domingo, 9 de dezembro de 2001

Definindo o ser humano

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No dia 25 de novembro, um grupo de médicos e cientistas norte-americanos anunciou haver conseguido, pela primeira vez na história, clonar um embrião humano a partir da fusão de uma única célula adulta com um óvulo. Após algumas horas, o clone chegou a conter seis células, antes de cessar o seu desenvolvimento. Digo "cessar o seu desenvolvimento" porque não me é claro como expressar o fato de que o conjunto de seis células parou de se reproduzir. Será que devo dizer que o embrião morreu?

Esse assunto é extremamente controverso e difícil de ser tratado. Não é óbvio para a maioria dos cientistas que uma massa de seis células deva ser chamada de "embrião" ou que essa massa "morra" ao cessar a sua reprodução. O que ficou claro é que vários grupos privados estão tentando clonar seres humanos, ignorando o debate sobre as consequências éticas de suas experiências.

Imediatamente após a Advanced Cell Technology (ACT, ou "Tecnologia Celular Avançada") anunciar sua descoberta, várias outras companhias afirmaram também já ter obtido "embriões". Por exemplo, cientistas da companhia Clonaid, da Califórnia, que, entre outras coisas, defende a existência de Ovnis, afirmam ter conseguido chegar a clones com oito células, duas a mais do que os cientistas da ACT. Segundo a porta-voz da Clonaid, assim que a patente de seus métodos for autenticada, a companhia divulgará os resultados publicamente.
O italiano Severino Antinori afirmou ter clonado um bebê que nascerá até o Natal. O simbolismo de ter o primeiro bebê clonado nascendo no Natal não poderia ser mais irresponsável.

À parte toda a controvérsia ética sobre a clonagem de seres humanos, existe também a controvérsia científica: os resultados da ACT mostram o quanto é difícil clonar embriões humanos. Dos 19 experimentos, apenas 3 se desenvolveram além de uma célula, e nenhum passou de seis. O objetivo dos cientistas da ACT, como o da maioria dos cientistas que trabalham nessa área, não é a clonagem de um ser humano, mas o desenvolvimento de embriões até o estágio em que possam fornecer as células-tronco, capazes de se transformar nos vários órgãos do corpo humano. Para tal, basta que o conjunto de células chegue a formar um blastocisto, embrião com algumas centenas de células. Apesar de os resultados da ACT estarem longe de atingir seu objetivo, estimularam um debate ético e político sério.

As linhas divisórias do conflito são bastante claras; líderes religiosos e políticos conservadores condenam qualquer clonagem envolvendo células humanas, alegando que extrair células-tronco de um blastocisto é equivalente a assassinar um ser humano. Ou seja, que um conjunto de 150 células tem os mesmos direitos legais à vida de um feto de três meses ou de um ser adulto.
Os mais liberais alegam que os benefícios médicos do uso dos órgãos criados a partir das células-tronco justificam a clonagem de embriões humanos. Isso não significa que esses grupos sejam a favor da clonagem de seres humanos: os blastocistos são destruídos no processo de extração das células-tronco. A questão é se eles têm ou não direito à vida.

A ciência nos força a repensar nossos valores morais e éticos. A pílula foi e é vista com desdém pela Igreja Católica, assim como o aborto, mas as pessoas usam a pílula e praticam abortos. Apesar da resistência contra o uso da energia atômica e contra a proliferação de armas nucleares, centenas de usinas operam hoje em dezenas de países, enquanto o estoque de bombas é suficiente para aniquilar a vida sobre a Terra diversas vezes.

Meu ponto é que a censura de certos grupos, sejam liberais ou conservadores, jamais vai conter o desenvolvimento da ciência, especialmente quando atende a interesses políticos ou comerciais. A clonagem de embriões humanos, ao menos para a extração de células-tronco, é uma questão de tempo. Os tecidos e órgãos obtidos dessas células vão salvar ou melhorar a vida de milhões de pessoas que sofrem de mal de Parkinson, Alzheimer e outras doenças sem cura.

Já a clonagem de um ser humano completo é muito mais complexa, clinicamente inútil, e não parece óbvio que possa ser atingida a curto prazo. Certamente, não antes do Natal. Cabe aos cientistas e à sociedade criar um diálogo aberto para que desenvolvimentos nessa área não ocorram em segredo. Porque me parece que eles são inevitáveis.

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