo tem de ser maior do que a idade de suas estrelas mais velhas, ecoando o problema de Hubble com a idade da Terra.

Estimativas da idade desses aglomerados estelares variam entre 10 e 14 bilhões de anos. Finalmente, pode-se usar a "nucleocosmocronologia", que se baseia em medidas da abundância e da produção de isótopos radioativos e em estudos da evolução química de nossa galáxia para se estimar a época de formação dos elementos químicos encontrados no sistema solar. As estimativas indicam uma idade para a Via Láctea de pelo menos 9,6 bilhões de anos, com erros que tendem a aumentar esse valor em mais de 1 bilhão ou 2 bilhões de anos.

O que podemos concluir agora? Que o Universo tem de 10 a 20 bilhões de anos; que problemas com as várias medidas de distância, evolução estelar e abundância isotópica serão, em princípio, resolvidos na próxima década. Que boatos jornalísticos recentes dizendo que o modelo do Big Bang está errado devido a problemas com a idade do Universo não têm sentido. E que a Ciência está longe de progredir em linha reta ou de forma previsível.