domingo, 18 de dezembro de 2005

Criaturas improváveis

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Não há dúvida de que a vida é extremamente criativa. Na última década, organismos foram descobertos nos lugares mais inóspitos, enterrados sob centenas de metros de gelo na Antártida (bactérias) ou ao redor de fendas submarinas que jorram água e vapor superaquecidos a temperaturas acima de 120C, sem luz e com pouco oxigênio. Essas formas de vida adaptadas à situações extremas são chamadas de "extremófilas".


Como dizia Carl Sagan, ausência de evidência não é evidência de ausência


Sua existência é importante por várias razões, desde estudos sobre a origem da vida na Terra que, durante sua infância, era bem diferente do que é hoje, até investigações sobre a possibilidade de vida extraterrestre, em ambientes que terão condições muito diversas das que achamos aqui.

A descoberta dessas formas de vida tem inspirado um outro grupo de pessoas em sua busca por criaturas improváveis. São os caçadores de "monstros" míticos, criaturas que vivem em lendas e na imaginação, alimentando fantasias sobre habitantes de nosso planeta, talvez descendentes de animais já extintos, que ainda se ocultam em cantos pouco explorados da Terra. Será que o monstro do lago Ness ou o Abominável Homem das Neves têm alguma chance de ser reais?

Confesso que, quando garoto, tinha uma atração enorme por essas criaturas. Lembro-me de colecionar "fotos" do monstro do lago Ness, que imaginava ser um plesiossauro esquecido pela evolução, um sobrevivente milagroso do Mesozóico. Afinal, de onde vem todo esse folclore sobre dragões, criaturas dos ares e dos mares? Por que essas lendas existem em todos os cantos do mundo? Será que não poderiam ter existido no passado? Meu filho de 12 anos está convencido de que sim. (Bem, estava mais convencido quando tinha 11.) Uma possível explicação para as lendas é que fósseis dessas criaturas foram encontrados em várias localidades. Como isso se deu muito antes de a teoria da evolução e a noção de extinção das espécies terem sido propostas, o raciocínio deve ter sido que, se existem os ossos, existem as criaturas.

Os crédulos existem até hoje e em números surpreendentes. Recentemente, no Estado americano do Texas, houve uma conferência dedicada exclusivamente ao Abominável Homem das Neves, que nem é só das neves, chamado mais geralmente de "Pé Grande" (em inglês, "Big Foot"). Em torno de 400 pessoas participaram, examinando possíveis pistas, em geral moldes de pegadas supostamente deixadas pela criatura, fotos e depoimentos.
Alguns dizem que o Pé Grande é um descendente perdido do macaco gigante Gigantopithecus, um monstro pré-histórico de 3 metros de altura, (primo do King Kong, obviamente). Os "filhos" da criatura agora habitariam florestas e pântanos americanos. Existe até um Centro Texano de Pesquisas sobre o Pé Grande, fundado em 1999 por um empresário que jura ter visto uma criatura enorme vagando por uma estrada remota do Estado da Louisiana.
Alguns cientistas, como o professor de anatomia e antropologia Jeff Meldrum, da Universidade Estadual de Idaho, levam a coisa a sério. Ele já examinou mais de 150 moldes de pegadas, afirmando que a questão é científica: se as criaturas existem, poderão ser encontradas. Eu me pergunto se, em caso negativo, a questão seria mesmo posta de lado. Afinal, sempre existirão aqueles que acreditam que elas possam estar por aí, só que sabem se esconder muito bem do homem. Como dizia Carl Sagan, ausência de evidência não é evidência de ausência.

domingo, 11 de dezembro de 2005

Berços de estrelas

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Talvez alguns leitores lembrem-se ainda de uma imagem histórica produzida pelo Telescópio Espacial Hubble no início de 2002 mostrando as "Colunas da Criação", uma região perto da Nebulosa da Águia onde estrelas estavam "nascendo": gigantescas colunas de gases incandescentes pareciam ascender como cogumelos em explosões atômicas, marcando a incrível violência e beleza do fenômeno. A região, fotografada opticamente (dentro do espectro da luz visível) pelo Hubble, tinha uma extensão aproximada de 1,5 ano-luz, a distância percorrida pela luz em um ano e meio, cerca de 15 trilhões de quilômetros. Como comparação, a distância do Sol a Plutão é 250 vezes menor.


O mecanismo de nascimento de estrelas ilustra a complementa-ridade entre criação e destruição que observamos na natureza


Carl Sagan escreveu que temos a sorte de ser a geração que está explorando os planetas pela primeira vez, estudando sua estrutura, seus detalhes, enviando sondas robotizadas. Os que hoje têm em torno de 40 anos ou mais tiveram de mudar sua concepção completamente: planetas passaram de simples esferas distantes com alguns detalhes interessantes (a cor alaranjada de Marte, o "olho" de Júpiter, os anéis de Saturno) a mundos completos, com montanhas, vulcões, vales, crateras, atmosferas variadas, talvez até, no caso da lua de Júpiter, Europa, oceanos subterrâneos. Descobrimos até outros mundos, planetas girando em torno de outras estrelas a muitos anos-luz daqui.

Ao que disse Sagan, podemos adicionar que temos, também, a sorte de ser os primeiros a ver estrelas nascerem, de acompanhar o processo complementar de criação e destruição que marca a evolução cósmica.

No dia 9 de novembro, outra missão da Nasa, o Telescópio Espacial Spitzer, revelou uma imagem ainda mais espetacular do que a do Hubble: outro berçário de estrelas, agora na constelação de Cassiopéia, a 7.000 anos-luz da Terra, com uma extensão de 15 anos-luz, ou seja, 10 vezes maior do que a imagem revelada pelo Hubble em 2002. Literalmente centenas de proto-estrelas, estrelas-bebê, podem ser vistas por trás de uma nuvem de gás e poeira avermelhada. A grande vantagem do Spitzer sobre o Hubble é que ele é um telescópio infravermelho, ou seja, capaz de detectar radiação infravermelha que atravessa a poeira existente nas regiões de formação de estrelas. É como se estivéssemos num campo coberto de flores belíssimas que, devido à uma neblina espessa, permanecessem invisíveis aos nossos olhos. "Ver" no infravermelho significa poder ver através da neblina, ver as flores cobrindo o chão.

O mecanismo de nascimento de estrelas ilustra a complementaridade entre criação e destruição que observamos na natureza: o berçário de estrelas foi ativado por uma estrela com massa dezenas de vezes maior do que o Sol, que explodiu ao fim de sua curta existência. A explosão ejetou quantidades gigantescas de material e gás, gerando uma onda de choque que viajou pelo espaço interestelar até atingir uma nuvem de gás e poeira que até então estava em equilíbrio relativamente estável. Essa nuvem, despertada de seu equilíbrio pela onda de matéria e radiação proveniente da estrela defunta, sofreu variações em sua densidade: regiões com maior densidade começaram a colapsar devido à sua própria gravidade, o gás em seu interior aquecendo com o aumento de pressão, até que sua temperatura chegou a 15 milhões de graus Celsius. Quando isso ocorreu, hidrogênio começou a fundir-se em hélio, e uma ninhada de estrelas nasceu, iluminando o espaço à sua volta, trazendo consigo a memória de sua progenitora.

domingo, 4 de dezembro de 2005

A ciência (ou não) dos milagres

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Uma das contraposições mais fundamentais entre ciência e religião pode ser resumida, talvez grosseiramente, da seguinte forma: em ciência, deve-se ver para crer, ou seja, somente após prova concreta, confirmada por grupos diversos de cientistas, pode-se afirmar que um fenômeno é real. Já em religião, ao menos na sua versão mais comum, é o oposto: deve-se crer para ver, ou seja, a fé faz com que o improvável, talvez mesmo o obscuro, seja aceitável, talvez até real. Querer acreditar torna possíveis coisas implausíveis. A igreja tem ciência disso, e leva declarações de milagres muito a sério. As autoridades eclesiásticas sabem que a empolgação da fé, a emoção do momento, pode iludir as pessoas. Na Itália, onde milagres parecem ocorrer várias vezes ao ano, um grupo de cientistas resolveu investigá-los, tentando separar o que é embuste do que aparenta ser realmente misterioso, ao menos à luz da ciência atual.


As autoridades eclesiásticas sabem que a empolgação da fé, a emoção do momento, pode iludir as pessoas


A Igreja Católica também tem o seu comitê investigativo, a Congregação do Vaticano sobre as Causas dos Santos, dedicada aos candidatos à santidade. A situação é delicada. Por um lado, ela não pode ofender a crença de seus membros: alguns milagres persistem desde tempos medievais. Por outro, a igreja tem que se proteger contra impostores. Se todas as relíquias que se espalharam pela Europa durante a Idade Média fossem reais, por exemplo, ossos de santos e papas, restos do sangue de Cristo ou de sua cruz, esses santos e papas teriam esqueletos de gigantes, e Cristo, rios de sangue e uma cruz do tamanho de um arranha-céu. A Congregação muitas vezes utiliza a opinião de médicos e cientistas em seu processo de certificação de milagres, uma posição muito louvável. Conforme afirmou um de seus membros, Peter Gumpel, "não pedimos que médicos declarem um milagre, apenas se existe alguma explicação cientificamente plausível para, por exemplo, uma cura. Muitas vezes, o que pode parecer um milagre hoje, poderá não sê-lo em cem anos, dado o avanço da ciência".

Um exemplo interessante é o do sangue de são Januário, um bispo que foi decapitado em 305 por um imperador romano. O milagre de são Januário vem sendo celebrado em Nápoles desde o século 14. O arcebispo exibe um frasco supostamente com o sangue do santo. Se o sangue estiver liquefeito, a população pode estar certa de que o futuro será benigno, um alívio para quem vive sob o monte Vesúvio, o vulcão que destruiu Pompéia. Caso o sangue permaneça sólido, o futuro não é nada promissor. Multidões assistem ao ritual em um estado de absoluto desespero. A Congregação do Vaticano evita interferir nesse tipo de situação.

Mas não a Comissão Italiana de Investigação de Fenômenos Paranormais, que tem dois Prêmios Nobel entre seus membros. Novamente, a intenção não é atacar a fé, mas desmascarar aqueles que se aproveitam dela para benefício próprio. O químico Luigi Garlaschelli, da Universidade de Pavia, investigou o milagre de são Januário. Estudos da substância no frasco não conseguiram demonstrar conclusivamente que ele contém sangue, embora acusasse traços de hemoglobina. Garlaschelli pesquisou que materiais seriam disponíveis em Nápoles no século 14 e preparou uma mistura que pode duplicar o milagre. Seu preparado, consistindo de pedra calcária, ferro e certos pigmentos, é sólido quando não sacudido e líquido quando sacudido, mais ou menos como ketchup. Há coisas que a ciência não explica. Mas por que não usá-la para as que explica, reservando o mistério para aquilo que realmente é misterioso?

domingo, 27 de novembro de 2005

Tempestades celestes

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Ninguém vê chuva cair para cima. O mesmo não pode ser dito de raios e outros fenômenos eletromagnéticos que acompanham tempestades. No início dos anos 1990, cientistas na Europa e nos EUA observaram manifestações elétricas ocorrendo na atmosfera superior parecidas de certa forma com raios que sobem pelos céus.


Para que 2100 não seja um pesadelo, outra revolução é necessária, além da tecnológica: moral, e não material


Porém, os fenômenos são ainda mais espetaculares do que raios comuns: têm a forma de medusas gigantescas, de cabeça para baixo, surgindo a altitudes em torno de 40 quilômetros, com tentáculos se estendendo por até 40 quilômetros, cortando a ionosfera, a parte superior da atmosfera cheia de partículas eletricamente carregadas. Alguns pilotos em vôos a grandes altitudes viram o fenômeno, mas foram desencorajados a mencionar luzes e aparições estranhas nos céus.

Após anos de estudo, cientistas chegaram a uma explicação do fenômeno, baseada na distribuição de cargas nas nuvens e na ionosfera. Primeiro, é importante lembrar que cargas elétricas opostas se atraem, enquanto cargas iguais se repelem. Quando uma placa metálica recebe uma carga elétrica, dizemos que fica eletrizada. Se temos duas placas elétricas paralelas com cargas opostas, vai haver um campo elétrico entre as placas que pode acelerar cargas entre elas. A coisa é mais simples do que parece.

Eis uma analogia com a gravidade: quando elevamos um objeto até uma certa altura, sabemos que, se o soltarmos, ele irá ao chão: o campo gravitacional terrestre acelera o objeto em sua direção. No caso das placas paralelas, digamos que a de baixo é negativa e a de cima positiva. Uma carga positiva, perto da placa superior, vai querer descer na direção da placa negativa. Já uma carga negativa perto da placa inferior, vai querer subir na direção da placa superior.

O que isso tem a ver com as tempestades e as medusas elétricas? Uma nuvem parece um pouco com as duas placas paralelas que discuti acima: cargas de sinal oposto acumulam-se na sua base e no seu topo. Um raio é uma descarga do excesso de cargas em uma parte da nuvem.

Vamos supor que um raio retire um bando de cargas positivas do topo da nuvem. Nesse caso, o topo da nuvem fica com um déficit de cargas positivas, o que é o mesmo que um excesso de cargas negativas. Nuvens estão aproximadamente a alturas de 15 quilômetros. A ionosfera começa a altitudes maiores, em torno de 40-50 quilômetros. Como a ionosfera também tem cargas elétricas, o que ocorre é que a nuvem e a ionosfera formam duas placas elétricas aproximadamente paralelas, a nuvem negativa e a ionosfera positiva. (Podia ser o oposto.) Quando o raio descarrega a nuvem, ele causa um desequilíbrio que força cargas a escaparem da nuvem em direção à ionosfera, criando as gigantescas medusas elétricas.

Recentemente, um outro fenômeno associado a tempestades foi observado: relâmpagos parecem emitir raios gama, a radiação eletromagnética mais energética que existe, típica de fenômenos nucleares. Os chamados flashes de raios gama terrestres têm a duração de milésimos de segundo e tendem a ser mais comuns nas regiões entre os trópicos. Entre 1994 e 2005, o satélite-observatório de raios gama Compton observou 75 eventos. Em 2002, um novo satélite foi lançado para medir os raios gama (e monitorar explosões nucleares na atmosfera) e observou centenas deles, sempre acompanhando raios. Tempestades não afetam apenas o que existe abaixo das nuvens.

quarta-feira, 23 de novembro de 2005

Monstros do passado

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Olhar para o céu é olhar para o passado. Quanto mais distante o objeto celeste, mais para trás no tempo olhamos: a luz tem uma velocidade finita, demorando um certo tempo viajando do objeto que a gerou até nossos olhos. O Sol está a aproximadamente oito minutos-luz da Terra.

Portanto, a luz do Sol que bate em nossos olhos passou oito minutos viajando a 300 mil quilômetros por segundo para chegar aqui. O Sol que vemos não é o Sol de agora, mas o de oito minutos antes. A estrela mais próxima, a Próxima Centauri, fica a 4,3 anos-luz da Terra, 300 mil vezes mais distante do que o Sol. A luz que chega até nós passou 4,3 anos viajando. O cosmos é essencialmente vazio, algo que é sempre bom lembrar. Ainda bem; caso contrário, seríamos todos literalmente assados pela radiação de estrelas vizinhas. A vida seria impossível.


Se os dados contrariam a teoria, ela deve ser revisada, por mais bela que seja


Quando olhamos para o céu, vemos as estrelas próximas o suficiente para detectarmos sua luz com nossos olhos. Se nos limitássemos a essa visão do cosmos, seríamos bastante míopes. Com telescópios, instrumentos que coletam a luz muito mais eficientemente do que nossos olhos, podemos ver objetos muito mais distantes. A galáxia mais próxima, Andrômeda, está a aproximadamente 2 milhões de anos-luz daqui. Quando olhamos para ela com um telescópio, vemos como era há 2 milhões de anos, quando o gênero Homo dava seus primeiros passos na África. O astrônomo extragaláctico é um viajante no tempo, procurando por objetos cada vez mais longínquos, tentando reconstruir o passado do Universo.

Hoje, sabemos que o Universo teve um passado. Sabemos que existe há 13,8 bilhões de anos. Esse fato, junto com o fato de a luz ter uma velocidade finita, significa que temos um horizonte, uma fronteira além da qual não podemos enxergar. Dada a idade do Universo, nosso horizonte fica a 13,8 bilhões de anos-luz. O que existe além desse horizonte? Não sabemos. Mas suspeitamos que apenas mais Universo, mais galáxias e estrelas. Feito numa ilha: sabemos que além do horizonte o mar continua.

Com telescópios ultrapotentes como o Telescópio Espacial Hubble, astrônomos são capazes de ver os primeiros objetos que se formaram no início da história cósmica. Começando com a nossa casa: a Via Láctea é uma galáxia grande, com 100 mil anos-luz de diâmetro e em torno de 300 bilhões de estrelas. Sua idade, a julgar por suas estrelas mais velhas, é calculada em 10 bilhões de anos. Ou seja, nossa galáxia se formou quando o Universo tinha uns 3,8 bilhões de anos.

Uma das questões mais importantes da astronomia é como e quando as galáxias se formaram. Até recentemente, o mecanismo que explica a formação de galáxias seguia o esperado: pequenas flutuações na distribuição de matéria (principalmente hidrogênio) condensavam-se e cresciam devido à própria gravidade, agregando mais matéria no processo. Adicionando-se rotação, as partes mais densas formaram as primeiras estrelas, que, brilhando intensamente, causaram novas instabilidades, que formaram outras. O mecanismo é do menor para o maior: uma galáxia como a nossa demora para evoluir. Observações recentes parecem contradizer isso: galáxias gigantescas, monstros cósmicos maiores do que a Via Láctea, parecem já ter existido em abundância quando o Universo tinha 1 bilhão de anos. Apesar de ser cedo para concluir que os modelos de formação de galáxias estão errados, fica uma lição de como funciona a ciência: se os dados contrariam a teoria, ela deve ser revisada, por mais bela que seja.

domingo, 20 de novembro de 2005

Viagem no tempo

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Outro dia, durante uma entrevista, fizeram-me a seguinte pergunta: "Marcelo, se você pudesse fazer uma viagem no tempo, para quando escolheria ir?". Imagino que todo mundo já tenha se feito essa pergunta. Afinal, viajar no tempo significa ter poder sobre nosso destino, talvez poder compreender nosso passado, visitar pessoas queridas que já se foram, fazer as perguntas que ficaram por fazer. Eu costumava pensar que, se pudesse viajar no tempo, gostaria de voltar ao passado, conhecer as origens da minha família na Ucrânia, conversar com minha mãe, que morreu quando eu tinha seis anos.


Para que 2100 não seja um pesadelo, outra revoluçã o é necessár ia, além da tecnológ ica: moral, e não material


Dessa vez, porém, minha resposta foi diferente. Se pudesse viajar no tempo, gostaria de ir para o futuro. Mais precisamente, cem anos no futuro, em torno de 2100, quando já estarei morto por algumas décadas. (A menos, claro, que nos próximos 50 anos meus colegas médicos desenvolvam curas e métodos que nos permitam chegar aos 150 anos com lucidez e dignidade.) Por algum motivo, talvez porque tenha de certa forma resolvido alguns de meus problemas com o passado, senti que seria mais relevante ir para a frente, que o passado, bem ou mal, conhecemos um pouco, mas o futuro permanece uma incógnita completa.

Certamente, parte de minha resposta é pessoal; hoje, preocupo-me mais com meus filhos e seu futuro do que com o meu passado. Quero conhecer meus bisnetos, ver que pessoas virão a ser. Contudo, não foi em meus filhos ou bisnetos que pensei quando contemplei minha resposta: foi no nosso destino coletivo, o futuro da humanidade.

Vejo a corrida nuclear se estendendo a nações pobres, controladas por líderes radicais, motivados por preconceitos religiosos, cegos às diferenças de fé, imunes ao conceito de liberdade de escolha. Vejo as nações mais ricas explorando a mão-de-obra barata das nações mais pobres, de modo a manter a qualidade de vida de seus cidadãos sem qualquer preocupação com a dignidade daqueles que exploram. Vejo a escassez dos combustíveis fósseis crescer, os preços aumentarem, exacerbando as desigualdades sociais que hoje dividem o mundo. Vejo o crescimento acelerado das tecnologias criando uma subclasse social, aqueles que não têm acesso aos computadores de ponta, aos produtos que disseminam informação e, conseqüentemente, poder. Vejo a fome aumentando, a poluição causando os desequilíbrios climáticos previstos por modelos de aquecimento global que hoje são desprezados pelos políticos de países como os EUA. Vejo a hipocrisia da liderança política corroendo a confiança da população. Vejo que, moralmente, o homem é um animal primitivo.

Tudo isso vejo agora, com os olhos de quem vive em 2005. Por isso gostaria de viajar até 2100, para que possa me surpreender com a inventividade das pessoas, para provar que essa minha negatividade toda é produto do nosso momento atual, que vai dar tudo certo, que vamos conseguir sobreviver a nós mesmos. Se soubesse disso ficaria em paz, acreditaria que o homem, finalmente, começou a evoluir moralmente. Depositamos esperança demais nas tecnologias, achamos que seremos capazes de resolver todos os problemas através de soluções técnicas. Como cientista, é claro que apoio esse esforço. É graças aos grandes avanços tecnológicos que temos luz elétrica, telefones, antibióticos, vacinas, carros e aviões. Mas para que 2100 não seja o pesadelo que descrevi, outra revolução é necessária, moral, e não material. Acredito que seja possível, mesmo se acusado de ingenuidade. A alternativa é inaceitável.


domingo, 13 de novembro de 2005

Ações à distância

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

O objetivo principal da física é descrever os fenômenos do mundo natural, em particular aqueles que envolvem matéria inanimada. (Ao menos tradicionalmente. Hoje, a interface da física com a biologia é extremamente importante em várias frentes de pesquisa, da origem da vida ao funcionamento das células e do cérebro.) Uma das observações mais óbvias que podemos fazer é que objetos inanimados mudam de posição. Desde os menores, átomos ou partículas subatômicas, até os maiores, planetas, estrelas, galáxias. Não é, portanto, uma coincidência que uma grande parte da física seja dedicada justamente ao estudo do movimento.


Contanto que os fenômenos sejam descritos pelos modelos científicos, não é necessário entender tudo


Aristóteles foi um dos primeiros a tentar responder a essa questão. Postulou que existiam dois tipos de movimento: o movimento natural, que ocorre sem ser conseqüência de uma ação deliberada, e o forçado, que, como diz o nome, requer uma ação. Por exemplo, se soltarmos uma pedra de uma certa altura ela irá ao chão "naturalmente". Por outro lado, para que uma pedra voe para o alto, ela tem de ser atirada. Portanto, segundo Aristóteles, quanto mais pesado o objeto, mais rápido ele vai ao chão. Ele não via esse movimento como uma atração entre a Terra e o objeto, mas como a tendência do objeto (a pedra) a voltar ao seu lugar de origem.

Passaram-se 2.000 anos até que essas idéias fossem questionadas. Na Inglaterra, o médico da rainha Elizabeth 1ª, William Gilbert, demonstrou que a Terra é um ímã, explicando como as bússolas funcionavam: a Terra afeta a agulha da bússola sem tocá-la, isto é, exerce uma ação à distância. Na mesma época, em torno de 1600, Johannes Kepler, na Alemanha, especulou que o Sol exerce uma atração sobre os planetas, que faz com que eles girem à sua volta. Kepler inspirou-se no trabalho de Gilbert, sugerindo que a força fosse magnética. Com isso, uniu a física à astronomia pela primeira vez, tentando explicar os movimentos celestes em termos de ações à distância.

Enquanto isso, na Itália, Galileu Galilei causava alvoroço com seus estudos do movimento e suas observações telescópicas dos céus. Por meio de experimentos, coisa que os gregos não fizeram para comprovar suas hipóteses, Galileu mostrou que Aristóteles estava errado: objetos caem com a mesma aceleração, independentemente de suas massas. Ou seja, dois objetos soltos da mesma altura (segundo a lenda, Galileu fez isso do alto da torre de Pisa), chegam ao chão juntos.

Curiosamente, Galileu não usou o conceito de força para explicar o que via: seu trabalho concentrou-se na descrição matemática do movimento de queda, sem se preocupar com as causas. Com isso, obteve as equações que dizem quanto tempo um objeto demora para cair de uma certa altura ou onde cairá uma bala de canhão disparada com certa velocidade e inclinação.
No final do século 17, Isaac Newton completou o quadro, unindo a esfera terrestre e a celeste.

Ele mostrou que a força que provoca a queda de objetos na Terra é a mesma que faz com que a Lua gire em torno da Terra ou os planetas em torno do Sol, a força da gravidade. Quando questionado sobre o mistério dessa ação à distância, Newton deu de ombros, preferindo não especular. Essa postura é extremamente importante, pois explica como cientistas vêem seus modelos: contanto que os fenômenos sejam descritos, não é necessário entender "tudo". Mesmo que o conceito de ação à distância tenha sido substituído pelo de campo no século 19, também não sabemos o que cria os campos.

domingo, 6 de novembro de 2005

Seqüestros extraterrestres e memórias falsas

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Tente se lembrar de algo que aconteceu durante a sua infância, quando você tinha uns seis ou sete anos de idade. Pode ser uma cena qualquer, mas algo importante em sua vida. Por exemplo, quando eu tinha sete anos, caí na escola durante o recreio e cortei feio o joelho.

Lembro-me do sangue, de chorar muito e de meu pai chegando esbaforido, bravo, porque teve de deixar os pacientes esperando. Quantos desses detalhes são, de fato, reais? Será que somos capazes de realmente recordar coisas que ocorreram há muito tempo? Ou será que muitas de nossas memórias são inventadas ou ao menos parcialmente recriadas?

Essa questão vem sendo estudada com muito cuidado por vários profissionais, de psicólogos a advogados. Isso porque memórias falsas podem criar problemas sérios, por exemplo em denúncias de crimes sexuais domésticos ocorridos no passado. A situação é complicada, pois seria de fato injusto acusar um pai ou tio de ter molestado sexualmente um menor de idade se isso não aconteceu. Por outro lado, se aconteceu, o pai ou tio criminoso tem de ir para a cadeia. Como provar se a memória é real ou fabricada? Ninguém sabe como responder a essa pergunta. Se não existem provas concretas do que ocorreu, infelizmente o criminoso pode escapar impune. Ou um inocente pode ir para a prisão e uma família ser destruída.

É muito mais fácil ver o improvável quando acreditamos nele

Foi esse tipo de questão que motivou uma psicóloga da Universidade Harvard a estudar uma outra situação na qual memórias falsas podem estar presentes, relatos de seqüestro por seres alienígenas. Na verdade, Susan Clancy, que acaba de lançar um livro chamado "Abduzidos: Como Pessoas Passam a Acreditar que Foram Seqüestradas por Alienígenas", usou esses casos para mostrar que memórias falsas não só existem como podem ter tamanha força emocional que aparentam ser verdadeiras.

Clancy entrevistou 50 pessoas que dizem ter sido abduzidas por seres extraterrestres. Algumas até acreditam terem sido vítimas de vários seqüestros. Aparentemente, nos EUA cerca de 1 milhão de pessoas declaram ter sido seqüestradas. Não conheço a estatística no Brasil, mas acredito que não seja muito diferente. Conforme afirmou Clancy, "isso não significa que essas pessoas sejam loucas. Pelo contrário, muitas delas são articuladas e altamente inteligentes. A tendência em acreditar em coisas sobre as quais a ciência não tem provas é muito comum". Imagino que o leitor possa pensar em um ou dois exemplos. Fantasmas? O monstro do lago Ness? No caso dos alienígenas, não existe mesmo nenhuma evidência concreta de que tenham visitado a Terra no passado ou que estejam no momento por aqui, apesar dos inúmeros relatos e de suspeitas de intrigas governamentais.

Clancy atribui os relatos a um estado entre a consciência e o sono, durante o qual alucinações são comuns. Em geral, os pacientes lembram-se do seqüestro quando sob hipnose. O mesmo ocorre com relatos de violência sexual.

A grande diferença é que, sem dúvida, muitos dos relatos de abusos sexuais são reais, enquanto os seqüestros por alienígenas são falsos. Pelo menos até que uma prova concreta surja, um circuito ou uma liga metálica que não exista na Terra, a solução de um grande problema matemático, o seqüestro de um cientista sério que obtenha alguma evidência que não seja apenas um relato oral. É muito mais fácil ver o improvável quando acreditamos nele. Por outro lado, se nossos olhos estiverem sempre fechados, não o veremos nunca.

domingo, 30 de outubro de 2005

Saltos quânticos

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

No início do século 20, estava claro para a maioria dos físicos que o átomo não seria compreendido pelo modelo de minissistema solar, com o núcleo no centro, feito o Sol, e os elétrons girando à sua volta feito planetas. O inglês J. J. Thomson havia mostrado em 1897 que o elétron era muito mais leve que qualquer coisa que existisse no núcleo (ainda não se sabia que eram prótons e nêutrons). Para o átomo mais simples, o de hidrogênio, Thomson mostrou que o elétron era em torno de 2.000 vezes mais leve que o núcleo, e que sua carga elétrica era exatamente oposta, de modo que o átomo fosse neutro. Aliás, ainda não se falava em núcleo atômico. O próprio Thomson, bem britanicamente, sugeriu que o átomo fosse um pudim, com os elétrons espalhados como passas em meio à massa. Foi só em 1911 que Ernest Rutherford mostrou que o núcleo é muito pequeno, e que o elétron circula bem longe dele: se o núcleo tivesse o tamanho de uma cereja, o elétron estaria a um quilômetro de distância. O átomo é essencialmente vazio.


Os elétrons não podem ocupar qualquer lugar do espaço. Suas órbitas são discretas, separadas como os degraus de uma escada


O fato de o átomo ser feito de pequenas partículas eletricamente carregadas apresentava uma séria dificuldade: sabia-se que cargas elétricas aceleradas -e o movimento de um elétron em torno de um núcleo é acelerado, do mesmo modo que numa curva o movimento de um carro é acelerado- irradiam ondas eletromagnéticas, dissipando energia no processo. Sabia-se também que a luz (a onda eletromagnética que nos é visível) que surge de objetos quando aquecidos vem justamente dessas cargas elétricas aceleradas intensamente pelo calor. Vemos isso na cozinha, quando ligamos o fogão elétrico: quanto mais quente, mais intenso o brilho da espiral, que vai do infravermelho (invisível mas quente) ao alaranjado. Ao vermos um objeto aquecido emitir luz, feito uma lâmpada comum, estamos vendo a radiação emitida por cargas subatômicas em movimento. Portanto, desconfiava-se que a luz emitida por objetos aquecidos tinha a ver com as cargas elétricas que compunham seus átomos.

O problema era que, quando as leis do eletromagnetismo eram aplicadas ao átomo, os resultados eram absurdos. Um elétron, atraído pelo núcleo de carga positiva, iria espiralar em sua direção, irradiando ondas eletromagnéticas e perdendo energia até cair nele. Se isso fosse verdade, os átomos seriam instáveis e a matéria não poderia existir. Algo tinha de mudar.

É aí que entra Niels Bohr, um dos grandes físicos da história. Em 1913, Bohr propõe uma idéia revolucionária: elétrons não podem ocupar qualquer lugar do espaço. Suas órbitas são discretas, separadas como os degraus de uma escada. Eles não podem ocupar o espaço entre os degraus.
Com isso, Bohr introduz a idéia de órbitas discretas nos átomos. O mais importante era o chamado nível fundamental, o degrau mais baixo da escada: de lá, o elétron não podia descer mais. Ou seja, por algum motivo, e Bohr não tentou adivinhar que motivo era esse, o elétron estava proibido de cair no núcleo. Ele podia saltar de um nível, ou órbita, a outro, como nós saltamos os degraus de uma escada: para cima precisamos de energia, e o elétron também. Para baixo liberamos energia, e o elétron também. Admirável a coragem intelectual de Bohr.

Postulou um novo comportamento da matéria e, com isso, conseguiu explicar os resultados de uma série de experimentos que, até então, eram um mistério. Ficou claro que o mundo atômico tem suas próprias regras, sua própria física.

domingo, 16 de outubro de 2005

Das gripes e das pandemias

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Em 1918, cerca de 50 milhões de pessoas morreram nos quatro cantos do mundo vítimas da terrível epidemia de gripe espanhola. De fato, o evento é chamado de "pandemia", dado o seu alcance global.

A diferença principal entre uma epidemia e uma pandemia de gripe, fora o número de vítimas, é a natureza do vírus. No caso da epidemia, o vírus já existe e circula entre pessoas, atuando mais agressivamente durante períodos específicos, como no caso do inverno nos EUA, quando milhões de pessoas (inclusive este autor) são vacinadas preventivamente.


Uma nova pandemia está sendo esperada a qualquer momento, devido ao número de casos de aves infectadas na Ásia


Já uma pandemia surge quando um novo vírus emerge, em geral como resultado de mutações genéticas que o permitem não só atacar humanos, mas, também, passar de indivíduo a indivíduo. Foi o caso da Aids, com o HIV vindo de primatas, e da Sars (que não chegou a ser uma pandemia devido ao estrito controle), vindo de aves. Um novo vírus significa um novo inimigo imunológico, sem tratamento desenvolvido, ou, na melhor das hipóteses, com tratamento parcial ou inacessível ao grande número de infectados. A última pandemia, a gripe de Hong Kong, ocorreu em 1968-69 e matou 34 mil pessoas só nos EUA. Uma nova pandemia está sendo esperada a qualquer momento, devido ao número de casos de aves infectadas na Ásia com um novo vírus, o H5N1.

Uma pandemia é um exemplo doloroso da teoria da evolução em ação, demonstrando a transformação do vírus de modo a se adaptar a outro meio onde possa se multiplicar, nossos corpos. Aparentemente, o H5N1 já se espalhou da Ásia para Turquia e Romênia. Vacinas conhecidas não são efetivas.

No mundo moderno, vírus e bactérias viajam quase tão rápido quanto as pessoas. Portanto, quando um vírus se torna capaz de infectar humanos, todo cuidado é pouco. Quarentenas, isolando vizinhanças, bairros ou até mesmo cidades inteiras são um método de controlar o avanço da doença. Mas isso ocorre depois que a doença ataca.

O que me é surpreendente é que vacinas não sejam pesquisadas em grande escala assim que um novo vírus aparece, mas apenas quando uma epidemia já existe. Uma das razões é a pior possível: vacinas rendem menos aos laboratórios médicos do que a produção de medicamentos e, portanto, têm menor prioridade. Fora isso, alguns laboratórios foram processados devido a efeitos colaterais causados pelas suas vacinas e deixaram de produzi-las ou de se interessar em desenvolver outras. Por trás da falta de tratamento preventivo achamos razões econômicas.
Quem viu o filme de Fernando Meirelles, "O Jardineiro Fiel", sabe bem que motivações econômicas ditam o trabalho de muitos laboratórios farmacêuticos. Isso levanta uma questão crítica, o valor da vida humana perdida pela falta de medicamentos. Quem decide isso? Os acionistas da companhia ou os governos, que têm o dever de proteger sua população? A resposta me parece óbvia.

Na ausência de uma vacina preventiva, a gripe tem de ser tratada com remédios. Para a gripe causada pelo H5N1, que já matou mais de 50 pessoas na Ásia, parece que só um remédio é eficaz, Tamiflu, produzido por um único laboratório dos laboratórios Roche na Suíça. Com a ameaça da pandemia, a demanda cresceu enormemente e o laboratório não dá conta. Resultado, não existem doses suficientes. Mais uma vez me surpreendo: se milhões de vidas estão em jogo, não seria ético vender a patente para laboratórios do mundo inteiro? Será que a vida não vem antes dos lucros?


domingo, 9 de outubro de 2005

X ou Y? Mulheres, homens e cromossomos

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Lembro-me bem, quando no científico (o atual ensino médio), de aprender que a diferença entre os homens e as mulheres está nos cromossomos X e Y: as mulheres têm dois X e os homens têm um X e um Y. Tudo parecia bastante simples no final dos anos 1970. Com os incríveis avanços da pesquisa do genoma humano nos últimos 15 anos, as coisas complicaram um pouco. Os livros usados nas escolas precisam ser revisados.


O gene SRY pode redefinir a orientação sexual e transformar o que seria uma fêmea em um macho


O básico continua o mesmo: o genoma humano tem 46 cromossomos, estruturas em forma de bastonete encontradas no núcleo de cada célula. Os genes residem nos cromossomos e são feitos de DNA. Os cromossomos X e o Y continuam sendo as estruturas responsáveis pela determinação do sexo. O que é novo é como isso ocorre. Em 2003, o cromossomo Y teve sua seqüência de "letras" químicas decodificada em detalhe: sabemos hoje quais e quantos genes ele tem. Sabemos também como o sexo é determinado em seres humanos: por meio de uma espécie de interruptor genético, que determina se um embrião vai virar um macho ou uma fêmea.

Como escreveu H. Allen Orr, da Universidade de Rochester, em resenha do livro "Adam's Curse", do biólogo Bryan Sykes, publicada recentemente no "New York Review of Books", a demora desses avanços se deve à dificuldade em extrapolar a determinação sexual em animais, especialmente os mais populares nos estudos de genética, como a mosca-das-frutas e outros insetos, para seres humanos. Aparentemente, a coisa conosco é bem mais complicada.

Nos anos 1980, cientistas descobriram algo de surpreendente: o sexo de uma pessoa não parecia ser determinado pelos seus cromossomos. Em casos raros, mulheres podem ter um X e um Y e homens dois X! Após o furor inicial, cientistas mostraram que o Y das mulheres com XY tinha uma pequena parte faltando. E que os homens XX tinham uma pequena parte do cromossomo Y, muito pequena para ser vista no microscópio. Ainda mais interessante, a parte do Y que faltava nas mulheres XY e a que aparecia nos homens XX era essencialmente a mesma. Ou seja, o sexo é determinado apenas por parte do cromossomo Y. São os genes nessa parte que definem o sexo do embrião. A questão então era determinar que genes são esses, os genes do sexo.

O mistério foi resolvido nos anos 1990, após uma intensa competição entre vários grupos de pesquisa. Peter Goodfellow e Robin Lovell-Badge, dois cientistas ingleses, localizaram um gene no cromossomo Y que chamaram de SRY, do inglês "Sex Determining Region of the Y chromosome" (região de determinação sexual do cromossomo Y). A prova de seu achado foi feita através de um experimento extremamente dramático. Os cientistas injetaram uma cópia do gene SRY em óvulos de rato, produzindo um espécime macho com dois cromossomos X e o pedaço de SRY. Ou seja, o gene SRY pode redefinir a orientação sexual do animal, transformando o que seria uma fêmea em um macho.

Embora ainda faltem alguns detalhes sobre como opera o SRY, a descoberta dá vazão a vários cenários de ficção científica. Por exemplo, e algumas leitoras (espero que não todas) talvez gostem de ouvir isso, pode-se imaginar um mundo inteiramente controlado por mulheres, que criam seus homens quando bem querem, inserindo cópias de SRY em seus óvulos. Não sei exatamente por que razão, mas o cenário inverso, embora possível, não me parece tão plausível. Talvez a explicação esteja no SRY.

domingo, 2 de outubro de 2005

Definindo teoria

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

A palavra "teoria" vem aparecendo bastante na mídia, em parte devido ao debate entre criacionismo e ciência. Existem usos diferentes do termo, que acabam criando confusão. No seu uso popular, o termo descreve um corpo de idéias ainda incerto, baseado em especulações não demonstradas. Teoria, para muitos, significa um corpo de hipóteses esperando ainda por confirmação. Às vezes, o uso popular do termo distancia-se ainda mais do científico, significando idéias que são meio absurdas, fora da realidade: "Ah, esse cara sempre foi um inventor de teorias, não sabe do que está falando", ou "isso aí não passa de uma teoria, provavelmente é besteira".


O fato de teorias não serem perfeitas é fundamental para o progresso da ciência. Caso contrário, não nos restaria nada a fazer


Teoria em ciência significa algo completamente diferente. O termo mais apropriado para uma idéia de caráter especulativo é hipótese, e não teoria. Uma hipótese é justamente uma suposição ainda não provada, aceita provisoriamente como base para investigações futuras. Por exemplo, a panspermia é uma hipótese que sugere que a vida na Terra veio de outras partes do cosmo. Não sabemos se está certa ou errada, mas podemos tentar comprová-la ou refutá-la. Já uma teoria consiste na formulação de relações ou princípios descrevendo fenômenos observados que já foi verificada, ao menos em parte. Ou seja, uma teoria não é mais uma mera hipótese, tendo já passado por testes que confirmam suas premissas.

Quando cientistas falam de uma teoria, falam de um corpo de idéias aceitas pela comunidade científica como descrições adequadas para fenômenos observados. A confirmação é por meio de observações e experimentos, o que cientistas chamam de método de validação empírica. Quanto mais sucesso tem uma teoria, maior o número de fenômenos que pode descrever. Quanto mais elegante, mais simples é.

Uma teoria de enorme sucesso em física é a teoria da gravitação universal de Newton. Ao propor que objetos com massa exercem uma força de atração mútua cuja intensidade cai com o inverso do quadrado da distância entre as massas, Newton e seus sucessores foram capazes de explicar as órbitas planetárias em torno do Sol, o fenômeno das marés, a forma oblata da Terra (achatada nos pólos), o movimento de projéteis na Terra e no espaço etc. Quando a Nasa lança um foguete da Terra ou colide um com um cometa, a teoria usada no planejamento das missões é a de Newton. Testes em laboratórios e observações astronômicas mostram que a teoria funciona extremamente bem em distâncias que variam de décimos de milímetros até milhões de trilhões de quilômetros, a escala em que galáxias formam aglomerados atraídas por sua gravidade mútua.

Isso não significa que a teoria (ou qualquer outra) seja perfeita. Sabemos que ela deixa de ser válida quando objetos estão muito próximos de estrelas como o Sol. Correções são necessárias, no caso fornecidas pela teoria da relatividade geral de Einstein, que, em 1916, generalizou a teoria de Newton.

O fato de teorias não serem perfeitas é fundamental para o progresso da ciência. Caso contrário, não nos restaria nada a fazer. E é justamente aqui o lugar da hipótese em ciência, tentando, através de idéias ainda não demonstradas, alavancar o conhecimento, desenvolver ainda mais nossas teorias. Para construir a teoria da relatividade, Einstein supôs que a velocidade da luz é sempre constante e que a matéria curva o espaço. Quando isso foi confirmado, a formulação ganhou o título de teoria. A pesquisa agora gira em torno dos limites dessa teoria e de como pode ser melhorada.

domingo, 25 de setembro de 2005

Anatomia de um cometa

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Alguns leitores devem estar lembrados do incrível feito da Nasa ocorrido no dia 4 de julho, a colisão de um bólido com o cometa Tempel 1 (Micro/Macro de 10.jul.2005). O objetivo da colisão foi estudar a composição interior do cometa a partir da análise do material ejetado. O equivalente seria atirar uma bola de gude em um bolo para ver qual é o recheio: quanto maior a velocidade e a massa da bola, mais bolo voando pelos ares. Uma espaçonave a 800 km de distância acompanhou o evento com câmeras e detectores diversos.


O interesse de astrônomos por cometas não deixa de ser semelhante ao de paleontólogos por fósseis


O interesse de astrônomos por cometas não deixa de ser semelhante ao de paleontólogos por fósseis. Você acha um fóssil e, a partir dele, tenta reconstruir todo um passado inacessível de qualquer outro modo. No caso dos cometas, a idéia é voltar à origem do Sistema Solar, viajar 4,5 bilhões de anos no tempo. Foi então que nasceram os planetas, asteróides e cometas, a partir da acumulação gradual de material girando em torno do Sol ainda bebê. A vantagem dos cometas é que, como suas órbitas estão muito distantes do Sol, seu material permanece a temperaturas baixíssimas e, portanto, praticamente inalterado. As teorias de formação de cometas sugerem que são feitos principalmente de dióxido de carbono, água, alguns compostos orgânicos e grãos de poeira, como uma bola de neve suja. As observações mostram algo diferente.

"Sua estrutura é mais frágil do que a de um suflê", afirmou um dos cientistas, um aglomerado de partículas mais parecido com talco do que pedra. A "cola" que mantém o cometa íntegro é sua gravidade. Do tamanho aproximado do monte Everest, o cometa tem a consistência de um suspiro. O doce, não a exalação humana.

O impacto entre o bólido de cobre e o cometa criou uma cratera de aproximadamente 30 metros de profundidade. Os detectores da nave-mãe, temporariamente cegos pela explosão, mostraram uma pluma de material ejetado, 10 milhões de kg de partículas extremamente finas viajando a 10 km/s, que permaneceu em suspensão sobre o cometa por 40 horas, um repuxo feito de talco. Em torno de 95% do material suspenso pela explosão voltou ao cometa, atraído pela sua gravidade. Usando imagens tiradas 45 e 75 minutos após a explosão, cientistas puderam medir a velocidade com que a pluma cresceu. Como essa velocidade é controlada pela gravidade do cometa, os dados permitiram aos cientistas estimar a densidade do astro, comparando-a com pedras terrestres. Os resultados foram surpreendentes: o cometa tem 60% da densidade do gelo, um amontoado de poeira voando junto devido à atração mútua.

Ninguém sabe ainda como cometas evoluem a partir de pequenos agregados de partículas menores do que um fio de cabelo. Ademais, os resultados preliminares do impacto mostram que o cometa parece ter uma estrutura semelhante à de uma cebola, camada sobre camada, provavelmente produto da acumulação gradual de material durante centenas de milhões de anos.

É possível, também, que as camadas sejam resultado de erupções vulcânicas provocadas toda vez que o cometa se aproxima do Sol em sua órbita. Voltando à imagem do bolo, cada camada é de um sabor diferente, que depende do material ejetado durante a erupção. Uma lição importante disso é como cientistas obtêm informação sobre eventos e objetos distantes. O acúmulo é gradual e difícil, mas fundamentado em observações quantitativas e reprodutíveis. E os resultados são mais mágicos do que qualquer fantasia.


domingo, 18 de setembro de 2005

Alquimia cósmica

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Durante a Idade Média e até o início do século 18, alquimistas tentaram um feito impossível: a transmutação de elementos químicos, em particular chumbo, em ouro, usando reações químicas comuns. O impossível aqui, como foi descoberto bem mais tarde, não é a transmutação dos elementos em si, mas fazê-lo usando reações com energias típicas de reações químicas, baseadas na troca de elétrons entre elementos.


Bem antes de existirem alquimistas humanos, o Universo já realizava o suposto milagre da transmutação no coração das estrelas


O problema é que a identidade de um elemento químico, se é hidrogênio, carbono ou manganês, não vem do número de elétrons circulando em torno de seu núcleo, mas do de prótons no núcleo. Hidrogênio, o elemento mais simples e mais comum no Universo, tem apenas um próton no núcleo. Hélio, o próximo, tem dois.

Leitores familiarizados com a Tabela Periódica sabem que os elementos são arranjados (da esquerda para a direita) de acordo com o seu "número atômico", o número de prótons no núcleo. Ouro tem 79 e chumbo, 82.

Transmutação só é possível quando muda o número de prótons no núcleo. Para isso, são necessárias reações nucleares com energias milhões de vezes maiores do que as energias típicas das reações químicas. Não dá para aquecer chumbo com um foguinho, misturá-lo com outros compostos e obter ouro. O que não significa que a alquimia não tenha sido importante para o desenvolvimento da química, especialmente devido à identificação de vários elementos. Mas a verdadeira alquimia precisa de física nuclear.

Bem antes de existirem alquimistas humanos, uns 13 bilhões de anos antes, o Universo já realizava o suposto milagre da transmutação no coração das estrelas.
É impossível olhar para o mundo à nossa volta e não se perguntar de onde vieram os elementos químicos que compõem as coisas da natureza. Pedras, plantas, água, animais, carros, poluição, tudo é composto de 92 elementos, do hidrogênio ao urânio, combinados em moléculas. A origem desses elementos está profundamente ligada à história cósmica. E nós também, já que somos feitos desses mesmos elementos.

Durante o primeiro minuto de sua existência, o Universo não tinha átomos. Apenas prótons, nêutrons (a outra partícula que compõe o núcleo) e elétrons viajavam pelo espaço, interagindo violentamente entre si e com a radiação, como pedaços de legume em uma sopa em ebulição. (A água, nessa analogia, é a radiação.) Quando a temperatura da sopa cósmica caiu abaixo das equivalentes às energias nucleares, os núcleos dos três elementos mais simples (hidrogênio, hélio e lítio) foram formados.

Os primeiros átomos só surgiram 400 mil anos mais tarde, quando elétrons juntaram-se aos prótons para formar hidrogênio e hélio. Com eles, estrelas puderam nascer. Delas, surgiram os elementos mais pesados.

No coração das estrelas ocorre a fusão do hidrogênio em outros elementos. As enormes pressões geram temperaturas de dezenas de milhões de graus, que causam reações capazes de fundir prótons com prótons, formando, como num jogo de lego, outros elementos. Nas estrelas como o Sol, a fusão vai até o carbono e oxigênio. Nas mais pesadas, até o ferro. São elas as fornalhas alquímicas do cosmo. Quando morrem, explodem com tal força que os elementos mais pesados que o ferro podem ser formados, até o urânio. O oxigênio da água, o sódio e o cloro do sal, o carbono da sua pele e das plantas, todos foram forjados em estrelas, os grandes laboratórios alquímicos do cosmo. Pense nisso na próxima vez em que colocar sal no feijão.

domingo, 11 de setembro de 2005

Luz: um pouco mais de mistério

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Aos leitores perplexos com o "um pouco mais" no título, explico que, semana passada, escrevi sobre o fato de a luz ter velocidade constante no espaço vazio, sempre 300 mil quilômetros por segundo, independentemente do movimento da fonte ou do observador. Esse comportamento, sugerido por Einstein em 1905 como base de sua teoria da relatividade, faz da luz uma entidade misteriosa, diferente de tudo que conhecemos. Mas não é o único de seus mistérios. O outro, que discutiremos abaixo, também surgiu em 1905 das mãos de Einstein. E, segundo ele mesmo, foi sua idéia mais revolucionária.


Einstein, que gostava de freqüentar bares com os amigos, deve ter se inspirado num jogo de bilhar ao propor sua explicação para o efeito fotoelétrico


Ao final do século 19, a maioria dos físicos sabia que a chamada física clássica estava em crise: várias descobertas feitas no laboratório mostravam que certos fenômenos não podiam ser descritos pelos pilares do conhecimento físico de então, a mecânica de Newton e o eletromagnetismo de Michael Faraday e James Clerk Maxwell. Desses fenômenos, o efeito fotoelétrico era dos mais abstrusos: uma placa metálica onde foi depositada carga elétrica perde essa carga se iluminada por luz ultravioleta, mas, se a luz for amarela, vermelha ou azul, nada ocorre.

Einstein, que gostava de freqüentar bares com os amigos, deve ter se inspirado num jogo de bilhar ao propor sua explicação para o efeito fotoelétrico. Pense numa placa metálica carregada como uma mesa de bilhar cheia de bolas. Cada bola é um elétron, que dá carga extra à placa. Uma mesa sem bolas é equivalente a uma placa sem carga extra. Einstein propôs que a luz incidente na placa também fosse feita de pequenas "bolas", partículas de luz que hoje chamamos de fótons. Na época, a idéia era inesperada: a luz era considerada uma onda, tem propriedades como refração e difração, coisas que vemos todos os dias ao olharmos raios de luz no fundo de uma piscina. Como assim "bolas" de luz? Einstein justificou-se dizendo que sua idéia era heurística. isto é, uma explicação tentativa, sem maior suporte teórico. Se funcionasse, explicaria os dados experimentais.

Da teoria ondulatória da luz, sabia-se que cada cor está relacionada com uma onda de determinada freqüência, que aumenta do vermelho ao violeta. Pense nessas ondas como o fole de um acordeão: o fole aberto corresponde a ondas de maior comprimento e menor freqüência, os tons mais graves; o fole fechado corresponde à ondas de maior freqüência, mais agudas. Einstein, inspirando-se na idéia de Max Planck de que átomos recebem e emitem energia em pequenos pacotes, sugeriu que a luz também pode ser interpretada como sendo composta de pacotes, cada cor uma partícula com energia que aumenta com a freqüência. Um fóton correspondendo à luz ultravioleta tem mais energia do que um da luz vermelha ou amarela.

O resto é fácil: só fótons ultravioleta têm energia para arrancar elétrons da placa metálica. O mesmo ocorre com a mesa de bilhar: só uma tacada bem forte arranca as bolas da mesa. A teoria de Einstein explica os dados perfeitamente. Porém, cria outro problema: afinal, a luz é onda ou partícula? A melhor resposta é: nem uma coisa nem outra. Onda e partícula são imagens que criamos com base na nossa intuição, forjada pelo que vemos ao nosso redor. Mas, no mundo quântico, tais imagens são irrelevantes. Apenas o que medimos com instrumentos faz sentido. Nossas teorias são construções que explicam o que medimos, baseadas em conceitos restritos pela nossa percepção do mundo. A natureza da luz, se é que é possível caracterizá-la, permanece um mistério.


domingo, 4 de setembro de 2005

O mistério da luz

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Volta e meia recebo mensagem de um leitor confuso ou mesmo irritado com a luz. Entre as perguntas mais freqüentes, a campeã parece ser o fato de a luz ter, quando atravessando o mesmo meio, uma velocidade constante.

Portanto, duas coisas: primeiro, a velocidade da luz muda quando passa de um meio a outro -por exemplo, do ar para a água. Porém, quando permanece no mesmo meio, a velocidade não muda. Segundo, a velocidade máxima da luz é atingida no espaço vazio (ou vácuo), e é de 300 mil km/s: você pisca o olho e a luz dá sete voltas e meia em torno da Terra.


Se os princípios estiverem certos, as previsões das teorias estão de acordo com os fenômenos observados. Às vezes, até prevêem novos fenômenos


Deixemos de lado a propagação da luz em meios materiais e nos concentremos em sua propagação no vácuo, como no espaço, onde não existe atmosfera. O fato de a velocidade da luz ser finita tem várias conseqüências. Como a luz nos traz informação, só sabemos que algo ocorreu em algum local um tempo após a ocorrência: quanto mais longe, maior a demora. Se o Sol explodisse agora, só saberíamos após aproximadamente oito minutos, o tempo que a luz demora para vir de lá até aqui. A distância entre o Sol e a Terra é de oito minutos-luz.
Quanto astrônomos observam objetos muito distantes, estão olhando para trás no tempo: hoje, visualizamos objetos a 10 bilhões de anos-luz do Sol, ou seja, a luz que vemos agora deixou-os há 10 bilhões de anos.

Temos, então, um horizonte a 14 bilhões de anos-luz do Sol, já que o Universo tem 14 bilhões de anos, o tempo transcorrido desde o Big Bang. Tal como, na Terra, não podemos ver além do horizonte, não podemos ver além de nosso horizonte cósmico. Isso não significa que o Universo termine bruscamente a 14 bilhões de anos-luz daqui. O Universo continua além do horizonte, assim como os oceanos.

Apesar de a velocidade da luz ter sido medida bem antes do século 20, foi com Einstein e a teoria da relatividade que ela entrou firme na arena da física. Não sabemos por que a velocidade da luz é finita ou por que tem o valor que tem. Einstein construiu sua teoria postulando dois princípios, asserções que não podem ser provadas a priori, mas que são demonstradas por meio de testes e medidas em laboratórios e observatórios. O primeiro postulado era já conhecido desde Galileu e diz que as leis da física são as mesmas para observadores em movimento relativo com velocidades constantes. Ou seja, se você está parado numa esquina e eu passo de carro a 60 km/h, as leis da física são as mesmas para nós dois. O segundo é a grande novidade, que chocou e choca a tantos: a velocidade da luz no vácuo é sempre a mesma, independente do movimento relativo entre sua fonte e o observador. Não interessa se você acende uma lanterna em um carro a 60 km/h ou em um foguete a 20 mil km/h (ou 20 mil km/s!), a velocidade da luz no vácuo é 300 mil km/s. Sempre.

Aos leitores que sentem um certo desconforto, digo que é assim que a ciência funciona: precisamos de princípios para construir as teorias que usamos para explicar o que vemos no mundo. Se os princípios estiverem certos, as previsões das teorias estão de acordo com os fenômenos observados. Às vezes, até prevêem novos fenômenos. Caso contrário, os princípios devem ser revisados. Em cem anos de relatividade, nenhum dos testes feitos até hoje ofereceu qualquer razão para duvidar da constância da velocidade da luz. Isso não significa que o seu misterioso valor seja inexplicável. Quem sabe um dia um novo Einstein entenderá por que a velocidade da luz tem o valor que tem.

segunda-feira, 29 de agosto de 2005

Who designed the Designer?

Quem projetou o estilista?

Disse Bush de que "desenho inteligente" deve ser discutido em sala de aula como um contraponto à teoria da evolução levou a questão à frente da infelizmente chamado ''guerra" entre ciência e religião.

Não que os proponentes da ID aceitem, pelo menos abertamente, um rótulo religioso. Eles alegam que ID é ciência e deve ser tratado como tal. Afinal de contas, eles não afirmam que o designer é Deus. Ele pode ser qualquer tipo de inteligência, basta ser brilhante e poderoso o suficiente para criar a incrível complexidade da vida: Nós (ou bacteriana nossos antepassados), são os ratos em laboratório em curso numa experiência. De acordo com alguns ''IDists", a possibilidade de que o designer é um extraterrestre inteligência não devem ser negligeniadas. Vou tentar convencê-lo de que deveria.

Alguns dos meus colegas pensam que o que estou a fazer agora é errado; Que, para um cientista para discutir o assunto está a dar - lhe uma credibilidade que não merecem. Eles se recusam a participar na mesa redonda discussões com IDists, alegando que o esforço eleva - se a um enorme desperdício de tempo, que aqueles que apoiam desenho inteligente fazê-lo por razões que não são científicas e que nenhuma 60-hora ou vitalícia debate iria mudar a sua opinião.

Discordo.É verdade que argumentar racionalmente com aqueles que acreditam cegamente na ID ou qualquer outra coisa é impossível. Extremistas de qualquer espécie são surdos à razão. Mas não é a platéia de cientistas devemos ter em mente. Elas devem ser orientadas para os milhões de outros que têm assento na barreira, confuso e curioso, perguntando-se por que razão o heck cientistas, que são tão certo de suas teorias, não aparecem publicamente a demolir o "IDists" para, de uma vez por todas. Mas enquanto cientistas continuam a maioria silenciosa, creationists e IDists proclamar sua "verdades" para todos os que querem ouvir. Os cientistas precisam falar.

A hipótese é científica se puder ser validado empiricamente. Um ''preciso ver para crer" - exatamente o oposto do "crer para ver", que constitui a premissa de muitos sistemas religiosos. É muito mais fácil de ver milagres em toda parte se você acredita neles. A científica ''ver para crer " é apoiada por dados adquiridos no laboratório ou por meio de observações. Se a hipótese é justificado, a comunidade científica, depois de muita discussão, ela aceita. Isto não significa que permanecerá parte do estabelecido "Verdade". Novas teorias germinam através das rachaduras das antigas.Ciência necessita de crise para evoluir.Ela precisa de mistérios. É sempre incompleta. Por trás de nossa ignorância não existe apenas a ciência que ainda não foram desenvolvidas.

Aqui está um exemplo.

Lá atrás no século 19, era sabido que a órbita do Mercury desloca muito lentamente, como um "wobbling topo". O comportamento da órbita era um mistério, e a teoria da gravidade de Newton não poderia descrevê-lo. Astrônomos ainda inventaram um planeta imaginário entre Mercúrio e o Sol para explicar a anomalia. Em 1916, Einstein propôs uma nova maneira de pensar sobre gravidade, a sua teoria geral da relatividade. Em vez de misteriosa ação Newtoriana a distância, Einstein sugeriu que o espaço era plástica, e que o espaço poderia dobrar e esticar-la como uma folha de borracha.

Teoira de Einstein explicou "Mercury's wobbling" como consequência da dobra do espaço perto do sol. Nova ciência resolveu um antigo mistério. Significa isto que Einstein da teoria é a última palavra em gravidade? Não. Eventualmente, será modificado por uma forma mais poderosa teoria capaz de explicar as coisas que não podem.

A hipótese ID, que nós, ou alguns passos fundamentais na evolução da vida, são produtos de determinado projeto não é científica. Ele não pode ser confirmado experimentalmente. A afirmação de que a vida é complexa demais para ter acontecido por acaso e que estamos de certa forma fundamentalmente incapazes de compreender o "como", reflete uma profunda atitude não-cientifica, um põe-baixo da razão humana. As incertezas de hoje são o futuro da nova ciência.

Se eu tivesse a oportunidade de conhecer o pressuposto "Designer", se eu pudesse perguntar o que, para mim, é a questão mais importante de todas elas: ''Mr. Designer, quem designou voce?" Se o "Designer" responder que ela não sabe, que talvez ele também foi concebida, que dividem-se em uma infinidade regressão, volta diretamente para o problema da causa primeira, a única que não precisa causar. Neste ponto a máscara cairá e nós finalmente descobrir a verdadeira identidade do IDists' Designer. Devemos capitalizar a palavra, uma vez que esta é a forma como são ensinadas para se referir a Deus.


By Marcelo Gleiser | August 29, 2005
THE BOSTON GLOBE

THE DECLARATION by President Bush that ''intelligent design" should be discussed in the classroom as a counterpoint to the theory of evolution has pushed the issue to the forefront of the unfortunately named ''war" between science and religion.
Article Tools

Not that the proponents of ID accept, at least openly, a religious label. They claim that ID is science and should be treated as such. After all, they don't state that the designer is God. It can be any kind of intelligence, just bright and powerful enough to create the amazing complexity of life: We (or our bacterial ancestors) are the lab rats in an ongoing experiment. According to some ''IDists," the possibility that the designer is an extraterrestrial intelligence should not be neglected. I will try to convince you that it should.

Some of my colleagues think that what I am doing right now is wrong; that for a scientist to discuss the issue is to give it a credibility it doesn't deserve. They refuse to participate in roundtable discussions with IDists, claiming that the effort amounts to a huge waste of time, that those who support intelligent design do so for reasons that are not scientific and that no 60-minute or lifelong discussion would change their minds.

I disagree. It's true that arguing rationally with those who blindly believe in ID or anything else is impossible. Extremists of any sort are deaf to reason. But this is not the audience scientists should have in mind. They should be targeting the millions of others who sit on the fence, confused and curious, wondering why the heck scientists, who are so sure of their theories, don't appear publicly to demolish the IDists for once and for all. But while scientists remain mostly silent, creationists and IDists proclaim their ''truths" for all who want to hear them. Scientists need to speak up.

A hypothesis is scientific if it can be empirically validated. One must ''see to believe" -- exactly the opposite of the ''believe to see" which forms the premise of many religious systems. It's much easier to see miracles everywhere if you believe in them. The scientific ''see to believe" is supported by data acquired in the lab or through observations. If the hypothesis is vindicated, the scientific community, after much debate, accepts it. This doesn't mean it will remain part of the established ''truth." New theories sprout through the cracks of old ones. Science needs crisis to evolve. It needs mysteries. It is always incomplete. Behind our ignorance there is just the science we haven't yet developed.

Here is an example. Late in the 19th century, it was known that Mercury's orbit shifted very slowly, like a wobbling top. The orbit's behavior was a mystery, and Newton's theory of gravity couldn't describe it. Astronomers even invented an imaginary planet between Mercury and the Sun to explain the anomaly.

In 1916, Einstein proposed a new way to think about gravity, his general theory of relativity. Instead of Newton's mysterious action-at-a-distance, Einstein suggested that space was plastic, that matter could bend and stretch it like a rubber sheet. Einstein's theory explained Mercury's wobbling as a consequence of the bending of space near the Sun. New science resolved an old mystery. Does this mean that Einstein's theory is the last word in gravity? No. Eventually, it will be modified by a more powerful theory capable of explaining things it cannot.

The ID hypothesis, that we, or a few key steps in the evolution of life, are products of purposeful design is not scientific. There is no way to test it. It cannot be confirmed experimentally. The statement that life is too complex to have happened by chance and that we are somehow fundamentally incapable to understand how reflects a deeply unscientific attitude, a put-down of human reason. The uncertainties of today are tomorrow's new science.

If I had the opportunity to meet the assumed designer, I'd ask what, to me, is the most important question of them all: ''Mr. Designer, who designed you?"

If the designer answers that it doesn't know, that perhaps it was also designed, we fall into an endless regression, straight back to the problem of the first cause, the one that needs no cause. At this point the mask tumbles and we finally discover the true identity of the IDists' Designer. We should capitalize the word, as this is how we are taught to refer to God.

Marcelo Gleiser, a professor of physics and astronomy at Dartmouth College, is the author of ''The Prophet and the Astronomer: A Scientific Journey to the End of Time." He is currently working on a biographical novel of Johannes Kepler.
© Copyright 2005 Globe Newspaper Company.



domingo, 28 de agosto de 2005

Universos de proveta

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Antes de se entregar ao estudo da filosofia, o alemão Immanuel Kant estudou com afinco o Universo. Em 1751, leu o livro do inglês Thomas Wright, o primeiro a especular sobre o formato de nossa galáxia: segundo Wright, a Via Láctea era uma coleção de estrelas achatada entre dois planos. Sabendo que o Sistema Solar também tem a forma achatada, com o Sol no centro e os planetas girando à sua volta em um plano, como azeitonas numa pizza, Kant sugeriu que as duas estruturas foram formadas por processos semelhantes. Indo além, sugeriu que padrões idênticos repetem-se Universo afora. Passados 250 anos, podemos afirmar que, de certa forma, o filósofo alemão estava certo.


Pela primeira vez, o Universo que simulam os no computa dor se assemelha àquele que vemos com telescópios


Através de grandes telescópios, astrônomos vêm medindo os detalhes das estruturas que povoam o cosmo, algumas delas tão vastas que atingem centenas de milhões de anos-luz. Que estruturas são essas e como elas foram formadas?

Em cosmologia, a unidade usada é uma galáxia: quando astrônomos fazem mapas dos céus, cada ponto corresponde a uma galáxia. Fica subentendido que cada galáxia tem desde milhões até centenas de bilhões de estrelas. Galáxias, como tudo no Universo, são atraídas umas às outras pela gravidade, a força escultora das estruturas cósmicas. Às vezes, várias galáxias estão próximas o suficiente para formarem um grupo, como um bando de abelhas em torno de uma colméia -que seria uma espécie de supergaláxia. Tais grupos de galáxias são chamados aglomerados. Hoje, sabemos que no centro das supergaláxias existem gigantescos buracos negros com massas de centenas de milhões de sóis. Como entender a sua formação?

Pondo o Universo num computador. A idéia é simular as interações gravitacionais entre galáxias, acompanhar como respondem às várias forças que agem sobre elas e ver se, no final, o Universo simulado se parece com o observado. Se sim, isso significa que entendemos como as estruturas de larga escala foram formadas na medida em que o Universo foi expandindo nos últimos 13 bilhões de anos. Se não, temos de revisitar nossos modelos de como a gravidade atua na formação das estruturas cósmicas.

Nos últimos 20 anos, avanços na computação vêm permitindo simulações cada vez mais realistas da história cósmica. Recentemente, um grupo multinacional de astrofísicos apresentou resultados da simulação mais avançada de todos os tempos: em um cubo com 2 bilhões de anos-luz de lado, os cientistas foram capazes de observar a formação de mais de 20 milhões de galáxias, juntamente com alguns buracos negros supermaciços. Não só isso: os resultados concordam com as observações mais recentes, que sugerem que a matéria que vemos no Universo é apenas parte da história: o modelo só é compatível com as observações se forem adicionados dois ingredientes a mais -a matéria escura, feita de partículas que só interagem gravitacionalmente, e a energia escura, uma forma misteriosa de energia que provoca a aceleração da expansão cósmica, observada em 1998.

Pela primeira vez, o Universo que simulamos no computador se assemelha àquele que vemos com telescópios. A grande vantagem da simulação é que ela pode ser controlada, parâmetros podem ser modificados, tornando possível criar universos distintos do nosso, com histórias e estruturas diferentes. O computador permite-nos criar universos de proveta, de modo a entender melhor as propriedades do nosso e o que o torna tão especial.

domingo, 21 de agosto de 2005

O quantum invisível


MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Na semana passada escrevi sobre as máquinas quânticas, que têm dimensões tão pequenas que vivem na fronteira entre o nosso mundo, o mundo clássico, e o mundo quântico, dos átomos. Imagino que vários leitores queiram saber mais sobre essa fronteira, ou mesmo sobre o que é esse tal mundo quântico, com sua fama de estar repleto de mistérios.

Começo afirmando que a fama é mesmo merecida. No mundo dos átomos, efeitos estranhos, aparentemente mágicos, ocorrem com freqüência. Aliás, são a regra e não a exceção. Por exemplo: no nosso mundo, quando vemos uma bola de bilhar rolando sobre uma mesa, podemos afirmar com confiança onde ela está e estará no futuro. Entretanto, se a bola fosse um elétron ou um próton, não poderíamos mais afirmar nada com certeza. No máximo, poderíamos estimar a probabilidade de o elétron estar nessa ou naquela posição em determinado momento. Algo acontece quando mergulhamos no mundo do muito pequeno, algo que distorce o significado das coisas, transformando o certo em apenas provável.

Em 1924, o francês Louis de Broglie propôs que todas entidades materiais em movimento -você, eu, a bola na mesa, o elétron nos átomos- podem ser consideradas ondas. Einstein tinha sugerido algo semelhante com a luz: em 1905, conjeturou que ela pode ser vista como uma onda ou uma partícula, que mais tarde foi chamada de fóton. De Broglie ofereceu uma fórmula para calcular o comprimento de onda de um determinado objeto. Antes, uma explicação. Imagine ondas passando em sucessão, crista após crista, como acontece quando uma pedra é jogada numa poça d'água. A distância entre as cristas é chamada de comprimento de onda. No caso da pedra caindo na poça, o comprimento de onda é da ordem de centímetros.

Se tudo é onda, por que não vemos o mundo à nossa volta ondulando? A resposta se encontra na fórmula proposta por De Broglie. O que deve ser comparado é o tamanho do objeto com seu comprimento de onda: se os dois forem semelhantes, efeitos quânticos são importantes. Se o objeto for muito maior do que o seu comprimento de onda, os efeitos quânticos são desprezíveis. Todos os processos quânticos são controlados por uma constante fundamental chamada "constante de Planck" (representada pela letra h), que é extremamente pequena. Por exemplo, o comprimento de onda (l) de um objeto é proporcional à constante de Planck (h) e inversamente proporcional ao produto de sua massa (m) por sua velocidade (V): l = h/ (mV). A fórmula de de Broglie! Está tudo aqui: como a constante h é pequena, para que um objeto tenha efeitos quânticos mensuráveis, seu momento (o produto mV) tem também de ser muito pequeno. Por exemplo, uma gota d'água pingando de uma torneira tem um comprimento de onda aproximado de um trilionésimo de trilionésimo de metro (10-24 m). Tomando seu tamanho como 0,1 mm, ou 10-4 m, o efeito acaba se tornando desprezível. Você, caro leitor, movendo-se em um carro a 60 km/h, tem um comprimento de onda um trilionésimo de metro menor que isso. (Não vale pôr velocidade zero, pois a fórmula não é aplicável para corpos em repouso. Ondas têm de se mover.)

Toda a mágica quântica vem dessa chamada dualidade partícula-onda. Infelizmente, os efeitos desaparecem no nosso mundo, ou mesmo no mundo das bactérias, com milionésimos de metro. Porém, no mundo dos átomos, a mágica jamais pára.


domingo, 14 de agosto de 2005

Máquinas quânticas

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Quando os primeiros computadores foram criados, enchiam salas imensas, válvulas aquecidas e toneladas de fios dando-lhes a aparência de monstros tecnológicos. Hoje, laptops têm muito mais potência de cálculo do que esses seus primeiros antepassados. A tendência da tecnologia é a miniaturização crescente. Circuitos de computadores contêm milhões de transistores, impressos em placas tão pequenas que mal enxergamos os detalhes a olho nu. E, claro, em nossa pressa urbana, queremos máquinas ainda menores e mais velozes, pouco ligando para como a coisa é feita. Uma pena esse descaso com relação às verdadeiras preciosidades da engenharia que usamos com tanta freqüência: celulares, TVs a cabo, DVDs, GPS, ipods, a lista cresce a cada dia. Não me refiro ao aspecto externo, o design de ponta, mas ao interno, os circuitos integrados, os processadores, o poder de transmissão vindo de objetos tão pequenos.


A caixa preta não só vem diminuindo de tamanho: vem também ficando cada vez mais misteriosa


Inevitavelmente, a tecnologia se esconde cada vez mais das pessoas. No início do século 20, as novidades para o público eram a luz elétrica e os primeiros carros. Todavia, vem já de lá esta crescente ocultação da tecnologia dentro da "caixa preta": apertamos os botões sem saber como as coisas funcionam dentro da caixa. Daí que, quando as coisas quebram, ou jogamos fora ou chamamos os técnicos, aqueles que sabem como abrir a caixa preta e, ao menos em princípio, consertar o que for necessário. A caixa preta não só vem diminuindo de tamanho: vem também ficando cada vez mais misteriosa. A situação piorará ao entrarmos na era das máquinas quânticas.

Qual a menor máquina que usamos no dia-a-dia? Não muito pequena, talvez um barbeador elétrico, um ipod, um marca-passo, um aparelho de audição. Esses exemplos são todos bem grandes, de dimensões de centímetros. Imagine máquinas milhares de vezes menores do que isso, com tamanho comparável ao de bactérias. Sabemos que células são máquinas extremamente sofisticadas, movidas pela dança das proteínas. Se a natureza pode criar máquinas tão pequenas, por que não os homens? São as máquinas quânticas, objetos de porte comparável ao de células ou até menores, nos limites entre os mundos da física clássica e da física quântica, que descreve o comportamento dos átomos e das moléculas.

Osciladores eletromecânicos capazes de vibrar milhões de vezes por segundo (como comparação, carros funcionam a 3.000 rpm, ou 50 rotações por segundo); detectores sensíveis à presença do campo magnético criado por um único elétron; em breve, nanocâmeras que filmam moléculas individualmente. Essas são algumas da invenções da nanotecnologia, a ciência que estuda o comportamento de máquinas submicroscópicas. Uma das aplicações será na medicina: a criação de nanorrobôs pequenos o suficiente para serem inseridos na corrente sangüínea do paciente, identificar artérias bloqueadas ou prestes a serem bloqueadas, e destruir a causa do bloqueio.

Do ponto de vista da física, as nanomáquinas representam uma nova fronteira do conhecimento, onde as flutuações sempre presentes no mundo do muito pequeno servem de fonte para as vibrações utilizadas pelos vários aparelhos. Essa é uma das diferenças entre o mundo clássico e o quântico: no quântico, não existe repouso, tudo vibra continuamente. Em vez de eliminar as vibrações inerentes aos materiais, as novas tecnologias alçam mão do "se não podemos derrotá-los, que nos unamos a eles", criando caixas pretas de dimensões moleculares.


domingo, 7 de agosto de 2005

Panspermia: uma breve história



A idéia evita a questão mais interessante: qual a origem da vida, aqui ou em outra parte do cosmo?
MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

Não, a "Micro/Macro" não virou coluna pornográfica. Panspermia é a hipótese de que a vida na Terra foi importada de algum outro lugar do espaço. Tudo começou com a idéia da pluralidade de mundos- ou seja, o Sistema Solar não seria o único com uma estrela circundada por planetas. Já na Grécia antiga filósofos falavam da possibilidade de outros mundos, alguns até com formas de vida distintas das da Terra. Epicuro (341-270 a. C.) sugeriu: "Devemos acreditar que em todos os mundos existem criaturas e plantas, tal como aqui". Um de seus seguidores, Metrodoro, escreveu: "Considerar a Terra o único mundo povoado no espaço infinito é tão absurdo quanto imaginar que em um campo semeado por inteiro apenas uma planta nascerá".

A hipótese dos gregos ganhou força quando Copérnico sugeriu, em 1543, que a Terra era apenas um planeta e não o centro do cosmo. Afinal, se a Terra não tem nada de especial e a vida é abundante aqui, por que não em outras partes? Kepler, o primeiro astrônomo a levar o copernicanismo a sério, chegou até a escrever o que muitos consideram o primeiro conto de ficção científica, "O Sonho", sobre criaturas que viviam na Lua. Em 1686, o francês Bernard le Bovier de Fontenelle publicou "Conversas sobre a Pluralidade dos Mundos", um diálogo fictício entre um filósofo e uma marquesa sobre a possibilidade de vida extraterrestre. O livro causou enorme sensação. Para evitar problemas com a Igreja Católica, Fontenelle afirmou que os extraterrestres não eram descendentes de Adão e que, portanto, não deveriam influenciar questões teológicas. Mesmo assim, sua obra foi posta no "Index" (o catálogo de livros proibidos do Vaticano).

Quando os micróbios foram descobertos, a possibilidade de vida extraterrestre ganhou ainda mais força. Os ETs poderiam perfeitamente ser bactérias exóticas, desconhecidas aqui. Louis Pasteur, que conhecemos pela pasteurização do leite, estudou a questão seriamente. Pensando, no começo de sua carreira, que a vida apareceu de matéria inanimada através de geração espontânea, acabou se convencendo do contrário: a vida que aparece em restos de comida expostos ao ar por um tempo vem de fora, por contaminação. Seu livro, publicado em 1860, influenciou, entre outros, o grande físico William Thomson, lorde Kelvin, conhecido pela escala de temperatura com o seu nome. Kelvin sugeriu que a vida na Terra veio do espaço, transportada em meteoritos, pedaços de "outros mundos", que serviam de naves de imigração. Calculando, corretamente, que a Terra é bombardeada anualmente por toneladas dessas pedras, Kelvin escreveu: "A hipótese que a vida aqui se originou de fragmentos de outros mundos pode parecer fantasiosa e visionária; mas mantenho que deve ser considerada científica".

Svante Arrhenius, o químico sueco vencedor do prêmio Nobel de 1903, refinou as idéias de Kelvin. Afirmando que impactos de meteoritos são violentos demais para que a vida sobreviva, sugeriu que ela tenha chegado aqui em sementes carregadas pelo vento solar, do mesmo modo que na Terra são carregadas pelo vento. Hoje sabemos que ambas as idéias são possíveis: sementes terrestres podem de fato sobreviver durante anos no espaço. E as extraterrestres, se existirem, podem ser transportadas em meteoritos, já que as temperaturas interiores não são muito altas. Mesmo assim, a idéia da panspermia evita a questão que, para mim, é a mais interessante: qual a origem da vida, aqui ou em outra parte do cosmo?

domingo, 31 de julho de 2005

Quem desenhou o Designer?

MARCELO GLEISER
COLUNISTA DA FOLHA

A questão do Design Inteligente (DI) é o novo capítulo da infeliz guerra entre a ciência e a religião. Não que os proponentes do DI aceitem abertamente esse rótulo; para eles o DI é ciência e deve ser tratado como tal. Afinal, não dizem que o designer é Deus. Apenas que uma inteligência, qualquer que seja a sua natureza, é necessária para explicar a complexidade da vida. Talvez o designer seja um ET? A possibilidade, para os que defendem o DI, não deve ser descartada. Ou será que deve?


A hipótese do DI não é científica. Ela não é observável ou verificável em laboratórios


Para analisar o DI, deve-se explicar o significado de uma hipótese científica. Antes de fazer isso, justifico por que uso este espaço para discutir DI. Tenho certeza de que aqueles que o rejeitam acham que eu não deveria sequer discutir o assunto; que dar espaço ao tema é lhe dar mais credibilidade do que merece. Muitos cientistas se recusam a participar de mesas redondas com defensores do DI, alegando que fazê-lo é completamente inútil, que os que acreditam em DI o fazem por razões que não são científicas e que discussões públicas de 60 minutos não serão suficientes para convencê-los.

Eu discordo. Talvez seja mesmo impossível usar argumentos racionais para convencer aqueles que acreditam cegamente nas premissas do DI. Mas não são essas as pessoas que devem ser alvo das atenções dos cientistas. São milhões de outras, a maioria silenciosa, que está confusa, curiosa, tentando entender o que está acontecendo. Por que os cientistas, se estão tão seguros de suas teorias, não aparecem em público para derrubar de uma vez por todas o movimento do DI? Para elas, argumentos do tipo "para um cientista, é perda de tempo engajar-se nesse debate" soam como desculpa de alguém que já está derrotado ou que tem medo do confronto. Enquanto os cientistas continuam calados, os criacionistas e os defensores do DI proclamam suas "verdades" aos quatro ventos, o mais alto possível.

Dito isso, voltemos à questão da hipótese científica. Uma hipótese é considerada científica se for passível de validação empírica. Em bom português, é o "ver para crer", o oposto do "crer para ver", que é a premissa da religião. É muito mais fácil "ver" um milagre quando se acredita que milagres são possíveis. No ver para crer científico, uma hipótese deve ser acompanhada de testes que determinem se está certa ou errada. Se estiver certa, ela explica os fenômenos que se propõe a explicar. Um exemplo: átomos existem e são formados de prótons e nêutrons no núcleo e de elétrons à sua volta. Baseados nessa hipótese, cientistas constroem teorias que explicam milhares de fenômenos observados no laboratório, incluindo as propriedades das moléculas orgânicas responsáveis pela vida.

Segundo a discussão acima, a hipótese do DI (somos o produto de uma inteligência) não é científica. Ela não é observável ou verificável em laboratórios. A menos, claro, que o designer, aparentemente tímido já faz uns bons 3 bilhões de anos, resolva nos contatar, revelando o que aprendeu conosco ou os objetivos do experimento. Mesmo que nossa inteligência seja infinitamente inferior à dele, tenho certeza de que poderíamos entender ao menos parte da coisa. Talvez pudéssemos então perguntar o que, para mim, é a questão mais fundamental de todas: "Senhor designer, quem foi que o desenhou?". E se o designer disser que não sabe, que talvez também seja parte de um experimento, ficaremos então sabendo qual a identidade secreta do Designer. É bom usar letra maiúscula, pois é assim que devemos nos referir a Deus.