domingo, 23 de dezembro de 2001

Chuvas extraterrestres

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Em algumas culturas indígenas, como na Polinésia, acredita-se que uma substância mágica, chamada "mana", possa emanar e penetrar certos indivíduos e objetos, sendo capaz de causar grandes benefícios ou males. Em me lembro, quando garoto, do meu pai me instruindo a "ver" a mana caindo do céu. "Basta você se concentrar e abrir bem os olhos e você verá certas partículas de luz, faiscando aqui e ali, aparecendo e desaparecendo caoticamente." Segundo meu pai, essas partículas de luz eram o que os nativos da Polinésia chamam de mana.

Não sendo um especialista em oftalmologia, imagino que esses pontos de luz sejam alguma aberração que ocorre quando o cérebro processa a informação sensorial captada pelo olho e transmitida pelo nervo óptico. Mas o que importa para a discussão de hoje é apenas a crença, que não é só limitada aos nativos da Polinésia, de que existem coisas que caem dos céus ou emanam de pessoas e objetos e que são capazes de transportar energia. Pois o fato é que existem mesmo, embora sua influência nos afazeres humanos seja bem mais modesta do que se acredita nessas culturas.

Em 1912, o físico alemão Victor Hess detectou os primeiros raios cósmicos, chuvas de partículas originadas fora do Sistema Solar, compostas aproximadamente de 90% de prótons, 9% de núcleos atômicos do elemento químico hélio e de outros mais pesados e cerca de 1% de elétrons. Hess preparou um balão com hidrogênio e um detector de ionização, que mede quando um elétron é roubado do hidrogênio devido à colisão com outra partícula. Ele observou que a ionização aumentava com a altitude e ocorria de dia e à noite, sendo portanto independente do Sol.

A física brasileira, principalmente através do trabalho pioneiro de Cesar Lattes, tem uma longa participação no estudo dos raios cósmicos. Hoje, a pesquisa continua sendo tópico de grande interesse da comunidade científica. Ela está passando por uma renascença, com novos detectores sendo projetados. Inclusive um na Argentina, o Projeto Auger, parte de uma vasta colaboração internacional.

O enorme interesse atual se deve a duas questões básicas. A primeira é: de onde vêm os raios cósmicos? Eles são a única matéria que chega até a Terra cuja origem é externa ao Sistema Solar. Ou seja, os raios cósmicos são a única ligação material que temos com o resto de nossa galáxia. E, possivelmente, com outras galáxias também, visto que uma fração do que chega aqui é de origem extragaláctica, pequenos mensageiros cósmicos provenientes de distâncias de milhões de anos-luz. O único outro contato que temos com objetos tão distantes é feito por meio de observações astronômicas, usando as várias frequências do espectro eletromagnético, das ondas de rádio aos raios gama, incluindo, claro, a luz visível.

A segunda questão, que está relacionada com a primeira, é: quais os mecanismos astrofísicos responsáveis pela geração dos raios cósmicos? O mais interessante aqui é a incrível energia dessas partículas. Todas têm velocidades próximas da velocidade da luz, e algumas têm energias milhões de vezes maiores do que a atingida com aceleradores de partículas aqui na Terra. Mais ainda, as partículas parecem chegar igualmente de todas as direções, sem uma determinada preferência apontando para uma fonte específica. Trata-se de uma chuva que cai de todos os lados.

Existem três candidatos principais para explicar a geração dos raios cósmicos: eventos extremamente violentos que ocorrem no centro de nossa galáxia (e de outras), as explosões que marcam o fim da vida de estrelas bem maciças (mais do que oito vezes o Sol), conhecidas como supernovas, e eventos na vizinhança de objetos exóticos capazes de criar campos gravitacionais enormes, como os buracos negros e as estrelas de nêutrons, concentrações de matéria do tamanho de uma montanha, mas com uma massa semelhante à do Sol.

Muito possivelmente, a resposta virá de uma combinação desses candidatos e, talvez, de alguns outros, ainda mais exóticos. Os raios cósmicos mais energéticos necessitam de um mecanismo de geração que ainda não foi descoberto. Alguns especulam que eles sejam relíquias dos primeiros instantes de existência do Universo, ou seja, que eles surgiram logo após o Big Bang. Seja como for, o mana cósmico alimentará, por muito tempo, a imaginação dos astrofísicos.

domingo, 16 de dezembro de 2001

O misterioso spin e as limitações da linguagem

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Em inglês, a palavra "spin" significa, entre outras coisas, movimento rotatório. Em física, usamos a palavra para designar a rotação intrínseca de partículas subatômicas, como o elétron, o próton etc. Essa representação do spin como uma rotação intrínseca de uma partícula é extremamente problemática, pois ela pressupõe que a partícula gira em torno de um eixo, como um pião ou um planeta. "E qual o problema com isso?", perguntaria o leitor. "Afinal, não podemos imaginar as partículas como sendo planetas minúsculos, girando em torno de um eixo?" Infelizmente, não.

Eis duas razões: primeiro, algumas partículas, ao menos dentro das distâncias com que podemos estudá-las hoje (em torno de um milésimo de trilionésimo de centímetro), não têm uma estrutura espacial, aparecendo como um ponto. O elétron, que gira em torno do núcleo, é um exemplo. Como visualizar o movimento giratório de um ponto, que não tem volume espacial? Segundo, todas as partículas respeitam o que na mecânica quântica, a parte da física que estuda as propriedades dos átomos e das partículas subatômicas, é conhecido como a dualidade onda-partícula. De acordo com essa dualidade, não podemos dizer a priori se uma entidade subatômica, seja ela um elétron, um próton ou um fóton (partículas que compõem a radiação eletromagnética, como a luz visível), é uma partícula localizada em um ponto ou uma pequena região do espaço ou uma onda, espalhada pelo espaço. E como podemos visualizar a rotação intrínseca de uma onda, o seu spin? Essas questões fazem com que o spin seja uma das propriedades mais misteriosas da física quântica.

Na verdade, o problema desaparece ao usarmos a matemática para descrever as propriedades dos átomos e das partículas subatômicas. O mundo do muito pequeno pertence a uma realidade física muito distinta da que presenciamos em nosso cotidiano, tornando delicado o uso de certas analogias tiradas de objetos usuais, como piões e planetas. O espanto causado pelas descobertas da mecânica quântica não foi nada menor para os seus próprios inventores, durante as três primeiras décadas do século 20.

O desenvolvimento da teoria foi quase que forçado goela abaixo por descobertas que ocorreram em laboratório e que não podiam ser explicadas através da consagrada física clássica, baseada nas idéias de Newton e outros. Físicos como Albert Einstein, Niels Bohr, Max Planck, Werner Heisenberg, Erwin Schrodinger, Wolfgang Pauli e muitos outros criaram uma nova linguagem matemática, baseada em princípios físicos extremamente exóticos, para poder explicar o que se estava vendo em laboratório. E uma das coisas que se via era a existência das chamadas linhas espectrais, a radiação (às vezes visível) emitida por elementos químicos quando aquecidos. O interessante era a individualidade desses espectros, um para cada elemento, como se eles fossem impressões digitais. O hidrogênio tem o seu espectro, o hélio também, o ouro outro, e assim por diante.

Em 1913, Bohr mostrou que o espectro do hidrogênio podia ser entendido se seu átomo tivesse um próton no núcleo e um elétron girando em torno dele em órbitas separadas, como degraus de uma escada. Cada órbita tem uma energia fixa. Quando o elétron "pula" de uma órbita mais alta para uma mais baixa, ele emite radiação (fótons) revelando o seu espectro. E átomos maiores, como o hélio, com dois prótons e dois elétrons, ou o urânio, com 92 prótons? Para entender o espectro desses átomos, ficou claro que no máximo dois elétrons podiam ocupar cada órbita, tendo a mesma energia. O elétron é bastante anti-social e não gosta de companhia: dois é bom e três já é demais. Esse princípio é conhecido como princípio de exclusão de Pauli. A razão para que apenas dois elétrons ocupem a mesma órbita é atribuída ao spin, que só pode ter dois valores, positivo e negativo, como um pião, que só pode rodar nos sentidos horário e anti-horário.

Portanto, cada órbita atômica pode conter no máximo dois elétrons com spins opostos. Eis a imagem clássica dos piões de volta. A grande diferença é que um pião pode rodar com qualquer velocidade e em qualquer ângulo de inclinação com a vertical. Já a rotação do elétron é limitada a duas opções, isto é, é quantizada nos dois valores do seu spin. Temos de imaginar um "pião quântico".

A origem do spin permanece misteriosa. E o fato de ele ser "quantizado" também. Esse exemplo mostra que a ciência não precisa ter todas as respostas para ser eficiente. Ao propor a existência do spin, os físicos explicaram os resultados experimentais com grande sucesso. Possivelmente, um dia será a vez do spin.

domingo, 9 de dezembro de 2001

Definindo o ser humano

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No dia 25 de novembro, um grupo de médicos e cientistas norte-americanos anunciou haver conseguido, pela primeira vez na história, clonar um embrião humano a partir da fusão de uma única célula adulta com um óvulo. Após algumas horas, o clone chegou a conter seis células, antes de cessar o seu desenvolvimento. Digo "cessar o seu desenvolvimento" porque não me é claro como expressar o fato de que o conjunto de seis células parou de se reproduzir. Será que devo dizer que o embrião morreu?

Esse assunto é extremamente controverso e difícil de ser tratado. Não é óbvio para a maioria dos cientistas que uma massa de seis células deva ser chamada de "embrião" ou que essa massa "morra" ao cessar a sua reprodução. O que ficou claro é que vários grupos privados estão tentando clonar seres humanos, ignorando o debate sobre as consequências éticas de suas experiências.

Imediatamente após a Advanced Cell Technology (ACT, ou "Tecnologia Celular Avançada") anunciar sua descoberta, várias outras companhias afirmaram também já ter obtido "embriões". Por exemplo, cientistas da companhia Clonaid, da Califórnia, que, entre outras coisas, defende a existência de Ovnis, afirmam ter conseguido chegar a clones com oito células, duas a mais do que os cientistas da ACT. Segundo a porta-voz da Clonaid, assim que a patente de seus métodos for autenticada, a companhia divulgará os resultados publicamente.
O italiano Severino Antinori afirmou ter clonado um bebê que nascerá até o Natal. O simbolismo de ter o primeiro bebê clonado nascendo no Natal não poderia ser mais irresponsável.

À parte toda a controvérsia ética sobre a clonagem de seres humanos, existe também a controvérsia científica: os resultados da ACT mostram o quanto é difícil clonar embriões humanos. Dos 19 experimentos, apenas 3 se desenvolveram além de uma célula, e nenhum passou de seis. O objetivo dos cientistas da ACT, como o da maioria dos cientistas que trabalham nessa área, não é a clonagem de um ser humano, mas o desenvolvimento de embriões até o estágio em que possam fornecer as células-tronco, capazes de se transformar nos vários órgãos do corpo humano. Para tal, basta que o conjunto de células chegue a formar um blastocisto, embrião com algumas centenas de células. Apesar de os resultados da ACT estarem longe de atingir seu objetivo, estimularam um debate ético e político sério.

As linhas divisórias do conflito são bastante claras; líderes religiosos e políticos conservadores condenam qualquer clonagem envolvendo células humanas, alegando que extrair células-tronco de um blastocisto é equivalente a assassinar um ser humano. Ou seja, que um conjunto de 150 células tem os mesmos direitos legais à vida de um feto de três meses ou de um ser adulto.
Os mais liberais alegam que os benefícios médicos do uso dos órgãos criados a partir das células-tronco justificam a clonagem de embriões humanos. Isso não significa que esses grupos sejam a favor da clonagem de seres humanos: os blastocistos são destruídos no processo de extração das células-tronco. A questão é se eles têm ou não direito à vida.

A ciência nos força a repensar nossos valores morais e éticos. A pílula foi e é vista com desdém pela Igreja Católica, assim como o aborto, mas as pessoas usam a pílula e praticam abortos. Apesar da resistência contra o uso da energia atômica e contra a proliferação de armas nucleares, centenas de usinas operam hoje em dezenas de países, enquanto o estoque de bombas é suficiente para aniquilar a vida sobre a Terra diversas vezes.

Meu ponto é que a censura de certos grupos, sejam liberais ou conservadores, jamais vai conter o desenvolvimento da ciência, especialmente quando atende a interesses políticos ou comerciais. A clonagem de embriões humanos, ao menos para a extração de células-tronco, é uma questão de tempo. Os tecidos e órgãos obtidos dessas células vão salvar ou melhorar a vida de milhões de pessoas que sofrem de mal de Parkinson, Alzheimer e outras doenças sem cura.

Já a clonagem de um ser humano completo é muito mais complexa, clinicamente inútil, e não parece óbvio que possa ser atingida a curto prazo. Certamente, não antes do Natal. Cabe aos cientistas e à sociedade criar um diálogo aberto para que desenvolvimentos nessa área não ocorram em segredo. Porque me parece que eles são inevitáveis.

domingo, 2 de dezembro de 2001

Água, suor e vapor

Como verificamos a cada vez que nos aventuramos na cozinha, a maioria das substâncias existe em três fases distintas: sólida, líquida, e gasosa. Nada melhor do que a água para ilustrar o fato de que uma substância em uma determinada fase pode se transformar em uma das outras quando submetida a uma mudança externa, de temperatura ou pressão, por exemplo.
Essa mudanças entre as diferentes fases são conhecidas como transições de fase, ocorrendo a temperaturas e pressões características de cada substância. Ao nível do mar, a água ferve a 100C. Mas, a uma altitude de 3.000 metros, a água ferve a apenas 90C.

Esse fato é bem conhecido daqueles que acampam em montanhas e tentam ferver água para fazer um chá ou um ovo duro. A altitudes elevadas, o chá nunca vai ser muito quente e o ovo duro vai demorar bem mais do que três minutos para cozinhar. Essa mudança na temperatura de ebulição da água se deve à queda da pressão atmosférica a altas altitudes. No nível molecular, as três fases são caracterizadas pela competição entre a tendência das moléculas a se atrair quimicamente e a sua energia de agitação térmica, que tende a destruir as ligações químicas existentes entre elas.

Na fase gasosa, as altas temperaturas impedem que as moléculas se liguem, de modo que elas se movimentam livremente, colidindo ocasionalmente entre si. Na fase líquida, a queda de temperatura permite que as moléculas se liguem umas às outras, mas ainda mantendo uma certa liberdade, sem criar um padrão espacial fixo. Já na fase sólida, as moléculas atraem-se fortemente, formando estruturas espaciais rígidas, que muitas vezes exibem uma belíssima simetria cristalina.

Imagine a superfície de um líquido. Moléculas do líquido atraem-se quimicamente, mas também são agitadas devido à sua energia térmica. De vez em quando, uma molécula recebe empurrões de suas vizinhas, que são fortes o suficiente para expeli-la da superfície do líquido. Quanto mais alta a temperatura, maior a agitação térmica das moléculas e mais fácil é que uma molécula escape.

Quando isso acontece, a molécula leva consigo parte da energia térmica e o líquido resfria. Aliás, é esse o mecanismo usado pelo corpo humano quando a sua temperatura aumenta: o suor que evapora da pele leva consigo parte do calor, causando uma queda de temperatura. Portanto, para ferver um líquido é preciso adicionar uma boa quantidade de calor, de modo a aumentar a sua temperatura mesmo que algumas de suas moléculas consigam escapar. O líquido começa a ferver quando a pressão causada por essas moléculas que escapam se iguala à pressão atmosférica, que as força de volta ao líquido.

Mais especificamente, um líquido ferve quando bolhas de vapor aparecem em seu interior e conseguem escapar de sua superfície. Uma bolha surge quando várias moléculas do líquido conseguem escapar de suas vizinhas, criando uma cavidade com as moléculas livres típicas da fase gasosa.

Como o vapor é menos denso que o líquido, a bolha irá subir até a superfície do líquido e tentar escapar, muitas vezes crescendo devido à adesão de mais moléculas de vapor. Se a pressão do vapor for maior do que a pressão atmosférica, a bolha conseguirá escapar e o líquido entrará em ebulição. Caso contrário, a bolha de vapor será comprimida até desaparecer. Voltando à montanha, a altas altitudes a atmosfera é mais rarefeita, exercendo uma pressão menor sobre a superfície do líquido. Com isso, fica mais fácil para as bolhas de vapor escaparem, explicando por que o líquido ferve a temperaturas mais baixas.

Mas ficou faltando um detalhe nessa descrição da ebulição: as moléculas não só escapam da superfície do líquido como podem também retornar a ela. Existe uma troca constante de moléculas entre as fases líquida e gasosa, como se a superfície do líquido fosse um aeroporto com aviões pousando e decolando o tempo todo: se um número maior de moléculas deixar a superfície, o líquido está evaporando; caso contrário, é o vapor que está se condensando.

O que determina se mais moléculas condensam ou evaporam é a umidade relativa, velha conhecida dos boletins meteorológicos. Se a umidade relativa for 100%, existe um equilíbrio entre líquido e vapor. Se for menor, a evaporação ganha. E, se for maior, ganha a condensação. É por isso que quando a umidade relativa do ar é alta, o suor "gruda" no corpo. Poucas moléculas evaporam. O jeito é ligar o ventilador, forçando as moléculas a abandonar a superfície do corpo e levando o calor com elas.