sábado, 26 de dezembro de 2009

A elusiva matéria escura




Em ciência, só sabemos o que podemos medir


Na semana retrasada, cientistas do experimento CDMS, localizado numa mina abandonada no estado de Minnesota, nos EUA, divulgaram os esperados resultados de um experimento que realizam. Seu objetivo é capturar exemplares da elusiva matéria escura, que, estima-se, compõe aproximadamente 84% da matéria cósmica. Apesar de a sua existência ter sido conjeturada no início da década de 1930, nenhuma detecção foi realizada até agora.
 
A dificuldade é que esse tipo de matéria não tem nada a ver com a matéria comum, da qual somos feitos nós e tudo aquilo que vemos à nossa volta e nos céus. Como sabemos, a matéria normal é feita de átomos, e estes, de elétrons, prótons e nêutrons. Essas três partículas interagem entre si de modos diversos, devido à ação de quatro forças fundamentais: a gravidade, o eletromagnetismo e as forças nucleares forte e fraca, que só se manifestam a distâncias nucleares. "Detectar" uma partícula significa medir o seu efeito em outras, o que ocorre através de uma ou mais dessas quatro forças. Em geral, uma detecção envolve uma colisão entre duas ou mais partículas.
 
Essa colisão transfere energia e momento de uma partícula à outra, e essa transferência pode ser medida. Nas colisões normais, partículas são atraídas ou repelidas por uma ou mais das forças, especialmente a eletricidade e as forças nucleares forte e fraca. O desafio com a detecção de partículas de matéria escura é que sentimos sua presença apenas através da sua massa.
 
E os efeitos da gravidade são extremamente pequenos em escalas atômicas. Sabemos que a matéria escura existe devido ao seu efeito gravitacional sobre a matéria comum: vemos objetos luminosos se comportarem como se estivessem respondendo à atração gravitacional de coisas invisíveis. Por exemplo, galáxias giram mais rapidamente do que deveriam se toda a sua massa fosse apenas aquela feita de átomos. Elas são envoltas numa espécie de véu de matéria escura que modifica a sua rotação.
 
É esse véu que nos fornece as partículas de matéria escura que podem ser detectadas na Terra. À medida que viajamos pelo espaço, atravessamos o véu de matéria escura. Em geral, suas partículas passam direto pela Terra, como se fossem fantasmas. Muito raramente, uma delas pode se chocar com a matéria comum e transferir a sua energia e o seu momento.
 
O laboratório no fundo da mina em Minnesota contém detectores resfriados a baixíssimas temperaturas para eliminar todo o tipo de vibração. Estar nas entranhas da Terra ajuda a filtrar outras partículas indesejadas que também interagem fracamente com a matéria. O desafio é que, mesmo assim, as colisões com as hipotéticas partículas são muito raras, apenas algumas por ano. E elas devem ser diferenciadas de colisões com nêutrons.
 
Apesar da enorme expectativa, a declaração dos cientistas do CDMS foi muito cautelosa; apenas dois sinais suspeitos, que poderiam ser matéria escura, mas que têm também uma probabilidade razoável de ser apenas dois nêutrons comuns.

Devo congratular os cientistas por terem resistido à tentação demasiado humana de inflar seus resultados. Quando se dedica anos de uma carreira a um experimento, é muito difícil não se deixar levar pela empolgação e pela pressão de mostrar resultados revolucionários. A detecção é inconclusiva, sendo útil para limitar as massas e as interações das partículas candidatas. Mas a busca continua, os detectores estão sendo refinados e, no ano que vem terão maior precisão. Talvez a próxima declaração do grupo seja mais positiva. Em ciência só sabemos o que podemos medir.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Is Time In A Hurry?

A competitor trains ahead of the Artistic Gymnastics World Championships 2009 at the 02 Arena, in east London, on October 12, 2009. Photo: CARL DE SOUZA/AFP/Getty Images)
Time keeps on flipping into the future. (Carl de Souza / AFP/Getty Images)


By Marcelo Gleiser

Well, 2009 is almost over. To me at least, and I bet to most of you, it went way too fast. On average, it was a year like any other, with some new things to celebrate and others to lament. (I'll abstain from listing them. Each person has her own list.) But it's hard to shake off the feeling that everything happened faster, that time seems to be in a hurry to get somewhere. Sometimes, people ask me if it's possible, from a physics perspective, for time to be passing faster. It can't.

According to the theory of relativity, time can slow down but not speed up. There are a few ways to do this. For example, you may move faster than other people. If you get to speeds close to the speed of light, time will slow down for you relative to the others. Hard to do, as the speed of light is a whopping 186,400 miles per second, in round numbers. Or, you may go live on the surface of the Sun. Time there would tick slower than here as well. But that's really not what people have in mind when they wonder about time. The question is about our psychological perception of time. And I am sure many of you would agree that sometimes it does feel like time is on a roller coaster.

Time is a measure of change. If nothing happens, time is unnecessary. So, at a personal level, we perceive the passage of time in the changes that happen around and within us. What's interesting is that--as anyone who has tried to meditate knows--even if you shut off all your senses, time keeps ticking away. As our thoughts unfold, our brains give us time. To "quiet the chatter" is the big challenge for going deeper into a meditative state, to be in the now.

The passage of time is about the ordering of events, things that happen one after another. Numbers, some say, are devices that were created to help us order time. Maybe, although counting chicks is also very useful if you are a hen. However, if we are to order events, we must remember them. Ergo, the perception of time is deeply related to memory. If our memories were to be erased, we would revert to the wonder of babyhood, where time extends forever. The more we have to learn, the more memories we make, the slower time passes. Routine, sameness, makes time speed up. Since routine is not usually equated with fun, this seems to go contrary to the "time flies when you're having fun" dictum. What's going on here?
The answer may be in the level of mindful engagement, that is, in how tuned-in your brain is to what you are doing. Newness, as in fun newness, works as a flood of information and places the focus on the immediate. There is no ordering between events yet and not sense of the passage of time. I have felt this disengagement when lost in a calculation for hours or trying out a new trout stream with my fly rod. This is the opposite of routine, where new memories are not being made and the now is all there is. But maybe someone will prove me wrong.

In physics, things are simpler. Time is a fundamental quantity, something that cannot be defined in terms of anything else. There are some issues with this, that we will address some other time. (Sorry...) The second is the universal unit, and it's defined as 9,192,631,770 oscillations between two levels of the cesium-133 atom. Very different from the tick-tack of old mechanical clocks, which are not very reliable.

Einstein had a colloquial definition of the relativity of time: by the side of a pretty girl an hour feels like a second; if you burn your hand on the stove, a second feels like an hour. His special theory of relativity showed that the simultaneity of two events depends on how they are observed: what may be simultaneous for one observer will not be for another moving with respect to the first. Be that as it may, even in physics the ordering of time is essential: that's causality, causes preceding effects so that the present vanishes into the past and the future becomes the present.

At the cosmic level, there is a well-defined direction of time: the expansion of the universe, which has been going on for 13.7 billion years, pointing resolutely forward. Link it to our own passage through life, and we have a well-defined asymmetry of time, what's sometimes called time's arrow . There is not much we can do to escape this at the physical level. But at the psychological level, to slow down time we have to engage our minds, create more memories, absorb knowledge. Perhaps I will leave my guitar aside for a while and start playing the piano.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Crédito planetário


Só durante guerras já se viu um nível de mobilização similar ao necessário agora



Eis como a globalização afeta o nosso planeta. Talvez o resultado mais importante da conferência de Copenhagen tenha sido a ser a autorização de crédito financeiro para os países que controlarem o desmatamento acelerado. (Estou supondo que a resolução vai ser aprovada, embora ao escrever estas linhas ainda não seja oficial.) Se uma indústria não conseguir atingir os limites definidos nas emissões de gases poluentes, pode comprar crédito investindo em programas de redução de emissão de carbono em outros países.

 De certa forma, a emissão de gás carbônico (CO2) passa a ser uma espécie de moeda global. Finalmente ficou claro, no nível de legislação mundial, que a poluição é um problema global: florestas são "esponjas" de CO2 e quanto mais área planetária for coberta por elas melhor. O corte das florestas, com a consequente perda de superfície verde e mais a queima da madeira, equivale a aproximadamente 20% da emissão de CO2 global. Para o Brasil, isso pode ser um excelente incentivo para que se atinja um equilíbrio razoável entre o desmate da Amazônia e as necessidades da população local. É um passo no rumo certo.

A situação é muito mais séria do que parece. Com o clima, as mudanças são tão graduais que, em escalas de tempo a que estamos acostumados, de décadas, parece que nada está acontecendo. Por um lado isso é bom, pois mostra que nosso planeta não é sujeito à instabilidades climáticas em períodos curtos de tempo. Ainda bem! Caso contrário, seria muito difícil sobre viver aqui. Por outro lado isso é ruim, pois os grupos políticos e industriais que não estão interessados em controlar o nível de emissões ou o desmatamento, criam confusão e polêmica com facilidade, tornando uma questão que é essencialmente científica numa questão política.

Esse foi o caso do governo de George W. Bush, que a presente administração está tentando remediar. Parece que Obama tenha feito a esta altura alguma proposta unilateral de controle de emissões nos EUA, tentando assim demonstrar que o barômetro lá está mudando. Espero que ao lermos essa coluna no domingo, as notícias sejam boas. Minha previsão é de que haverá uma proposta oficial de cortes no nível de emissão não só nos EUA, mas em outros países como a China, o Brasil e a Índia, mas estará ainda longe do que é recomendado para reverter a inércia atual do aquecimento global.

O único modo para fazer as coisas andarem de fato seria com uma mentalidade de guerra: teríamos de declarar guerra ao agravamento do efeito estufa para todos os países do mundo se unirem contra um inimigo comum: a devastação ecológica da Terra. Somente durante guerras vimos o nível de mobilização capaz de levantar os recursos necessários, de convencer a população a se submeter a grandes sacrifícios em prol da vitória.

Durante a Segunda Guerra Mundial, a população do Japão passava fome para que o exército imperial pudesse comer. Como esse, existem inúmeros exemplos. Mas com esse inimigo sutil e praticamente invisível, com táticas de conquista lentas, fica difícil traçar um plano de defesa. O cerco vai apertando tão aos poucos que a invasão parece que nunca ocorre.

Durante a abertura da cúpula de Copenhagen, os líderes dos quase 200 países presentes assistiram um vídeo com crianças do mundo inteiro pedindo que façam algo para evitar um futuro apocalíptico de desertos e mares invasores. Pela primeira vez na história, a humanidade tem um inimigo comum, que afeta a todos: ela mesma. As decisões que tomamos hoje irão definir o mundo de amanhã. Espero que sejamos sábios o suficiente para nos derrotar e vencer a guerra.

sábado, 12 de dezembro de 2009

A vida e as rochas




A incrível diversidade da vida é profundamente relacionada com a incrível diversidade dos minerais


Se existe uma divisão clara na natureza, é entre os seres vivos e os minerais. Afinal, como aprendemos na escola, seres vivos tem metabolismo e a habilidade de se reproduzir. Minerais, por sua vez, são inertes, respondendo ao que ocorre à sua volta. Os dois não podiam ser mais distintos e independentes.
 
No entanto, nos últimos anos, aprendemos que existe, e que sempre existiu, uma relação íntima entre as rochas e as vida.
 
Se foram os minerais ou compostos químicos inertes que deram origem à vida, foi ela que, por sua vez, transformou profundamente a história geológica da Terra.
 
Tendo a matéria não-viva se transformado em matéria animada, a incrível diversidade da vida é profundamente relacionada com a incrível diversidade dos minerais.
 
Tudo começou de maneira bem simples. Há 4,5 bilhões de anos, a Terra havia acabado de se formar. Os minerais que existiam naquela época passavam a maior parte do tempo em ebulição: a Terra era constantemente bombardeada por asteroides e cometas. Os minerais, na época, eram poucos, algumas centenas, semelhantes aos que são encontrados nos asteroides de hoje.
 
O tempo passou. Em torno de 3,9 bilhões de anos atrás, os bombardeios acalmaram e a crosta terrestre foi, aos poucos, se solidificando por períodos mais longos.
 
Não se sabe exatamente como aconteceu, mas os minerais simples que existiam, junto com gases existentes na atmosfera terrestre, sujeitos à atividade elétrica e à radiação ultravioleta solar, produziram os primeiros aminoácidos -os passos iniciais em direção à vida.
 
Os primeiros sinais de vida confirmados datam de 3,5 bilhões de anos atrás. Esses organismos primitivos, que eram seres unicelulares, foram o único tipo de vida que existia na Terra pelos próximos 2 bilhões de anos. Foram eles que transformaram a natureza da vida e, de quebra, também os minerais na Terra.
 
Quando falamos em vida na Terra, pensamos em seres complexos, multicelulares. Na verdade, a história é bem diferente. A transição de seres unicelulares para multicelulares foi lenta e improvável. Mesmo dentre os seres unicelulares, houve a transição dos procariotas aos eucariotas. Os procariotas, de alguma forma, descobriram o mecanismo que foi essencial na transformação da vida e do nosso planeta: a fotossíntese.

Aos poucos, os procariotas foram absorvendo o gás carbônico da atmosfera e fazendo com que ele se transformasse em oxigênio. Sendo um elemento químico altamente reativo, o oxigênio é uma espécie de granola geoquímica, energia para promover reações cada vez mais complexas. Esse enriquecimento energético da atmosfera foi a grande virada na história do nosso planeta.
 
Com mais energia disponível, a vida foi ficando mais complexa. Os eucariotas surgiram provavelmente da aliança simbiótica de dois ou mais procariotas. Por exemplo, as mitocôndrias, que aparecem nas células do nosso corpo, devem ter sido procariotas que foram absorvidos ou comidos por outros.

Mas a fotossíntese não foi importante só para a evolução da vida. Transformou as rochas também. Ao reagir com o ferro, o carbono, o enxofre e o silício, o oxigênio criou uma espécie de Big Bang mineral, uma explosão na diversidade das rochas espalhadas pela Terra.
 
Se os seres unicelulares deram origem, ao mesmo tempo, tanto à complexidade da vida quanto à complexidade dos minerais, a hipótese de que a Terra, como um todo, é, de certa forma, uma criatura viva, ganha força. Vivos ou não vivos, nossa descendência é a mesma.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Comendo a Terra



Temos de aprender a tratar bem do nosso planeta e conviver com ele


Começa amanhã a tão esperada conferência internacional do clima em Copenhague, onde quase 200 nações tentarão, mais uma vez, chegar a algum tipo de acordo com relação às emissões de gás carbônico e outros possíveis controles do aquecimento global.

Infelizmente, apesar do consenso da comunidade científica, existem ainda aqueles que duvidam que mudanças climáticas estejam sendo causadas pelas nossas atividades planetárias. Artigos irresponsáveis, até documentários na TV, confundem as pessoas, tentando atribuir o aquecimento acelerado da Terra a fatores externos, como, por exemplo, irregularidades na energia do Sol. A verdade, porém, é que estamos depredando nosso planeta em ritmo tão forte que, se não nos dermos conta disso rápido, pagaremos todos um preço muito alto.

Não há dúvida de que o mundo hoje, apesar das aparências, está mais rico: mais pessoas comem e vivem melhor. Mas qual o custo disso? No dia 24 de setembro, um grupo internacional de cientistas liderado por Johan Rockström, do Instituto de Estudos Ambientais de Estocolmo, publicou um artigo na revista "Nature" delineando nove limites planetários, que definem os parâmetros para uma exploração estável do nosso planeta.

Entre eles, estão limites na emissão de gases poluentes, perda de biodiversidade, conversão de ecossistemas em terras agrícolas, uso da água etc. A população mundial aumentou de 3,7 bilhões em 1970 (lembram do "90 milhões em ação" da Copa de 1970?) para 6,9 bilhões hoje, e continua crescendo um bocado -a uma taxa de 80 milhões de pessoas por ano.

Como todo mundo precisa comer e beber, o aumento da população leva a uma maior demanda por comida, água e energia que, por sua vez, leva a um aumento da produção agrícola e pecuária. Enquanto a população mundial vai inchando, os recursos planetários vão encolhendo. Com o aumento da classe média em países como a China, a Índia e o Brasil, aumenta a demanda por carne. O problema aqui é que, para cada quilo de carne consumida, são necessários 16 quilos de grãos. Adicione-se a isso a emissão de metano que vem do gado (é, a flatulência polui), a destruição das florestas para pastos e a necessidade de água para os grãos e para o gado. Essa bola de neve consumista leva à depredação desenfreada do planeta.

Eventualmente, a coisa tem de quebrar. Os limites de Rockström são uma tentativa de estabelecer padrões de consumo condizentes com o simples fato de que nosso planeta é finito e que, portanto, tem recursos finitos. A tecnologia sem dúvida alivia em muito essa pressão, mas não faz milagres. Existem leis essenciais da natureza, como a lei de conservação da energia e a segunda lei da termodinâmica -que afirma que o grau de desordem num sistema sempre aumenta-, que nenhuma tecnologia pode bater. Para podermos viver em paz com o nosso planeta, temos de aprender a tratá-lo bem.

Esses são os maiores desafios deste século. Produzir mais comida não é suficiente; temos de trabalhar para estabilizar a população mundial, dar incentivos financeiros para que populações à beira de florestas parem de cortá-las para plantar e criar gado. Para isso, a educação das populações mais pobres e o auxílio no controle da natalidade e da mortalidade infantil são essenciais. O problema tem dimensões globais e precisa de um esforço global para ser combatido. Espero que as nações mais ricas iniciem esse processo em Copenhague, inclusive dando incentivos para que os países mais pobres tenham uma chance. Essa é a hora em que o pequeno sacrifício de alguns pode beneficiar a todos.

domingo, 29 de novembro de 2009

Repensando o Big Bang




A interpretação sobre o que é a expansão do cosmo está mudando


Imagino que a maioria dos leitores de desta coluna esteja familiarizada com a ideia do Big Bang, a explosão que marca o início do tempo, o início da expansão cósmica que, pelo que sabemos, continua firme e forte até hoje. Porém, quando começamos a pensar seriamente na questão do início de tudo, surgem tantas dúvidas e confusões que é bom revisitá-la de tempos em tempos.
 
Antes de mais nada, o que significa expansão do Universo? Quando Edwin Hubble descobriu que as galáxias estavam se afastando umas das outras em 1929, a interpretação mais imediata era que o Universo estava em expansão. Quando mencionamos que a expansão é uma consequência do Big Bang, é muito comum pensar numa espécie de explosão, com as galáxias voando pelo espaço como detritos.

Na verdade, a expansão do Universo não é isso; quem expande, ou estira como uma tira de elástico, é o próprio espaço. As galáxias são carregadas pela expansão como se fossem rolhas boiando num rio. Quando olhamos em torno, vemos que todas as galáxias se afastam umas das outras. Não existe um centro da expansão, como no caso de uma explosão. De outra manteira, existiria um centro do Universo, um ponto mais especial do que os outros. Mas esse ponto não existe.

O cosmo é muito democrático: todos os pontos são iguais. Mas o que causou o Big Bang?
Esta questão, que tradicionalmente era relacionada com a questão da "Primeira Causa", também foi revisada nos últimos anos. Até meados da década de 1980, era comum pensar que o Big Bang marcava o estágio inicial da expansão cósmica, uma época no passado remoto onde o cosmo era tão quente e denso que a matéria estava dissociada nos seus componentes mais básicos, as partículas elementares. Partindo disso, é de se esperar que a matéria à altas pressões e temperaturas expanda; ou melhor, que ela tenha provocado a expansão do espaço.

Quando se perguntava "Mas o que causou este estado inicial?", a resposta era meio vaga: a teoria que usamos para descrever o Universo, a teoria da relatividade geral de Einstein, não funciona nesses momentos iniciais.

Precisamos de uma nova teoria, que seja aplicável nessas condições extremas. Isto continua sendo verdade: não temos uma teoria quântica para explicar a gravidade. Mas a interpretação do Big Bang mudou.

Segundo as teorias atuais, o Universo passou por uma fase de expansão extremamente rápida, mais rápida do que a velocidade da luz. Isso é possível com a geometria do espaço, mesmo que a matéria não possa viajar mais rápido do que a luz. E o que causou essa expansão? Acredita-se que tenha sido um "campo escalar", um tipo de matéria hipotético que tem a incrível propriedade de provocar esse tipo de comportamento. Pode parecer mágica, mas não é.

Campos escalares são muito plausíveis. Por exemplo um de seus primos chamado campo de Higgs poderá ser descoberto em 2010 ou 2011 no LHC, o grande acelerador de partículas na fronteira da Suíça com a França.

Quando está fora de sua posição de equilíbrio, feito uma bola rolando uma ladeira, esse campo gera a expansão ultra-rápida do espaço. Ao descer, sua energia e pressão alimentam a expansão cósmica. Chegando perto do fim, o campo libera sua energia explosivamente, criando um mar de partículas de matéria. (O truque vem de E=mc2, que diz que é possível converter energia em matéria.)

O processo violento em que a matéria surge desse campo é como a maioria dos físicos hoje interpreta o Big Bang. Em outras palavras, o Big Bang não foi o começo de tudo! Mas então o que foi? Disso, falamos numa outra semana.

domingo, 22 de novembro de 2009

2012: O "fim" do mundo




Neutrinos sofrendo mutações? Darwin virou astrofísico?


No fim de semana passado, o filme "2012", dirigido pelo mestre do cinema-catástrofe Roland Emmerich (de "Independence Day" e "O Dia Depois de Amanhã"), explodiu nas telas mundo afora. Segundo o jornal L.A. Times, o faturamento estimado, só no primeiro fim-de-semana, foi de US$ 225 milhões.
 
Um dos maiores da história. Por que tanta gente quer ver o mundo acabar?
 
O casamento entre mitos de fim do mundo -no caso, um texto maia extremamente vago- e o poder dos meios de comunicação parece ser irresistível. O que estamos vendo, em grande escala, é a universalidade do medo. O mesmo que fazia as pessoas tremerem durante a Idade Média ou na cordilheira dos Andes quando surgia um cometa no céu, ou quando ocorria um eclipse total do Sol.
 
Tanto no passado quanto no presente, os céus estão cheios de deuses; e, pelo jeito, a maioria das pessoas ainda acredita que são eles que determinam se vamos ou não viver. Primeiro, tenho o dever de analisar a base científica do filme. Afinal, como disse um dos personagens, "com todas nossas máquinas e tecnologia, e os maias já haviam previsto isso tudo".
 
Será? A história começa no fundo de uma mina na Índia, onde cientistas analisam o fluxo de neutrinos vindos do Sol. Até aqui tudo bem, é isso mesmo o que ocorre. Existem vários laboratórios pelo mundo localizados em minas profundas. O maior deles é chamado Super-Kamiokande, no Japão. (http://en.wikipedia.org/wiki/Super-Kamiokande) Nas cavernas das minas, tubos fotomultiplicadores ultrassensíveis podem acusar a raríssima interação de um neutrino vindo do interior do Sol -uma profusão deles é produzida na fusão de hidrogênio em hélio que gera a energia solar- com moléculas de água em tanques gigantescos. Aliás, cerca de 1 trilhão desses neutrinos solares passa pelo seu corpo por segundo, sem que você se dê conta: por isso, são chamados de "partículas-fantasmas", capazes de atravessar paredes de aço de quilômetros de espessura como se não existissem.
 
A história fica absurda quando o cientista indiano explica ao americano que, de uns anos para cá, os neutrinos solares sofreram uma mutação e começaram a interagir intensamente com a matéria no interior da Terra.
 
Neutrinos sofrendo mutações? Feito bactérias? Darwin virou astrofísico? Não só isso, mas esses neutrinos misteriosamente não interagiam conosco ou com navios e aviões, só com o metal no interior da Terra, causando o seu rápido aquecimento. Neutrinos não sofrem mutações. As estrelas, centenas de bilhões delas só na nossa galáxia, vêm funcionando exatamente do mesmo modo há pelo menos 10 bilhões de anos sem esse tipo de anomalia. Cientificamente, o cenário de 2012 não faz o menor sentido.
 
Mas, como é um filme e não um documentário, não deveríamos esperar uma ciência precisa; disso, já desisti.

(Por coincidência, escrevi um roteiro junto com um colega no qual o Sol também entra em crise. A diferença é que, no nosso caso, a ciência é bem mais sólida. Infelizmente, os estúdios de Hollywood não parecem estar muito interessados.) O que podemos dizer desse medo apocalíptico para 2012?
 
Em termos concretos, que é uma fabricação. O Sol passa por ciclos, noa quais sua atividade oscila com um período de 11 anos. No máximo do ciclo, uma maior atividade magnética ocorre, e aumenta o número de manchas solares e de emissão de matéria. O próximo máximo é esperado para 2011. Ocorrerão algumas tempestades solares e, como é o caso a cada ciclo, algumas serão maiores, outras menores. Espero que as pessoas não confundam fantasia com realidade e entrem em pânico inutilmente.

domingo, 15 de novembro de 2009

Ver o céu é ver o passado




Onde podemos chegar observando a luz que viajou bilhões de anos até nós?


Dizer que olhar para o céu noturno é vislumbrar tudo o que existe é o mesmo que dizer que olhando para o mar vemos o que se passa embaixo d'água. Da nossa perspectiva limitada, no canto de uma galáxia que, por si só, abriga uns 300 bilhões de estrelas, o que vemos é muito pouco do que realmente está escondido na escuridão do céu noturno.
 
A olho nu, numa noite muito estrelada, vemos apenas alguns milhares de delas, nossas vizinhas, uma fração ínfima das que existem. Imagine mesmo que nem todos os planetas vemos a olho nu e muito menos suas luas; Urano só foi descoberto em 1781. Felizmente, o que não vemos com os olhos vemos com nosso instrumentos.

Hoje, temos muitas janelas para os céus, uma metáfora que usei há tempos nesta coluna. É bom lembrar que o espectro eletromagnético, isto é, o conjunto das várias radiações emitidas por átomos e moléculas quando os seus elétrons pulam de órbita, é muito mais amplo do que os nossos olhos enxergam. Somos criaturas do Sol, evoluímos e nos adaptamos à vida sob a tutela energética da nossa estrela-mãe. Portanto, nossos olhos se desenvolveram para ver principalmente na radiação dominante que vem do Sol, a luz visível.

Mas essa é só uma parte da história; existem muitos outros tipos de radiação, invisíveis aos olhos, mas nem por isso menos reais. O leitor conhece várias: os raios X, a radiação infravermelha, a ultravioleta, as micro-ondas, as ondas de rádio. A astronomia moderna não se limita aos telescópios tradicionais, que coletam a luz visível emitida por objetos distantes. Quando, por exemplo, olhamos para o Sol com instrumentos adequados, podemos vê-lo irradiando todas essas outras ondas eletromagnéticas.

Com o Telescópio Espacial Hubble, junto aos seus primos presos nos topos de montanhas terrestres, astrônomos visualizaram galáxias em estado bem primitivo, ainda bebês, à distâncias maiores do que treze bilhões de anos-luz daqui, quase na fronteira do que é possível ver. Vale lembrar que, ao olharmos para o céu noturno, estamos olhando para o passado; quanto mais longe o objeto, mais tempo para a sua luz chegar até nós.

Portanto, quando dizemos que um objeto está a 13 bilhões de anos-luz de distância, isso significa que a luz que vemos hoje saiu dele há 13 bilhões de anos. Como comparação, a idade da Terra é de 4,6 bilhões de anos, e a do universo de 13,8 bilhões de anos. Esses números mostram que essas galáxias existiam muito antes do nosso Sol, quando o Universo era ainda um infante de 800 milhões de anos.

Até onde podemos chegar? Infelizmente, nossas observações através do espectro eletromagnético esbarram numa barreira intransponível quando o universo tinha apenas 400 mil anos. Antes disso, as interações entre a matéria e a radiação eletromagnética eram tão intensas que estas não podiam viajar livremente pelo espaço. Para vermos algo dessa época a radiação tem de viajar de lá até nós; portanto, não podemos captar qualquer radiação anterior à essa época; o universo, nos seus primeiros 400 mil anos, era opaco a qualquer tipo de radiação eletromagnética.

Existe um outro tipo de radiação que, em princípio, nos permitiria "ver" até o Big Bang, ou quase: a radiação gravitacional, ondas emitidas por massas em movimento irregular. Várias "antenas" vêm tentando captar as primeiras ondas gravitacionais, por exemplo, vindas de buracos negros ou de colisões estelares. No futuro próximo, duas missões espaciais estão planejadas para atingir grande precisão; talvez, com elas possamos captar alguma informação oriunda dos primeiros instantes após a origem do universo.

domingo, 8 de novembro de 2009

40 anos de internet




Será que a tecnologia está redefinindo quem somos?


Faz 40 anos que os computadores de Leonard Kleinrock, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, e de Douglas Engelbart, do Instituto de Pesquisas na Universidade de Stanford, foram conectados por uma "linha especial" da Arpanet, um sistema de apenas quatro computadores que faziam parte de um projeto do Departamento de Defesa dos EUA.

Com o passar dos anos, o sistema exclusivo de tráfego de informação evoluiu, saiu dos laboratórios de cientistas para o público e hoje é conhecido como internet.

Não há dúvida de que a internet está transformando o mundo, de que vivemos em meio a uma revolução. A questão, ou uma delas, é que tipo de revolução é essa: será que a internet pode ser comparada, por exemplo, ao telefone ou ao carro, ou mesmo à imprensa de tipo móvel, que revolucionou o livro? Ou será que ela pertence a outra classe de tecnologia, que não só transforma a sociedade mas que vai além, redefinindo quem somos?

A questão é complicada, difícil até de ser formulada. O telefone e o carro transformaram o modo como as pessoas se comunicavam, iam ao trabalho, viajavam, viam o mundo. Como toda tecnologia que se torna de uso público, primeiro começaram pequenos, com alcance limitado: eram poucas as linhas telefônicas e as estradas.

Aos poucos, as coisas foram crescendo e, em meados do século 20, telefones e estradas estavam pelo mundo todo. Uma diferença bem importante é que a internet, por ser acessível por computadores, é bem mais aberta aos jovens. Telefones celulares também; os jovens têm a sua privacidade, o seu espaço virtual separado do dos pais e irmãos. A comunicação é tão fácil e rápida que chega a tornar o contato direto, em carne e osso, desnecessário.

Talvez seja uma preocupação dos meus leitores mais velhos, que, como eu, nutriam as amizades no campo real e não por meio de sites como Facebook e Twitter, mas será que a internet nos fará desaprender como nos relacionar diretamente com outros seres humanos?

Deixando esse tipo de preocupação de lado, se olharmos para a história da civilização, veremos que podemos contá-la como uma história da tecnologia. À medida que novas tecnologias foram sendo desenvolvidas, do controle do fogo e da rotação de terra na agricultura até a roda, o arado e os transistores e semicondutores usados em aparelhos eletrônicos, nossa história foi, em grande parte, determinada pelas nossas máquinas. Valores e interesses mudam, e visões de mundo se transformam de acordo com nossos instrumentos.

O Homo habilis, nosso ancestral que usou ferramentas pela primeira vez, evoluiu rumo aoHomo sapiens e, agora, este se transforma no Homo conectus. Será que nossos avanços tecnológicos são, hoje, a principal mola da nossa evolução como espécie? Nesse caso, será que a tecnologia está redefinindo o que significa ser humano?

Descontando uma grande devastação biológica, como uma epidemia de proporções globais ou um cataclismo climático ou ecológico, somos donos da nossa evolução: nossa transformação como espécie ocorre muito menos devido a mutações aleatórias e ao processo de seleção natural do que, por exemplo, devido a um maior intercâmbio racial, à melhor alimentação e aos avanços da medicina, à integração de tecnologias diversas com o corpo (marca-passos, órgãos e membros artificiais) e com a mente (drogas que mudam nossas emoções, implantes nos olhos e ouvidos, chips no cérebro).

A internet talvez represente uma nova fronteira, a da integração coletiva da humanidade a um nível sem precedentes. Se não no mundo real, ao menos no virtual.

sábado, 31 de outubro de 2009

O símbolo perdido




Dan Brown aproveita a fixação popular com a pseudociência



Robert Langdon, o professor-herói dos romances de Dan Brown, está de volta. Desta vez, sua batalha é travada bem mais perto de casa. Em vez das ruas de Paris e de Roma, o professor de "simbologia" de Harvard (uma categoria acadêmica que, aliás, não existe: semiótica talvez fosse mais adequado) luta pela sua vida e pelo despertar de uma nova era para a humanidade nas ruas e monumentos de Washington.

A premissa do livro é fascinante: e se a sabedoria do passado, dos egípcios, dos alquimistas, dos videntes e dos magos, guardada corajosamente por maçons, rosacruzes e outros membros de sociedades secretas, estivesse de alguma forma ligada com a ciência moderna -em particular com as ciências neurocognitivas, que exploram o funcionamento do cérebro?

Será que a mente humana tem poderes ocultos que ainda não foram explorados e que têm o potencial de mudar o curso da história? Não vou estragar o livro contando o seu enredo. O que podemos fazer aqui é explorar se as ideias que Brown propõe no livro têm algo de concreto. A premissa é que a Bíblia e a maioria dos textos sagrados têm, essencialmente, a mesma mensagem: nós, humanos, somos deuses.

Senão na prática, ao menos em potencial. Não é à toa que a Bíblia começa com Adão e Eva, imortais, caminhando junto a Deus no Jardim do Éden e culmina, após a perda dessa imortalidade devido à descoberta do pecado, com a Ressurreição. No livro, Brown interpreta a Bíblia e outros textos sacros e profanos como manuais que explicam como podemos voltar a ser deuses.

Os maçons são os guardiães desses segredos, que são preciosos demais para serem revelados. Daí os códigos, os símbolos e a trama mirabolante de como decifrar o mapa que revela onde os segredos se encontram. Esse é o papel da religião na história.

A ciência entra através da heroína, Katherine Solomon. Sua pesquisa que, claro, é secretíssima, concentra-se na chamada "ciência noética", supostamente a ciência que estuda os poderes do cérebro. O mais importante deles é a capacidade da mente de interagir com a matéria: em princípio, podemos mover a matéria com o poder do pensamento. Quem se lembra do israelense Uri Geller e dos vários "entortadores de colher" que eram populares nos anos 1970? Eles seriam exemplos dos superdotados, dos humanos com poderes telecinéticos extremamente avançados.

Brown usa -de forma brilhante, devo dizer- a fixação popular com a pseudociência, ligando-a ao conhecimento dos antigos: eles já sabiam disso tudo, mas, após séculos de perseguição, esse conhecimento foi quase esquecido. Agora, graças à ciência moderna, estaríamos redescobrindo a sabedoria dos nossos antepassados: a ciência justificando a religião no laboratório, mostrando que, de fato, nós somos mesmo semideuses.

O livro de Brown é um símbolo da sua convicção de que, se trabalharmos juntos, podemos transformar o mundo. Sua visão otimista é bastante louvável, se bem que ele também menciona que esse mesmo conhecimento pode ser usado para o mal. O vilão da história está aí para provar isso.

Infelizmente, não existe qualquer evidência concreta de que a mente pode agir sobre Pa matéria. Os truques de Uri Geller são facilmente repetidos por mágicos. O cérebro não parece ser capaz de gerar uma interação mecânica com os objetos à sua volta. Por outro lado, temos ainda muito a aprender sobre os poderes da mente. Nesse meio tempo, se a força do pensamento pode fazer alguma coisa, é através das ações e escolhas que fazemos -essas sim, capazes de melhorar o mundo em que vivemos.

domingo, 18 de outubro de 2009

Tensão criadora


Roald Hoffmann argumenta que nem sempre o mais simples é o mais belo


Na semana passada, tive o prazer de assistir uma palestra proferida pelo Prêmio Nobel de Química Roald Hoffmann, que esteve visitando a minha universidade nos EUA por algumas semanas.

Hoffmann é conhecido de muitos no Brasil. Participamos juntos do Carnaval no Rio, quando saímos com a Unidos da Tijuca fantasiados de Santos Dumont em 2004. A escola, com um tema de ciência e criatividade, ficou em segundo lugar, motivo de grande festa. Aqui em Dartmouth, Hoffmann veio como químico, poeta, sobrevivente do Holocausto e dramaturgo. É óbvio que Hoffmann não é um Nobel típico. A palestra a que me refiro tratava de química e criatividade. Foram tantas ideias interessantes que queria dividir algumas com os leitores. O título era já bem instigante: "A tensão criativa da química".

"Mesmo que exista uma estrutura que permeie a realidade, existem 36 meios de representá-la." Aqui já vemos uma noção de pluralidade do conhecimento: existem muitos meios de construir o conhecimento sobre o mundo -e a ciência não é o único.

Hoffmann é um cientista humanista, que vê a ciência dentro de seu contexto histórico-cultural e não imune aos preconceitos que definem tantas das nossas escolhas. Por exemplo, passou um bom tempo falando sobre simplicidade versus complexidade.

Por que amamos o simples? Mostrando a imagem de uma molécula de hemoglobina, extremamente complicada e absolutamente fundamental para a vida, afirmou: "Esta molécula não é bela porque é simples. Mas é bela assim mesmo". A estética da ciência, principalmente devido ao sucesso do reducionismo na física, sempre buscou o mais simples, atribuindo-lhe beleza. A famosa "navalha de Occam", que diz que, se existem duas explicações para o mesmo fenômeno, a mais simples deve ser a verdadeira, implicitamente assume que o mais simples é o mais belo. Será sempre assim?

Mostrando imagens dos parques de Gaudí em Barcelona, de igrejas rococó na Espanha, na Alemanha e na Itália, Hoffmann argumentou que nem sempre o mais simples é o mais belo. Economia na forma pode ser muito importante na física, mas na biologia a complexidade absurda das moléculas parece estar dizendo algo de diferente. A estética da vida e a dos homens pode ter muito mais em comum do que imaginamos.

"A natureza é o que é, mas não é simétrica." Hoffmann retornou a esse tema diversas vezes. O que ele quis dizer com isso? Claramente, simetria é uma ferramenta muito importante nas ciências. O que seria da geometria sem ela? Também na física buscar simetrias sempre leva a grandes simplificações: simetria, simplicidade, beleza e verdade parecem andar de mãos dadas na história da ciência. Mas será que esse paradigma já rendeu o que tinha de render? Não há dúvida de que o simples leva à grandes revelações.

Mas o complexo também. Principalmente quando migramos da física à química e à biologia. O que dificulta as coisas é que o estudo de estruturas complexas precisa de ferramentas diferentes, e poucas existem hoje. "A química é a ciência da transformação, e pessoas não gostam de mudanças." Aqui, Hoffmann se referiu ao menor interesse que o público tem em química, quando comparada à física e à biologia. Basta ver os temas dos livros dedicados à popularização da ciência para confirmar isso. Hoffmann sugeriu que o excesso de rigidez em ocultar o passado alquímico e mítico da química (que ele celebra) acabou por tirar a magia de uma ciência cheia de mágica. Afinal, a química é a ponte entre o átomo e a célula. Quem precisa de mais do que isso para se empolgar com ela?

domingo, 11 de outubro de 2009

Einstein e o Antropólogo



Um físico não pode se dar o luxo de se esconder por trás de arbustos


Imagine ser um dos maiores cientistas da história. Suas teorias revolucionaram a visão de mundo humana, tornando-se sinônimo de genialidade. Sua missão, como a de todo o cientista, é compreender o mundo, descrever de forma racional os mecanismos dos fenômenos naturais. Na história, poucos, pouquíssimos, igualam-se a você. Sua filosofia baseia-se numa fé inabalável na capacidade da razão humana em decifrar os mistérios da matéria. Sem limites.

Dentre seus feitos, um dos mais importantes foi mostrar que matéria nada mais é do que uma forma de energia. Outro, foi mostrar que a luz não é apenas onda mas, também, uma partícula, que ficou conhecida como fóton. Essas ideias virão a ser o arcabouço duma outra revolução do conhecimento, a física quântica. De forma inusitada, as sementes que você havia plantado com suas teorias germinam com uma força incrível.

Num dado momento, porém, atendidas por outras mãos, elas tomam o seu próprio rumo. E, rapidamente, ameaçam arruinar o mundo que você havia construído, baseado na compreensão ilimitada da Natureza, um mundo controlável e sem surpresas. Assim foi a teoria quântica que, aos poucos, tornou-se no pesadelo de Albert Einstein.

Einstein era um físico clássico por excelência. Acreditava que era possível obter uma explicação total da realidade, uma teoria unificada que descrevesse todas as facetas do mundo material. Quando a teoria quântica começou a tomar força, ficou claro que o mundo do muito pequeno era muito mais sutil, e muito mais excêntrico, do que o mundo do dia a dia.

Fenômenos realmente estranhos são de praxe nos átomos. Por exemplo, partículas subatômicas, como elétrons, podem se transformar em partículas de luz e vice-versa. Imagine se, no nosso mundo, um fusca pudesse se transformar num elefante! Partículas não têm sua posição definida com precisão arbitrária: existe sempre um limite, que chamamos de princípio da incerteza, que restringe a quantidade de informação que podemos extrair de um sistema.

Eis uma analogia. Um antropólogo descobre uma nova tribo no Amazonas. Essa tribo nunca teve contato com um ocidental. Inicialmente, o antropólogo consegue observar a tribo sem ser visto, escondido por trás de arbustos. Porém, depois de um tempo, um sentinela o descobre e ele é trazido ao chefe. Após muita confusão, o antropólogo consegue sobreviver e virar convidado da tribo, continuando suas observações. Porém, ele percebe que, após a sua chegada, a tribo já não se comporta da mesma forma: a sua presença, o contato com um estranho, mudou de forma irreversível o comportamento da tribo.

Com átomos, a situação é ainda mais difícil. Ao medirmos um sistema, mudamos o seu comportamento de forma irreversível. Ao contrário do antropólogo, o físico não tem o luxo de poder se esconder por trás de arbustos e observar o sistema sem ser visto: no mundo dos átomos e das partículas, medir é interferir: ao observarmos um sistema, mudamos irreversivelmente o seu comportamento.

Juntando isso ao princípio de incerteza, chegamos ao dilema de Einstein: se prepararmos o mesmo sistema da mesma forma várias vezes, e medirmos a mesma propriedade (por exemplo, a posição do elétron num átomo de hidrogênio a uma certa temperatura), cada medida que fizermos não dará o mesmo resultado. Temos de repeti-la muitas vezes e usar estatística: o elétron tem uma parcela de chance de estar aqui, outra de estar lá etc. Einstein queria ser como o antropólogo. Mas a tribo dos átomos é muito diferente da tribo dos homens.

domingo, 4 de outubro de 2009

Frankenstein revisitado



Se pudéssemos nos clonar e armazenar nossas memórias, seríamos imortais


É difícil não associar o nome "Frankenstein" com o monstro criado na versão cinematográfica de 1931, dirigida por James Whale, famosamente interpretado por Boris Karloff: uma criatura mentalmente perturbada, um assassino que mal podia ser considerado humano.

Quem leu o romance de Mary Shelley, entretanto, sabe que a história original era bem outra. E o seu significado, muito mais profundo.

A jovem vitoriana criou um ser muito mais sofisticado do que aquele retratado por Hollywood. No livro, publicado em 1818, o monstro não tinha nada de retardado ou de psicopata. Inteligente, conversava com o seu criador, lia livros e sonhava em ser amado. Foi aí que o problema começou.

O monstro, entendendo que a sociedade jamais o aceitaria, pede ao seu criador uma companheira com quem pudesse dividir os seus dias nos confins da Terra, longe de tudo e todos. Horrorizado, o doutor se recusa a fazer isso. Não criaria uma raça de monstros que logo se multiplicariam e destruiriam toda a raça humana.

Frankenstein é um romance de ficção científica. Ele explora a questão dos limites da ciência. Será que a ciência pode sobrepujar a morte? Se puder, será que deve fazê-lo? Ou será que existem questões que a ciência simplesmente não deve abordar?

No início do século 19, a ciência de ponta explorava as propriedades da eletricidade. Na Itália, Luigi Galvani havia descoberto a "eletricidade animal". Ele mostrou que os músculos de um sapo morto se contraem quando uma corrente elétrica passa por eles.

A conexão entre a eletricidade e a vida foi imediata. Se a eletricidade pode animar um sapo morto, por que não uma pessoa? Seria possível que o segredo da vida se ocultasse nos poderes da eletricidade? Seria esse o segredo da imortalidade?

Não há dúvida de que a eletricidade está ligada à vida. Basta assistirmos a algum seriado sobre medicina na televisão, como o popular House, para vermos corações serem reanimados por correntes elétricas. O segredo do sucesso do romance de Mary Shelley foi ter combinado a ciência de ponta de sua época com um dos maiores tabus da sociedade: o controle, por mãos humanas, da vida e da morte.

Infelizmente (ou felizmente?), para ressuscitar os mortos, nós temos que ultrapassar uma outra barreira, bem maior do que a circulação de impulsos elétricos pelo corpo. Ela é conhecida como decaimento da matéria.

Mesmo ao nível celular, e mesmo enquanto vivos, existem mecanismos celulares e genéticos que controlam o envelhecimento. Aparentemente, é possível diminuir a taxa de envelhecimento celular (ao menos em ratos de laboratório) administrando certas proteínas. Ao nível genético, ratos que têm a ação do gene mclk1 comprometida envelhecem mais devagar.

Talvez, em algumas décadas, essas técnicas levem a um controle da taxa de envelhecimento em humanos. Mesmo assim, viver 120 anos não é a mesma coisa que ser imortal.

Uma proposta mais ambiciosa e, no momento, digna de um romance de ficção científica do século 21 (o nosso Frankenstein?), é a do cientista e inventor americano Ray Kurzweil.

Ele especula que talvez um dia seja possível armazenar as nossas memórias como fazemos com a informação em computadores. Se pudéssemos também criar clones de nós mesmos, poderíamos, ao menos em princípio, programar o cérebro dos clones com a nossa "essência" de modo a propagar nossa existência indefinidamente.


Vamos supor que, um dia, algo assim seja possível. Será que estaríamos inventando o fim da humanidade, como temia o doutor Frankenstein? Ou será esse o nosso destino?

domingo, 27 de setembro de 2009

A primeira causa



O propósito da ciência não é responder a todas as perguntas; sua missão é outra


Hoje, retorno a uma questão que parece boba, de tão simples. Mas talvez seja a mais complexa que podemos tentar responder. Tanto que, no meu livro "A Dança do Universo", chamei-a de "A Pergunta". Aí vai: como tudo começou?


O que complica as coisas é que pensamos sobre tudo como um encadeamento simples de causa e efeito: cada efeito tem uma causa que o precede.

Quando vemos uma bola de futebol voando, é porque alguém a chutou; se um carro passa na rua, é porque alguém está dirigindo; se a planta cresce, é porque consegue extrair nutrientes do solo e usar a luz solar como fonte de energia; se o Sol brilha, é porque em seu centro hidrogênio está sendo fundido em hélio, liberando quantidades enormes de energia; se o Sol existe, é porque uma nuvem de hidrogênio entrou em colapso há cerca de 4,6 bilhões de anos, atraída pela própria gravidade...

Se continuarmos nessa linha, terminamos, paradoxalmente, no começo de tudo, a origem do Universo. Se o Universo existe, "algo" o fez existir.

A primeira causa é o impulso inicial da criação. Assim ela tem sido vista desde que religiões começaram a tentar explicar o enigma da origem de tudo. No caso da religião, a estratégia funcionou bem: dado que deuses são entidades sobrenaturais, eles não vivem no tempo, tendo uma existência atemporal, eterna. Assim sendo, regras de causa e efeito, ou mesmo a mera aplicação do bom senso, não valem para divindades.

Uma vez que se aceita que algo pode existir fora do tempo e pode ter poderes absolutos que transcendem as leis da natureza, tudo é possível. Até a criação a partir do nada. No Gênese, Deus criou a luz e separou as águas da terra através do verbo. Segundo Santo Agostinho, que muito se preocupou com esse assunto, o tempo e o espaço surgiram com o mundo. Antes da criação, não havia o "antes", pois o tempo não existia. Outras narrativas de criação do mundo resolvem a questão da primeira causa de forma semelhante, postulando a existência de entidades divinas e, portanto, alheias aos vínculos temporais que tanto nos limitam.

E a ciência? Será que é possível resolver a questão da primeira causa de modo científico? Esse é um debate ferrenho que, infelizmente, entrava o progresso cultural da humanidade. Remete-nos a "guerras" inúteis contrapondo ciência e religião, como se a ciência tivesse como função substituir a fé religiosa, uma grande distorção.

Se as pessoas acreditam que a ciência é capaz de responder a todas as perguntas, incluindo a questão da primeira causa, elas se sentem justamente ameaçadas: parece que a ciência tem como missão "roubar" Deus das pessoas. De forma alguma: ao contrário do que muitos dizem, não é essa a missão da ciência. A ciência não se propõe a responder a todas as perguntas. E por um motivo simples: nós nem sabemos que perguntas são essas. Dado que jamais teremos um conhecimento completo da realidade, jamais poderemos construir uma narrativa científica completa.

Sempre existirão questões não perguntadas e não respondidas; e mesmo questões que nada têm a ver com a ciência. A escolha do que fazemos com essa nossa ignorância perene é pessoal: existem aqueles que preferem optar por ter fé em entidades sobrenaturais e existem aqueles que, como eu, preferem aceitar a simplicidade do não-saber. Não ter todas as respostas é a pré-condição para o nosso crescimento. Nesse sentido, mesmo se a ciência não resolver o enigma da primeira causa -e existem obstáculos complicados que ficam para outro dia-, prefiro continuar tentando e aceitar que, por ser humano, minha visão de mundo tem limites.

domingo, 20 de setembro de 2009

A festa dos quarks



Partículas que formam os prótons e nêutrons podem ser indivisíveis


Neste mês, o legendário físico teórico americano Murray Gell-Mann completa 80 anos. Entre seus grandes feitos, o mais importante foi ter proposto uma ideia que revolucionou a nossa compreensão da composição da matéria.

Em 1963, Gell-Mann propôs que, ao contrário do que se pensava na época, os prótons e nêutrons, as partículas que compõem o núcleo de todos os átomos, não eram indivisíveis, e sim formadas por partículas ainda menores. Mostrando a sua fenomenal cultura geral (da qual se orgulha muito), Gell-Mann usou uma palavra de um texto do escritor irlandês James Joyce para batizar as partículas: "quarks". O nome fictício é bem apropriado: nem mesmo Gell-Mann poderia ter imaginado o quão estranhos são os quarks.

Já na Grécia Antiga, em torno de 400 a.C., os filósofos Leucipo e Demócrito haviam sugerido que tudo o que existe no Universo é composto de partículas minúsculas e indivisíveis, que chamaram de átomos (em grego "o que não pode ser cortado".) Durante 2.400 anos, filósofos e (mais recentemente) físicos vêm procurando pelos tijolos fundamentais da matéria. Essa é a missão do reducionismo: tentar dividir entidades complexas em entidades simples e irredutíveis.

É claro que a pergunta mais imediata aqui é se existe mesmo algum limite: se cortarmos a matéria em pedaços cada vez menores, será que chegaremos mesmo até as entidades mais básicas? Essa é a crença que vem inspirando físicos por todo esse tempo. Até o final do século 19, achava-se que os átomos dos elementos químicos (do hidrogênio ao urânio e além, os integrantes da Tabela Periódica) eram indivisíveis. Essa crença foi derrubada em 1897 quando o inglês J. J. Thomson mostrou que todos os átomos continham uma partícula ainda menor, o elétron. Alguns anos depois, Ernest Rutherford mostrou que a maior parte da massa de um átomo está concentrada num volume mínimo no seu centro, o núcleo atômico.

O integrante do núcleo com carga elétrica positiva, contrabalançando a carga negativa do elétron, ficou conhecido como próton. Em 1932, James Chadwick mostrou que outra partícula integrava o núcleo, de carga elétrica nula: o nêutron. Esse era o trio de partículas que, compondo todos os átomos da Tabela Periódica, deveria bastar para explicar a estrutura da matéria, um triunfo do reducionismo. Só que a festa durou pouco.

Durante os anos 1940 e 1950, uma multidão de partículas foi encontrada, todas aparentemente elementares, isto é, indivisíveis. Essa avalanche de partículas, centenas delas, ia contra o espírito do reducionismo, e acabou gerando uma crise na comunidade.

Será que o atomismo está errado?

Quando Gell-Mann, e também George Zweig, propuseram que essas partículas eram, de forma análoga aos átomos, composta de outras menores, o alívio era palpável. Só que... esses quarks eram muito diferentes: tinham carga elétrica fracionária e não igual à do elétron e, para piorar, não podiam aparecer por si sós. Viviam trancadas, ou confinadas, dentro dos prótons, nêutrons e suas centenas de primos.

Gell-Mann, sabendo que enfrentaria resistência, sugeriu que, se seu esquema estivesse correto, novas partículas existiriam, formadas de dois tipos de quarks, o "up" e o "down".

Quando as partículas foram encontradas, as pessoas começaram a levar os quarks a sério. Prótons e nêutrons têm três quarks cada. Desde então, foram encontrados seis tipos de quarks.

A teoria não prevê nenhum outro.

Mas será esse o fim do reducionismo?

Ou os quarks são feitos de partículas ainda menores? Esse é o tipo de pergunta que, especulações à parte, só os experimentos poderão responder.

sábado, 19 de setembro de 2009

Marcelo Gleiser: ciência para poetas

Ouca entrevista audio aqui
http://www.domtotal.com/multimidia/entrevistas_detalhes.php?entId=44

18/09/2009

A ciência é ensinada de uma maneira tão chata que é um milagre as pessoas desejarem ser cientistas. Quem diz isso é o físico e astrônomo brasileiro Marcelo Gleiser, professor da Universidade de Dartmouth, em Hanover, Estados Unidos.

Marcelo Gleiser é o professor de física que todo mundo gostaria de ter. No lugar de frases pomposas, ele conta episódios deliciosos da história da ciência e da vida do cientista. Ao invés de passar a aula inteira expondo fórmulas no quadro negro, apresenta os fundamentos da física no laboratório, com demonstrações e experiências.

Uma de suas disciplinas em Dartmouth se chama física para poetas, que o tornou o professor mais popular da Universidade, graças também a seus livros e peças de teatro, sem falar nas aventuras quando vem ao Brasil, como desfilar vestido de Santos Dummont na Escola de Samba Unidos da Tijuca.

Por causa de seus múltiplos talentos, Marcelo Gleiser recebeu condecoração especial das mãos do presidente Bill Clinton por seu trabalho de pesquisa em cosmologia e por sua dedicação ao ensino. Difícil acreditar, diante de tanto sucesso profissional, que este cientista que abala o coração das mulheres onde quer que vá, um dia pensou em largar os estudos para ser músico.

Marcelo Gleiser é o entrevistado da semana no Dom Total.

Confira abaixo trechos da entrevista e no áudio acima a entrevista completa.


Marco Lacerda: Costuma-se dizer que a sua forma de escrever e divulgar a ciência é comparável à de Carl Sagan, conhecido pelo seu jeito apaixonado e simples de ensinar. Você concorda com esta comparação?

Marcelo Gleiser: Fico lisonjeado com a comparação, gosto muito do Carl Sagan, sempre foi um ícone para mim. Se as pessoas acham que estou fazendo um trabalho de divulgação científica que merece essa comparação, fico muito feliz, porque obviamente estou tocando as pessoas da maneira correta.

Há uma pequena diferença, talvez, entre a minha postura e a dele. Carl Sagan é uma pessoa muito mais radical. Ele acredita que a ciência é a reposta para tudo.

A minha postura é de sempre entender a ciência dentro do contexto histórico e cultural em que ela foi criada e desenvolvida. O Sagan, pelo contrário, via a ciência como algo quase absolutista - “A ciência é a única maneira razoável de se pensar o mundo”.

Eu não vejo assim. Quer dizer, acredito que existem várias maneiras de pensar o mundo: artísticas, poéticas, espirituais. A própria ciência tem um lado espiritual muito grande. Então diria que a minha postura é um pouco mais liberal, mas, sem dúvidas, acho legal que as pessoas façam esse tipo de comparação.


Lacerda: Você costuma dizer que a ciência é ensinada de uma maneira tão chata que é um milagre as pessoas desejarem ser cientistas. Onde você vê essa chatice e como ela poderia ser transformada?

Gleiser: Esta é uma ótima pergunta. As chatices aparecem de várias formas. Em primeiro lugar, infelizmente, a maioria dos professores de ciência - principalmente no ensino público no Brasil - são pessoas que, ou não gostam de ciência, ou tem um preparo muito pequeno na área.

Como uma pessoa que não gosta do assunto ou não tem interesse em aprender sobre, pode transmitir às crianças a paixão pelo ensino e a curiosidade? Não dá muito certo.

O que ocorre? O ensino fica muito preso às fórmulas. Há o quadro negro e as pessoas ficam memorizando o que é uma célula, o que tem dentro dela, o que é movimento retilíneo uniforme. Não existe um engajamento maior entre quem está ensinando e as crianças que estão aprendendo. Fica realmente chato.

Com a minha experiência de dar aulas em escolas, não só para adultos, mas também para turmas de 5ª e 6ª séries, vejo que os alunos têm um interesse enorme em aprender. Ficam muito curiosos com assuntos como buraco negro e galáxias, por exemplo. Fica claro que o interesse existe.

O que falta é o método de manter esse interesse vivo. Como fazer isso? Existem várias maneiras, não vamos dar um curso de como ensinar ciência, mas uma delas é levar as crianças para fora da sala de aula e usar o mundo como laboratório.

Por exemplo, você leva as crianças para um parque - nem precisa ser tão grande, uma pracinha mesmo, que tenha árvores e balanços. Lá, você mostra como são as árvores, porque elas são verdes, como o balanço balança, porque temos que empurrar. Você olha para o céu e explica porque ele é azul, o mesmo com as nuvens, os ventos. Você transforma esse parque em um laboratório de ciências.

Isso, para mim, tornaria o ensino ficasse muito mais interessante. A ciência fica realmente chata quando é: “vamos ler o capítulo dois do livro e escrever as fórmulas no quadro negro”.


Lacerda: Dizem que a ciência explica a natureza e cria novos mundos que nós não percebemos com os nossos sentidos. Você poderia falar um pouco sobre estes mundos de uma forma que nós entendamos com nossos sentidos?

Gleiser: Na verdade, diria que a ciência não cria novos mundos, mas revela os mundos que já existem e que a gente não consegue ver. Nós somos seres limitados, só podemos ver objetos a certa distância e de certo tamanho. O que a ciência faz?

Vou dar dois exemplos: o telescópio e o microscópio. Dois instrumentos científicos que mudaram completamente nossa percepção do universo. O caso do telescópio, aliás, é bastante pertinente. Em 1609, Galileu apontou seu telescópio para os céus. Desde então, se passaram 400 anos.

O telescópio mudou completamente nossa visão de mundo porque percebemos, através dele, que o universo é muito mais rico, dinâmico e variado do que o céu estrelado que vemos todos os dias.

No caso do microscópio, acontece o oposto. Ao invés do mundo do “muito grande”, temos o mundo do “muito pequeno”. Mais ou menos na mesma época que o telescópio estava sendo inventado e aperfeiçoado, o microscópio estava sendo inventado e aperfeiçoado. Ali se viu que em uma gota d’água existe todo um universo de vida, bactérias e animais estranhíssimos, que são completamente invisíveis a olho nu.

Entrevista realizada pelo jornalista Marco Lacerda no programa FrenteVerso, que vai ao ar aos domingos, às 21h, pela Rádio Inconfidência FM

domingo, 13 de setembro de 2009

Das estrelas à vida

Um astro é o pai de todos e a vida é uma grande família, unida pela química


Esta história começa há muito tempo, há 5 bilhões de anos, mais ou menos. Perdida no espaço, nos confins de uma galáxia qualquer, uma gigantesca nuvem de hidrogênio flutuava calmamente, girando em torno de si mesma. Perto dela, se é que dezenas de anos-luz podem ser considerados "perto", uma estrela já bem velha, com mais de 1 bilhão de anos, começou a entrar em pane.

A energia que essa estrela fabricava nas suas entranhas já não bastava para contrabalançar a sua ânsia de implodir, como ordena a gravidade, essa força que nunca dorme. A estrela, enorme, começou a pulsar violentamente e, após muitas convulsões, explodiu com uma violência tremenda, expelindo suas entranhas pelo espaço.

Nelas, estavam os vários elementos químicos que hoje organizamos na tabela periódica, do hidrogênio e hélio ao carbono, oxigênio, ferro e urânio. Essa poeira estelar, empurrada pela força da explosão, viajou pelo espaço afora, até se chocar com a nuvem de hidrogênio, aquela que, até então, flutuava calmamente.

A nuvem, perturbada pela onda de choque, entrou em colapso, semeada por todos os elementos químicos que haviam sido forjados na estrela já defunta. Aos poucos, a matéria dessa nuvem foi se concentrando no plano equatorial, feito uma grande pizza. No meio dela, nascerá o Sol. Ao seu redor, vão se formar os planetas, recheados de átomos de carbono, oxigênio, nitrogênio, ferro...

Os mais próximos ao Sol, onde é mais quente, serão planetas rochosos, como a Terra e os seus vizinhos, Marte e Vênus, e o pequenino Mercúrio. Os mais distantes, onde é mais frio, coletam também muito hidrogênio e hélio e crescem muito, virando os planetas gigantes Júpiter, Saturno, Urano e Netuno.

Na Terra, a presença de água líquida e de uma atmosfera agitada e repleta de gases permite que compostos químicos, feitos principalmente de carbono, comecem a marcha em direção à vida. São eles, os ditos compostos "orgânicos", que vão se tornar parte dos primeiros seres vivos e de todos os seus descendentes. Inclusive nós, humanos. Especial, essa Terra.

Com uma grande Lua circulando ao seu redor, seu giro em torno de si mesma, como o de um pião, fica equilibrado em um ângulo de 23,4. Caso não houvesse Lua, não teríamos esse equilíbrio e não teríamos as estações do ano e a presença constante de água líquida. É difícil imaginar vida complexa aqui sem o calor moderado e a água.

Pois as temperaturas amenas da Terra propiciam as reações químicas que levam simples átomos de carbono a se combinar com mais átomos de carbono, de oxigênio, de hidrogênio, de fósforo e de nitrogênio, formando as moléculas da vida, as proteínas e os ácidos nucleicos. Tudo isso, claro, usando o carbono forjado naquela estrela que morreu e nos cedeu suas entranhas, nossa vizinha cósmica.

Esse carbono é o fundamento da vida. Todos os seres vivos, todas as células contêm esse elemento. Depois da água, somos essencialmente feitos de carbono. Parte desse carbono é continuamente reciclada, passando de animal a animal, de planta a animal e de animal à planta: das escamas de um peixe às folhas de uma samambaia, das asas de uma borboleta ao seu nariz. Cada um de nós carrega consigo alguns dos átomos de carbono que, outrora, pertenciam aos nossos distantes ancestrais que viveram há bilhões de anos, seres que hoje nos parecem primitivos e exóticos.


Temos, em nossas células, restos de algum tiranossauro ou pterossauro, de uma ameba primordial, de uma libélula extinta. No ciclo do carbono, uma estrela é a mãe de todos e a vida inteira é uma grande família, unida pela química que nos permite existir.

domingo, 6 de setembro de 2009

Ciência e liberdade


Nunca se deve aceitar algo só porque foi dito por uma autoridade


Já que esta coluna cai na véspera do dia da Independência, achei oportuno revisitar um tema que está sempre presente na vida da gente: a questão da liberdade. Claro que, nestas breves linhas, eu não teria a pretensão de apresentar muitos pensamentos profundos sobre o que significa ser livre. Convido apenas os leitores a uma reflexão, iluminados, como sempre, pela luz da ciência.

Quando era garoto, gostava muito de citar a seguinte frase: "Ser livre é poder escolher ao que se prender". Outra versão é: "Quanto mais chaves você carrega no bolso, menos livre você é". Não há dúvida de que a primeira é mais filosófica. (Acho que é atribuída, talvez erroneamente, ao filósofo francês Jean-Paul Sartre.) Mas ambas dizem algo de semelhante: que liberdade e escolha andam de mãos dadas.

Existem, certamente, situações em que isso não é verdade: pessoas "presas" não por terem cometido algum crime, mas por serem aprisionadas por alguma ideologia que lhes é imposta. Por exemplo, as crianças que nascem em famílias ultrarreligiosas nunca têm a opção de refletir sobre os valores que lhes são impostos. Mesmo sem carregar chaves, estão presas até crescerem o suficiente para poder (ou não) se rebelar. O mesmo ocorre com os indivíduos que vivem em regimes políticos totalitários, onde a "verdade" é controlada pelo Estado.

Ou seja, a frase "ser livre é poder escolher ao que se prender" pressupõe que o indivíduo tem a liberdade de escolha. Isso nem sempre é verdade. Para sermos livres, precisamos ter livre acesso à informação. Só assim teremos o privilégio de poder escolher ao que vamos nos prender.

Daí o papel fundamental da educação, contanto que livre de censuras ideológicas. Já em torno de 50 a.C., o poeta romano Lucrécio celebrava a importância da educação na liberdade das pessoas. Sua preocupação era com a excessiva superstição dos romanos, que atribuíam tudo o que ocorria à ação de algum deus. Consequentemente, a maioria da população vivia aterrorizada. Só aqueles que usam a razão para desvendar o porquê das coisas podem de fato ser livres, dizia.

Só quem reflete sobre as causas das coisas, em vez de atribuí-las cegamente a causas sobrenaturais, é livre dos medos que assombram a vida. A educação deve fornecer ao indivíduo a capacidade de reflexão crítica, a habilidade de saber fazer perguntas e não de aceitar passivamente tudo o que lhe é dito. Essa habilidade, esse ceticismo, é um dos aspectos mais cruciais do treinamento de um cientista. Nunca se deve aceitar algo só porque foi dito por uma autoridade.

Essa atitude é exatamente oposta ao que ocorre em culturas conservadoras e repressivas. Mesmo que a ciência busque uma ordem no mundo material, sua essência é anárquica. Os grandes revolucionários da ciência, Copérnico, Galileu, Kepler, Newton, Einstein, Bohr, foram todos anárquicos a seu modo. Todos defendiam a sua liberdade de pensamento acima de tudo, recusando-se (ou quase, no caso de Galileu, sob ameaça da Inquisição) a aceitar o saber das autoridades. Para eles, ser livre é ter a coragem de pensar por si mesmo sobre os grandes problemas, na tentativa de chegar a uma verdade aceita pela maioria.

Quando penso em liberdade, penso nesses nomes, e em tantos outros -cientistas ou não- que lutaram para que hoje possamos ter a visão de mundo que temos. Se hoje somos mais livres, devemos agradecer a eles. Se há tantos longe de ser livres, é porque ainda temos muito o que fazer.

domingo, 30 de agosto de 2009

O eu no cérebro



Quem já tentou meditar sabe o quanto é difícil "calar a mente"

Nosso cérebro, tal qual o de tantos outros animais, exerce funções bem corriqueiras, como a de manter o funcionamento do corpo, as batidas cardíacas, a digestão, e a respiração, atividades que não precisam de concentração para serem feitas. Podemos dizer que são executadas pela parte do cérebro que trabalha como uma espécie de piloto automático, o "cruise control" da mente.

No caso de cérebros humanos, de longe os mais sofisticados do reino animal, uma outra função essencial é exercida: o senso de individualidade, de você saber quem você é, de como você se encaixa na sociedade e no mundo.Os cientistas estão aprendendo cada vez mais sobre como o cérebro humano mantêm o senso individual de ser ele mesmo -um senso misterioso desde os primórdios da humanidade, às vezes chamado de alma.

Neurocientistas estudam corriqueiramente a atividade cerebral, com a ajuda de instrumentos sofisticados como a PET (tomografia por emissão de pósitrons) e a fMRI (imagem por ressonância magnética funcional), que medem o fluxo sanguíneo: quanto maior o número de neurônios ativos, mais oxigenação é necessária e maior é o sinal registrado.

O que surpreendeu os cientistas foi o nível de atividade quando os cérebros dos pacientes estavam em "repouso", ou seja, quando não estavam focados em alguma tarefa explícita, como fazer um cálculo, escrever ou ouvir música. É nesses momentos que temos nossos devaneios diurnos, quando o pensamento parece ir à deriva, comandado por si mesmo.

Quem já tentou meditar sabe o quanto é difícil "calar a mente", acalmar a atividade incessante do cérebro.

Esse estado, uma espécie de modo de atividade cerebral de fundo (ACF, para simplificar) (do inglês "default mode network"), parece ter características semelhantes em todos os indivíduos saudáveis, mesmo que individualmente existam diferenças.

O foco de ação ocorre principalmente na região divisória entre os dois hemisférios cerebrais e no córtex frontal e posterior. O interessante é que, quando o indivíduo exerce uma atividade intelectual, como memorizar uma lista de palavras, essa atividade de fundo diminui. Mas, quando o indivíduo relembra memórias pessoais, ou tenta decidir entre escolhas alternativas de procedimento, o nível de ACF aumenta acima dos valores em repouso. Juntas, as regiões de córtex frontal e posterior, engajadas em manter a ACF, parecem criar o nosso senso de quem somos, de como nos colocamos no mundo e de como procedemos como indivíduos diante de diversos desafios e escolhas alternativas. Possivelmente, esse modo de funcionamento representa o centro de operações da mente humana.

Neurocientistas vêm investigando conexões entre a ACF e patologias psiquiátricas, da esquizofrenia à síndrome de estresse pós-traumático. Em um estudo com 115 esquizofrênicos e 130 pessoas saudáveis, realizado por Vince Calhoun e seus colaboradores da Universidade do Novo México, alguns dos processos relativos à ACF jamais "desligavam", dificultando que eles conseguissem se concentrar em tarefas comuns.

Outro estudo, com mulheres que sofreram traumas na infância, indicou falhas na conectividade entre os vários subprocessos da ACF. É sabido que pacientes com esse tipo de síndrome traumática podem perder o senso de identidade por um certo período de tempo. Aparentemente, a ACF vai criando ligações e desconectando outras conforme a criança vai crescendo. Nosso senso de quem somos vai mudando até a idade adulta, quando fica mais rígido. Ao menos para a maioria das pessoas.

domingo, 23 de agosto de 2009

Homo artisticus



Se a natureza cantava, os homens queriam cantar também

A Terra tem uma idade aproximada de 4,5 bilhões de anos.

Nossa espécie, o Homo sapiens, apareceu em torno de 200 mil anos atrás, na África. Se concentrássemos 4,5 bilhões de anos em uma hora, nosso aparecimento teria ocorrido há menos de dois décimos de segundo. Somos a presença mais recente neste planeta e nos achamos donos dele. Algo para refletir.

Evidências fósseis e genéticas indicam que grandes migrações da África em direção à Eurásia e à Oceania ocorriam já há 70 mil anos. A fala, parece que tínhamos há pelo menos 50 mil anos. Dos 200 mil anos que marcam a nossa presença na Terra, há apenas 10 mil nós nos organizamos em sociedades agrárias, capazes de se sustentarem com o plantio e colheita regular de espécies de vegetais domesticados.

Certamente, quando essas sociedades começaram a se organizar, alguns animais também foram domesticados.

Antes dessas sociedades agrárias, bandos de homens e mulheres corriam pelas savanas africanas e planícies eurasiáticas à procura de alimentos e abrigo. Os perigos eram muitos, de animais predadores e grupos inimigos a fenômenos naturais violentos, como misteriosos vulcões e terremotos. Para sobreviver, nunca se podia baixar a guarda.

Desde cedo, ficou claro aos nossos antepassados que a natureza tinha seus próprios ritmos, alguns regulares e outros irregulares. A linguagem nasceu tanto para facilitar a sobrevivência dos grupos quanto para imitar os sons ouvidos pelo mundo, de cachoeiras e trovões aos pássaros e os temidos tigres. Se a natureza cantava, os homens queriam cantar também.

Recentemente, foram descobertos os instrumentos musicais mais antigos, flautas feitas de ossos de abutres e mamutes, datando entre 35 mil e 40 mil anos atrás. Os objetos foram encontrados em uma região na Alemanha, provando que não só humanos haviam já saído da África então, como também haviam desenvolvido habilidades musicais e artesanais. Se o vento assobiava ao passar por frestas e galhos, se gotas caiam ritmicamente das folhas, os homens procuravam imitar esses sons, criando os instrumentos capazes de fazê-lo.

Apesar de não sabermos muito sobre os costumes dessa gente, é difícil evitar imagens, talvez um pouco românticas, do que ocorria então. A vida era difícil. Provavelmente poucos sobreviviam além dos 20 anos. Mas imagino que existisse uma abundância enorme de animais nos campos, mares e rios. Pinturas nas cavernas da Europa e da África, algumas datando de mais de 20 mil anos atrás, mostram uma enorme variedade de animais e também de cenas de caçadas e de rituais. Provavelmente grupos se reuniam nas cavernas para comer, dormir e celebrar uma boa caça. As pinturas podiam ser tanto ornamentos quanto desenhos ritualísticos que faziam parte de cerimônias religiosas.

Certamente o som das flautas e dos tambores acompanhava os rituais, talvez até na tentativa de imitar os grunhidos dos animais e os sons do ambiente natural onde viviam.

A música e a pintura não eram as únicas expressões artísticas dessas sociedades ancestrais. A escultura também. Figurinos conhecidos como Vênus do Paleolítico, datando de mais de 25 mil anos, mostram o corpo de mulheres bem dotadas de estrogênio, provavelmente símbolos de fertilidade. O impulso criativo parece ser tão antigo quanto a nossa espécie.

Do pouco que conhecemos a respeito dos nossos ancestrais, identificamos neles bastante do que somos hoje. A diferença é que eles viviam em comunhão com o mundo -e não em guerra com ele.

domingo, 16 de agosto de 2009

Tecnologia e inspiração



Não fosse a confiança em nossa criatividade, teorias audaciosas não surgiriam


Na semana passada, afirmei que tanto Kepler quanto Galileu, dois gigantes da história da ciência, fizeram muitas de suas descobertas usando instrumentos inovadores. No caso de Galileu, temos o telescópio, fora muitas técnicas experimentais que ele desenvolveu para a obtenção e análise de dados. No caso de Kepler, foram os dados obtidos por Tycho Brahe com seus instrumentos de alta precisão (para o final do século 16) que lhe permitiram provar que as órbitas planetárias são elípticas. Queria hoje revisitar a importância dos instrumentos no avanço científico.

Existe uma visão romântica do cientista, inspirada sem dúvida por Einstein, daquele sujeito solitário que sonha o mundo em sua cabeça. Desses sonhos, e mais muita genialidade e intuição, saem ideias e teorias fantásticas, capazes de revolucionar todo o conhecimento humano. Eu digo isso pois, quando estudante, também pensava que esse era o modelo mais atraente de cientista, o gênio que desvenda o Universo em sua mente.

Na verdade, há poucos exemplos assim na história da ciência. Einstein é um deles, com certeza. Talvez seja o único deles. (E com ressalvas!) Outros, mesmo o grande Isaac Newton e, mais recentemente, Niels Bohr e Werner Heisenberg, ou mesmo Richard Feynman e Murray Gell-Mann, criaram teorias novas, sem dúvida, mas sempre seguindo inspirações vindas de experimentos ou da análise detalhada de dados. Nas outras ciências naturais - a química, a biologia, a geologia etc.-, isso é ainda mais evidente.

Quando os dados não existem, teorias ficam perdidas. Isso não significa que teóricos não devam especular.

Einstein sabia muito bem que suas teorias tinham consequências observacionais dramáticas. No caso da teoria da relatividade especial, a ausência do amado e esperado éter; no caso da relatividade geral, a curvatura do espaço e seus efeitos na propagação da luz vinda de estrelas. Teorias que não fazem previsões passíveis de teste não são incluídas no cânone científico.

Afinal, a função da ciência é explicar o mundo. E que mundo é esse? Aquele que podemos medir. Sem medidas, caímos no país do vale-tudo, e pouco de valor podemos afirmar. Ao menos de valor científico.

Como sempre, nem tudo é tão simples. Certas teorias fazem previsões que a tecnologia ainda não pode testar. A esperança, claro, é que seja uma questão de tempo e que, um dia, nossos instrumentos cheguem lá. Caso essa confiança em nossa criatividade tecnológica não existisse, teorias mais audaciosas não poderiam nem ser propostas, ou, se propostas, não seriam levadas muito a sério.

Em física de altas energias, por exemplo, uma partícula chamada Higgs foi proposta nos anos sessenta para explicar como as outras partículas da natureza, do elétron aos quarks que compõem os prótons e nêutrons, ganham suas massas. Até agora, não sabemos se o Higgs existe ou não. Passadas décadas, experimentos mostraram que a massa do Higgs é mais alta do que o valor inicialmente esperado; caso contrário, ele já teria sido achado (se existir). Com o LHC, o novo acelerador de partículas na Europa que deverá entrar em funcionamento em alguns meses, chegamos a uma situação curiosa: a máquina tem tal potência que, ou acha o Higgs, ou prova que ele não existe.

Essa é uma situação ideal em ciência: o momento da verdade. O fato de que levou 40 anos para que nossa tecnologia chegasse a esse ponto é um argumento a favor das teorias mais audaciosas. Mas é também contra elas. Pois de audacioso o Higgs não tem nada quando comparado a outras ideias na praça, que dificilmente poderão ser testadas nas próximas décadas ou sabe-se lá quando.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

O Ceticismo do Cientista


Volta e meia, leitores me questionam sobre o que lhes parece ser o exagerado – ou pouco razoável – ceticismo do cientista.

As abordagens variam. Algumas vezes, acham inconsistente um cientista se dizer ateu quando não pode responder a certas questões básicas, como, por exemplo, a origem do Universo ou da vida. Dizem eles: “Vocês falam do Big Bang, o evento que iniciou tudo. Mas de onde veio a energia que provocou esse evento? Como falar de algo material surgindo do nada, sem a ação de um ser imaterial, isto é, divino?” Outras críticas dizem respeito à descrença em fenômenos paranormais, sobrenaturais, OVNIs e seres extraterrestres, espiritismo etc.

Segundo estatísticas recentes feitas pela Fundação Gallup nos Estados Unidos, em torno de 50% dos americanos acreditam em percepção extra-sensorial. Mais de 40% acreditam em possessões demoníacas e casas mal-assombradas, e em torno de 30% crêem em clarividência, fantasmas e astrologia. Não conheço estatísticas semelhantes para o Brasil, mas imagino que os números devam ser no mínimo comparáveis.


Sem a menor dúvida, a luta do cético é ingrata; ele estará sempre em minoria. Existem muito mais colunas sobre astrologia do que sobre astronomia ou ciência nos jornais e revistas do Brasil e do mundo. Mas, sem ceticismo, a sociedade estaria fadada a ser controlada por indivíduos oportunistas que se alimentam dessa necessidade muito humana de acreditar.


Ela existe para todos não há dúvidas. Mesmo o cético deve acreditar no poder da razão para desvendar os muitos mistérios que existem. A paixão que o alimenta é a mesma do crente, mas direcionada em sentido oposto.

Devido a esse ceticismo, muitas vezes os cientistas (incluindo este que lhes escreve) são acusados de insensibilidade. De jeito nenhum. Eu tenho grande respeito pelos que acreditam. O que me é difícil aceitar é a exploração que existe em torno dessa necessidade, a exploração da fé.

Na Índia, por exemplo, recentemente apareceram milhares de “homens-deuses”, que se dizem meio deuses, meio gente. No México, funcionários do governo freqüentam seminários sobre como usar o poder dos anjos. O Peru está cheio de psíquicos, enquanto na França são aromaterapeutas. Testes em laboratório visando verificar poderes extra-sensoriais invariavelmente falham.

O famoso paranormal israelense Uri Geller, que dobrou garfos na frente de milhões nos anos 70, foi desmascarado como fraudulento. O meu orientador de doutorado na Inglaterra, impressionado com Geller e outros médiuns, montou um laboratório para testar seus poderes. Ele o fez com ótimas intenções, para explorar a origem desses poderes de modo a divulgá-las para o resto da humanidade. Mas falharam todos.

Voltando à questão do Big Bang. A religião não deve existir para tapar os buracos da nossa ignorância. Isso a desmoraliza. É verdade, não podemos ainda explicar de forma satisfatória a origem do Universo. Existem inúmeras hipóteses, mas nenhuma muito convincente.

Mesmo se tivéssemos uma explicação científica, sobraria uma outra questão: o que determinou o conjunto das leis físicas que regem este Universo? Por que não um outro? Existe aqui uma confusão sobre qual é a missão da ciência. Ela não se propõe a responder a todas as questões que afligem o ser humano.

A ciência, ou melhor, a descrição científica da natureza, é uma linguagem criada pelos homens (e mulheres) para interpretar o cosmo em que vivemos. Ela não é absoluta, mas está sempre em transição, gradativamente aprimorada pela validação empírica obtida através de observações. A ciência é um processo de descoberta, cuja língua é universal e, ao menos em princípio, profundamente democrática: qualquer pessoa, com qualquer crença religiosa ou afiliação política, de diferentes classes sociais e culturas pode participar desse debate. (Claro, na prática a situação é mais complexa.)

Ela não terá jamais todas as respostas, pois nem sabemos todas as perguntas. O cético prefere viver com a dúvida do que aceitar respostas que não podem ser comprovadas, que são aceitas apenas pela fé. Para ele, o não-saber não gera insegurança, mas sim mais apetite pelo saber. Essa talvez seja a lição mais importante da ciência, nos ensinar a viver com a dúvida, a idolatrá-la. Pois, sem ela, o conhecimento não avança.

domingo, 9 de agosto de 2009

1609



Quando a tecnologia nos permite ver mais longe, visões de mundo podem colapsar


Já são passados 400 anos desde que dois feitos mudaram para sempre a nossa relação com o cosmo. Apesar de um deles ser bem mais famoso do que o outro, ambos contribuíram radicalmente para a mudança de visão de mundo que inaugurou a era copernicana do conhecimento, quando a Terra (e o homem) deixaram de ser o centro -geométrico e teológico- do Universo. Pois mesmo que o polonês Nicolau Copérnico tenha publicado o seu grande livro "Sobre as Revoluções das Esferas Celestes" em 1543, o impacto de suas ideias só se deu após o trabalho audacioso de Galileu Galilei e Johannes Kepler, que culminou na publicação de dois livros, em 1609 e 1610.

Vale a pena pôr as coisas em perspectiva. O que Galileu e Kepler (e, em parte, Giordano Bruno, Descartes e outros) conseguiram foi mudar a perspectiva cósmica de sua época, redefinindo o lugar da religião na vida das pessoas. Como disse Galileu, a Bíblia deve ensinar às pessoas como ir aos céus e não como os céus vão.

A partir da obra deles, ficou cada vez mais claro que a autoridade divina não deveria mais interferir na busca humana pela compreensão do mundo em que vivemos. Os rumos da fé deveriam ser outros. Tanto para Galileu quanto para Kepler, a natureza era, sem dúvida, obra de Deus. Mas o decorrer dos fenômenos naturais se dava sem a constante interferência divina. Por outro lado, a arquitetura cósmica podia ser descrita através de leis matemáticas precisas, essas sim, revelando algo da natureza de Deus.

Apesar de as origens do telescópio serem nebulosas, sabe-se que, em outubro de 1608, o holandês Hans Lipperhey entrou com um pedido de patente de um instrumento "capaz de visualizar objetos distantes como se estivessem perto" (mais detalhes da história no portal http://galileo. rice.edu/sci/ instruments/telescope.html). As novas rapidamente se espalharam pela Europa e, em meados de 1609, Galileu havia já construído o seu. Mesmo que outros tenham apontado o telescópio aos céus até mesmo antes de Galileu, foram as descobertas do italiano que mudaram a história.

Com o instrumento, ele viu que a Lua não era perfeita, e sim cheia de crateras e montanhas; que Vênus tinha fases, como a Lua; que Júpiter tinha quatro luas; que Saturno tinha "orelhas"; que a Via Láctea era uma enorme coleção de estrelas; e que o Sol tinha manchas na superfície. Nenhuma dessas descobertas confirmava o modelo de Copérnico. Mas, em conjunto, apoiavam a noção de que o Sol, e não a Terra, era o centro do cosmo.

Nesse meio tempo, Kepler trabalhava em Praga, decifrando os dados acumulados pelo grande astrônomo dinamarquês Tycho Brahe. Observando os céus ainda no século 16 e, portanto, sem o telescópio, Brahe usou seus instrumentos de alta precisão para mapear os movimentos dos planetas nos céus. Com muita paciência e genialidade, Kepler, um copernicano convicto, mostrou que Marte tinha uma órbita elíptica em torno do Sol. Nenhum outro modelo estava de acordo com os dados de Brahe. Em 1609, Kepler publica o seu livro "Astronomia Nova", no qual argumenta que a elipse, e não o círculo -como se acreditava desde os primórdios da astronomia-, descrevia o movimento celeste de Marte (e, mais tarde, de todos os planetas).

Prenunciando a lei da gravidade a ser descoberta por Newton, Kepler especulou também que alguma força emanando do Sol era a responsável pelas órbitas planetárias. É bom lembrar que ambos os cientistas basearam-se em descobertas feitas com novos instrumentos. Quando a tecnologia nos permite ver mais longe, mundos antes imaginários podem se tornar reais. E visões de mundo podem colapsar.