domingo, 25 de agosto de 2013

O poder criativo da imperfeição

Na semana passada, escrevi sobre como nossas teorias científicas sobre o mundo são aproximações de uma realidade que podemos compreender apenas em parte. Nossos instrumentos de pesquisa, que tanto ampliam nossa visão de mundo, têm necessariamente limites de precisão. Não há dúvida de que Galileu, com seu telescópio, viu mais longe do que todos antes dele.
Também não há dúvida de que hoje vemos muito mais longe do que Galileu poderia ter sonhado em 1610. E certamente, em cem anos nossa visão cósmica terá sido ampliada de forma imprevisível.
No avanço do conhecimento científico, vemos um conceito que tem um papel essencial: simetria. Já desde os tempos de Platão, a noção de que existe uma linguagem secreta da Natureza, uma matemática por trás da ordem que observamos, teve um papel fundamental.
Platão --e, com ele, muitos matemáticos até hoje-- acreditava que os conceitos matemáticos existiam em uma espécie de dimensão paralela, acessível apenas através da razão. Nesse caso, os teoremas da matemática (como o famoso teorema de Pitágoras) existem como verdades absolutas, que a mente humana, ao menos as mais aptas, pode ocasionalmente descobrir. Para os Platônicos, a matemática é uma descoberta e não uma invenção humana.
O matemático Gregory Chaitin, que defende esta posição, sem muita paixão, também a acusa de ser uma espécie de religião, um resquício de uma teologia Tomista onde a fé é buscada no estudo da "mente de Deus".
Hoje, a busca por uma teoria final da Natureza, ao menos no que diz respeito às forças que agem nas partículas fundamentais da matéria, é a encarnação moderna do sonho platônico de um código secreto da Natureza. As teorias de unificação, como são chamadas (veja a coluna da semana passada), visam justamente isso, formular todas as forças como manifestações de uma única, com sua simetria abrangendo todas as outras.
Culturalmente, é difícil não traçar uma linha entre as fés monoteístas e a busca por uma unidade da Natureza nas ciências. Este sonho, porém, é impossível de ser realizado.
Primeiro, porque nossas teorias são sempre temporárias, passíveis de ajustes e revisões futuras. Não existe uma teoria que podemos dizer final, pois nossas explicações mudam de acordo com o conhecimento acumulado que temos das coisas.
Um século atrás, um elétron era algo muito diferente do que é hoje. Em cem anos, será algo muito diferente outra vez. Não podemos saber se as forças que conhecemos hoje são as únicas que existem.
Segundo, por que nossas teorias e as simetrias que detectamos nos padrões regulares da Natureza são em geral aproximações. Não existe uma perfeição no mundo, apenas em nossas mentes. De fato, quando analisamos com calma as "unificações" da física vemos que são aproximações que funcionam apenas dentro de certas condições.
O que encontramos são assimetrias, imperfeições que surgem desde as descrições das propriedades da matéria até às das moléculas que determinam a vida, as proteínas e os ácidos nucleicos (RNA e DNA). Por trás da riqueza que vemos nas formas materiais, encontramos a força criativa das imperfeições.

domingo, 18 de agosto de 2013

Bóson de Higgs e simetrias

Passados três anos da publicação do meu livro "Criação Imperfeita", achei oportuno revisitar, hoje e esporadicamente, alguns de seus temas tendo em vista novas descobertas da física e da astronomia.
Para os leitores que não conhecem a obra, nela essencialmente proponho uma nova estética da natureza, baseada na imperfeição e nas assimetrias. Essa noção vai contra a ideia dominante das ciências naturais, onde a simetria tem uma papel fundamental.
Claro, isso sempre continuará a ser o caso, mas o que muda é a interpretação dessas simetrias, que deixam de ser fundamentais e passam a ser ferramentas que usamos na descrição do mundo.
Tomemos então nossas teorias que descrevem as partículas de matéria. Elas também são aproximações, descrições matemáticas dos dados que coletamos no laboratório. Nessas teorias, vemos que existem certos padrões de ordem, regularidades nas propriedades das partículas de matéria.
Em geral, essas regularidades são descritas por simetrias. Conhecemos quatro forças que chamamos de "fundamentais". Esse adjetivo, a meu ver, é equivocado, pois não sabemos se existem outras forças na natureza. As quatro que conhecemos são as que podemos medir com nossos instrumentos. Possivelmente, não são as únicas. De qualquer forma, cada força tem uma ou mais simetrias associadas a ela.
Das quatro forças, duas são familiares, a gravidade e o eletromagnetismo. As outras duas agem dentro do núcleo atômico, as forças nucleares forte e fraca.
Em julho de 2012, cientistas do laboratório europeu Cern anunciaram a descoberta de uma nova partícula, o famoso bóson de Higgs. Sua importância é imensa. Ela é a partícula que dá massa a todas as outras, com exceção do fóton, a partícula de luz, que não tem massa. A partícula Higgs havia sido prevista nos anos 60, caso as forças fraca e eletromagnética pudessem ser descritas conjuntamente. O fato de a partícula Higgs ter sido descoberta confirma essa unificação de forma espetacular. Porém, precisamos ter cuidado com a interpretação dessa unificação. O que ela quer dizer?
Na prática, significa que as duas forças comportam-se de forma semelhante acima de certas energias. Podemos investigar o comportamento da matéria a energias diferentes. Você pode fazer isso atirando uma laranja contra a parede com velocidades diferentes. Quanto maior a velocidade, maior a energia do impacto e mais você "descobre" sobre a composição da fruta.
Quando cientistas investigam como as forças fraca e eletromagnética comportam-se a energias muito altas, veem uma semelhança. Na descrição da teoria, as duas forças aparecem juntas. Mas não como uma única força. A simetria que foi descoberta é uma aproximação. (Físicos expressam isso dizendo que "a teoria tem duas constantes de acoplamento", ou seja, as duas forças não perdem a sua individualidade.)
Toda simetria na natureza é uma aproximação. A "unificação" das forças fraca e eletromagnética não reúne as duas forças em uma única simetria. Mesmo que seja triunfo da inventividade humana --tanto a teoria quanto a sua verificação experimental--, ela não é uma unificação real.

domingo, 11 de agosto de 2013

A ideia que redefiniu o mundo

O mês passado marcou o centenário da publicação do modelo do átomo pelo físico dinamarquês Niels Bohr, com seus famosos saltos quânticos. Desde então, e de forma inesperada, a física quântica tomou conta do mundo, dominando as transformações tecnológicas que definem grande parte da história do século 20: radioatividade e energia nuclear, bombas atômicas e termonucleares, transistores e semicondutores, lasers, tecnologias digitais, como as usadas em seu celular ou laptop, CDs, DVDs, enfim, os produtos que usamos no nosso dia-a-dia e que são todos derivados das propriedades da matéria ao nível atômico e subatômico.

O interessante é que o modelo atômico de Bohr é meio absurdo, uma colagem de ideias clássicas e quânticas, fruto da intuição genial do único cientista capaz de confrontar Einstein. Bohr imaginou o átomo como um minissistema solar, com o próton no centro e o elétron circulando à sua volta. Seu modelo servia apenas para o átomo mais simples que existe, o de hidrogênio. Nisso, Bohr seguiu o protocolo dos físicos, de sempre buscar um problema mais fácil para começar.

Bohr sabia que o átomo não era um simples sistema solar: planetas giram em torno do Sol por bilhões de anos praticamente sem perder energia; já o elétron cairia rapidamente no próton, ao menos segundo a física clássica, que descrevia como cargas elétricas opostas se atraem.

Bohr teve que inventar para o átomo novas regras que necessariamente iriam contra a física clássica. Corajosamente, apresentou sua ideia sugerindo algo inusitado: o elétron só poderia estar em algumas órbitas, separadas no espaço como os degraus de uma escada. Da mesma forma que você não pode ficar entre dois degraus, o elétron não pode ficar entre duas órbitas. Pode apenas pular de uma para outra, como nós pulamos entre degraus de uma escada. Esses são os famosos saltos quânticos.

E o que determina essas órbitas? Mais uma vez, encontramos a incrível intuição de Bohr: como os elétrons giram em torno do próton em órbitas circulares, eles têm o que chamamos de "momento angular", uma quantia que mede a intensidade de movimentos circulares. (Por exemplo, quando uma patinadora no gelo gira com os braços estendidos e depois encolhe os braços sua velocidade de giro aumenta --essa é uma consequência da conservação de momento angular.)

Bohr sugeriu que o momento angular do elétron devesse ser "quantizado", isto é, só podia ter certos valores discretos, dados pelos números inteiros (n=1, 2, 3...). Se L é o momento angular, a fórmula de Bohr é L = n (h cortado), onde h cortado é a famosa constante de Plank, que o físico alemão havia introduzido em 1900 e que aparece em todos os processos quânticos.

A sacada genial de Bohr foi misturar conceitos da física clássica com a nova física quântica, criando uma teoria híbrida do átomo. Com ela, Bohr resolveu um antigo mistério da física, relacionado com a radiação que um elemento químico emite quando aquecido, que aparece apenas em algumas cores (ou melhor, frequências).

Os pulos dos elétrons entre as órbitas são acompanhados da emissão e absorção de "fótons", as partículas de luz que Einstein havia proposto em 1905. A teoria de Bohr capturou a essência dos átomos, suas órbitas discretas, explicando suas emissões ou espectro quantizado. Uma nova física para um novo século, que continua nos surpreendendo até hoje.

domingo, 4 de agosto de 2013

O difícil problema da consciência

Como um apanhado de 80 a 100 bilhões de neurônios gera a experiência que temos de sermos nós?

Gostaria de retornar a um assunto que deixa muita gente perplexa, inclusive eu: a natureza da consciência e como ela "surge" no nosso cérebro. Se você acha que sabe a resposta, provavelmente não entende a questão. Nenhum cientista ou filósofo sabe como respondê-la.

Existem vários modos de formular a questão, mas eis um: como o cérebro, um apanhado de 80 a 100 bilhões de neurônios, gera a experiência que temos de sermos nós?

O filósofo australiano David Chalmers chama a questão de "o difícil problema da consciência". Faz isso para diferenciá-lo dos demais problemas que poderão ser resolvidos pela pesquisa nas ciências neurocognitivas e neurocomputacionais. Mesmo que isso possa demorar um século, o nível de dificuldade não se compara ao do problema que, alguns especulam, é insolúvel.

Eis alguns dos problemas que Chalmers considera fáceis: a habilidade de discriminar, categorizar e reagir a estímulos externos; a integração de informação sensorial; o controle intencional de comportamento; a diferença entre dormir e estar acordado.

Essas questões são localizadas, passíveis de uma descrição reducionista de como funcionam partes do cérebro, usando a conexão entre neurônios e grupos de neurônios.

Henry Markram, na Suíça, recebeu uma bolsa de 1 bilhão de euros para liderar o Projeto do Cérebro Humano, uma colaboração de centenas de cientistas que visa criar uma simulação do cérebro humano. Para tal, eles precisarão de computadores capazes de bilhões de bilhões de operações por segundo, um fator cerca de 50 vezes maior do que os supercomputadores mais rápidos do mundo são capazes hoje.

Markram e os "computacionalistas" acreditam que, se o nível de informação da simulação for suficientemente detalhado, incluindo desde o trânsito de neurotransmissores entre sinapses até as milhares de conexões interneuronais em partes diferentes do cérebro, a simulação funcionará como um cérebro humano dotado de uma consciência tão complexa quanto a nossa. Markram acredita que o problema "difícil" não existe: tudo pode ser obtido de neurônio a neurônio.

Apesar de concordar com a relevância científica do projeto de Markram, não vejo como uma simulação poderá criar uma entidade com consciência semelhante à humana. Talvez crie algum outro tipo de consciência, mas não a nossa.

Outro filósofo, Thomas Nagel, mostrou que somos incapazes de perceber a experiência consciente de outro cérebro. Como exemplo, usou os morcegos, que constroem sua realidade a partir da ecolocalização.
Usando ideias do linguista Noam Chomsky, que defende a limitação cognitiva de cada cérebro (por exemplo, um rato jamais poderá falar), Nagel mostra que não podemos entender o que é "ser" um morcego.


Essa é outra versão do problema de Chalmers, que o filósofo Colin McGinn chama de "clausura cognitiva". Não existe um modo de capturar a essência do consciente, pois este não se presta a uma análise metódica das propriedades do cérebro: está em toda a parte e em nenhuma parte. Talvez, McGinn especula, uma inteligência mais avançada saiba responder à pergunta. Mas nós, simulações ou não, temos que viver com o mistério.