domingo, 27 de julho de 2008

O mito pitagórico




O poder de uma idéia reside no fato de ela ser efetiva

Para a maioria das pessoas, o nome Pitágoras é associado ao teorema que relaciona a hipotenusa aos catetos de um triângulo retângulo. Lembro que, na escola, o professor nos ensinou que Pitágoras foi o fundador da matemática, o primeiro pensador a criar a estrutura de teoremas e provas que a caracteriza.

Lendo sobre sua vida; aprendemos que Pitágoras viveu em torno de 550 a.C., que fundou uma seita filosófica que combinava misticismo e matemática e que foi o primeiro a desenvolver a noção de que os números são a essência da realidade: se quisermos compreender a estrutura da natureza, o funcionamento das coisas, basta explorarmos as relações entre os números. Ou seja, a Pitágoras é atribuído o título de pai da ciência.

Arthur Koestler, em seu maravilhoso livro "Os Sonâmbulos", escreveu que Pitágoras foi o "fundador da cultura européia em sua vertente mediterrânea ocidental". O filósofo e matemático Bertrand Russell escreveu em 1946 que "Pitágoras foi intelectualmente um dos homens mais importantes da história". Realmente impressionante. Pena que quase tudo acima seja falso, resultado de uma elaborada fabricação.

Não há dúvida de que Pitágoras criou mesmo uma seita no sul da Itália, e de que nela se especulava sobre a relação entre os números e a realidade. Mas o objetivo não era criar uma descrição científica da natureza; o foco das atividades parecia ser uma numerologia que atribuía significado mágico aos números.

Por exemplo, ao casamento era atribuído o número 5, pois é a soma do primeiro ímpar, representando os homens (3) e do primeiro par, representando as mulheres (2). Aparentemente, o número 1 não contava. O desafio maior encontrado pelos historiadores é que não existe sequer uma linha escrita por Pitágoras. As fontes são todas póstumas, como é o caso de Aristóteles, que escreveu em torno de 150 anos após a morte de Pitágoras.

Segundo o historiador Walter Burkert, as fontes do mito pitagórico, que dizem que Pitágoras criou uma visão unificadora da natureza descrevendo-a a partir de números e geometria foram deliberadamente criadas. De acordo com elas, ele desenvolvera a relação entre os tons da música e os números inteiros e, também, pregava que a essência da natureza é matemática e que a missão do filósofo é desvendar essa essência para, com isso, compreender a mente de Deus.

Essa criação coube a dois discípulos de Platão, Espeusipo e Xenócrates, ambos líderes da Academia após a morte de seu ilustre mestre.

O que os discípulos tentaram, ao aumentar o conteúdo das descobertas dos pitagóricos, foi atribuir a Platão a continuidade da obra de Pitágoras que, segundo eles, foi o apóstolo de uma filosofia matemática que antecipava vários aspectos da metafísica platônica. Segundo outra lenda, na entrada da Academia, podia-se ler a inscrição: "Que ninguém ignorante de geometria entre".

A estratégia funcionou. O mito pitagórico cresceu com os séculos, influenciando profundamente os místicos neoplatônicos da Idade Média e da Renascença, que contribuíram ainda mais na sua elaboração.

No meu livro "A Dança do Universo", onde descrevo em mais detalhe a lenda e o legado pitagórico, afirmei que "o poder de um mito não está em ele ser falso ou verdadeiro, mas em ser efetivo". Não é tão importante se foi ou não Pitágoras o criador dessa relação entre os números e a natureza.

O mito inspirou grandes pensadores, de Copérnico e Kepler a Einstein. E influencia até hoje, na busca por uma descrição unificada da realidade física baseada na geometria.

domingo, 20 de julho de 2008

Medo dos físicos



O mundo não vai acabar por causa dos miniburacos negros do LHC


Ainda neste ano deve entrar em funcionamento a maior máquina já criada pelos homens (e mulheres), o Grande Colisor de Hádrons, ou LHC. O projeto, com custo estimado em US$ 8 bilhões, envolveu milhares de físicos, engenheiros e técnicos. Seu objetivo principal é explorar uma das questões mais fundamentais da ciência, a origem da massa.

Segundo a física moderna, a matéria é composta por pequenos corpúsculos indivisíveis, as partículas elementares. Os colisores de partículas são máquinas que aceleram esses corpúsculos uns contra os outros ao longo de circuitos semelhantes à pistas ovais de corrida, ocasionalmente provocando colisões frontais entre eles.

O segredo dos colisores está na violência das colisões: as partículas são aceleradas até velocidades próximas à da luz; ao colidirem, sua energia de movimento (ou energia cinética) é transformada -segundo a famosa relação E=mc2- em outros corpúsculos. Com isso, físicos podem estudar a composição da matéria e as diferenças entre as massas das partículas.

Mas o assunto hoje não é a física detalhada do LHC, e sim o medo que a máquina tem gerado. Quando o Centro Europeu de Física Nuclear, o Cern, a casa do LHC, anunciou que dentre as possíveis descobertas está a produção de miniburacos negros, o público logo se interessou. "Opa! Buracos negros sugam tudo, certo? Será que esses físicos loucos vão criar um monstro que vai sugar a Terra inteira, criando o próprio Apocalipse?"

Rapidamente, a notícia motivou inúmeros artigos e discussões em blogs. Um morador do Havaí chegou até a entrar na justiça com uma ação para tentar deter o LHC, alegando que físicos inconseqüentes poderiam destruir o mundo.

O temor é completamente infundado. É verdade que o LHC atingirá energias maiores do que no interior do Sol. Mas a diferença essencial é de escala. Quando prótons (os corpúsculos que irão colidir no LHC) colidem, a energia liberada é equivalente a de um bando de mosquitos. O que o LHC fará magnificamente é concentrar essa energia numa escala submicroscópica. Como afirma o relatório divulgado pelos especialistas de segurança do CERN, quando você bate palmas para esmagar um mosquito, está criando uma colisão com energia muito maior do que a do LHC. E ninguém cria mini buracos negros batendo palmas.

(Aliás, uma imagem bem propícia a um conto de ficção científica...)

Em princípio, é possível que a colisão de prótons crie um miniburaco negro. Mas esse buraco negro não tem nada a ver com algo que pode se tornar um gigante, tragando a massa terrestre e nós com ela. Miniburacos negros têm massa microscópica e vivem por muito pouco tempo. Como propôs Stephen Hawking, esses objetos perdem massa -evaporam- muito mais rapidamente do que são capazes de ganhá-la. Isso porque sua massa é pequena demais para exercer atração eficiente sobre outros objetos. Portanto, mini buracos negros -se criados no LHC, uma possibilidade no mínimo muito remota- irão desaparecer rapidamente, sem criar qualquer efeito detectável macroscopicamente.

Por trás do pânico está o medo do desconhecido, de estarmos nos debruçando sobre uma janela que dá para terras nunca dantes vislumbradas.

Juntando a isso o fato de físicos serem mesmo capazes de destruir o mundo -haja visto as bombas de hidrogênio- e mais as tantas histórias e filmes de ficção científica sobre o cientista louco cuja invenção foge do controle (iniciado com Frankenstein), fica clara a origem do temor. Mas o leitor pode ficar tranqüilo, pois nada de apocalíptico vai ocorrer. A menos, claro, que a máquina não funcione.

domingo, 13 de julho de 2008

A vida vista de longe




Os cientistas da Terra é que devem ir em busca dos ETs


"A vida busca a vida", escreveu o celebrado astrônomo e divulgador de ciência Carl Sagan. Sendo assim, é no mínimo curioso que ainda não tenhamos recebido visitas de extraterrestres.

Afinal, mesmo se nos limitarmos à nossa galáxia, a ilha de cerca de 300 bilhões de estrelas da qual o Sol e os seus planetas fazem parte, há estrelas e planetas demais para que nenhum tenha desenvolvido vida, incluindo a mais rara vida inteligente. Esse é o famoso paradoxo de Fermi: dado o número de estrelas da Via Láctea e os seus 10 bilhões de anos (o dobro da idade do Sol), os ETs teriam tido tempo de sobra para desenvolver tecnologias capazes de cruzar as enormes distâncias interestelares e vir nos visitar. E a verdade é que, tirando as hipóteses absurdas de Erich von Däniken, segundo a qual ETs estiveram já por aqui e ajudaram a construir as pirâmides egípcias, as linhas de Nazca e outros projetos grandiosos de nossos antepassados (e descontando os relatos de indivíduos sem maior prova do que narrativas ou fotos suspeitas), os ETs nunca estiveram por aqui. Se estiveram, não parecem estar interessados em contatar cientistas ou políticos para um papo mais sério, limitando-se a exibir suas espaçonaves nas noites e a realizar experimentos com o aparelho reprodutor humano.

Dada esta crua realidade, são os cientistas da Terra que devem ir em busca dos ETs. O problema que enfrentamos são as enormes distâncias. Infelizmente, o espaço entre as estrelas é muito grande e essencialmente vazio. Temos procurado por vida na nossa vizinhança, nos planetas e nas luas do Sistema Solar. Mas, até agora, não encontramos nada, e é pouco provável que encontremos mesmo uma mísera bactéria no subsolo marciano, ou no oceano sob a espessa camada de gelo que cobre Europa, uma das luas de Júpiter. A vida, mesmo não sendo exclusividade do nosso planeta, é rara.

Tomemos como exemplo nossa estrela vizinha, a Alfa-Centauro. Em números arredondados, ela fica a 5 anos-luz do Sol: a luz demora cinco anos de lá até aqui. Isso equivale a uma distância aproximada de 50 trilhões de quilômetros (5 x 1013km). Com tecnologias atuais, em que espaçonaves atingem velocidades de cerca de 50 mil km/h, demoraríamos em torno de 115 mil anos para chegar lá... Obviamente não será esse o caminho para descobrirmos se existe vida fora da Terra. Seria realmente fascinante se inteligências extraterrestres tivessem desenvolvido tecnologias capazes de cobrir essas distâncias com mais eficiência. Por que eles não vêm aqui nos explicar como se faz? O jeito é procurarmos por vida remotamente. ETs que tivessem telescópios dotados com espectrógrafos poderiam analisar a composição química da atmosfera terrestre. Veriam a enorme quantidade de oxigênio e água; veriam ozônio, metano, óxido nitroso, e concluiriam que aqui existem ciclos de conversão de energia solar em metabolismo típico de seres vivos. Oxigênio, em particular, é um excelente sinal de vida. Em geral, quando presente, é rapidamente usado na oxidação de rochas. Livre, como por aqui, é prova de que algo o está produzindo com muita eficiência. Algo vivo.

Vários projetos futuros farão o mesmo; procurarão por vida na atmosfera de planetas girando em torno de outras estrelas. A vida, se existir, dependerá da estrela que lhe provê energia; estrelas mais fracas do que o Sol poderão ter plantas pretas, para fixar mais energia; nas mais fortes, as plantas terão de refletir parte da luz; nas estrelas que emitem muito ultravioleta, a vida terá que ser embaixo d'água para se proteger da radiação. Se vida busca vida, parece que somos nós que teremos que encontrá-la.

domingo, 6 de julho de 2008

O céu de Ulisses



Se os deuses podiam apagar o Sol por minutos, poderiam fazê-lo para sempre


Houve uma época em que os homens viviam bem mais próximos do céu. E o céu dos homens. Imagine um mundo sem luz elétrica, esparsamente povoado, um mundo praticamente sem tecnologia, fora os arados dos campos e os metais das ferramentas e das espadas. Nesse mundo, os céus tinham um significado muito diferente do que têm hoje. A sobrevivência das pessoas dependia de sua regularidade e clemência.

Olhar para os céus e aprender os seus ciclos era o único modo de marcar a passagem do tempo. Logo ficou claro que os céus tinham dois temperamentos: um, bem comportado, repetitivo, como o nascer e o pôr do Sol a cada dia, as quatro fases da Lua e as quatro estações do ano. Outro, imprevisível, rebelde e destruidor, o senhor das tempestades e furacões, dos estranhos cometas que atravessam lentamente os céus com sua luz fantasmagórica e dos eclipses totais do Sol, quando dia virava noite e as estrelas e os planetas faziam-se visíveis e o Sol tingia-se de um negro profundo.

Os céus eram mágicos, a morada dos deuses. O significado da vida e da morte, a previsão do futuro, o destino dos homens, tanto o dos líderes quanto o de seus súditos, estavam escritos nos astros. Fenômenos celestes inesperados eram profundamente temidos. Dentre eles, os eclipses eram dos piores: se os deuses podiam apagar o Sol por alguns minutos, certamente poderiam fazê-lo permanentemente. Eclipses eram uma amostra do fim dos tempos.

No mês passado, dois astrônomos publicaram um estudo no prestigioso jornal acadêmico americano "PNAS" ("Proceedings of the National Academy of Sciences") em que argumentam que o famoso poema épico de Homero, a "Odisséia", faz referência a um eclipse que ocorreu de fato no mar Egeu dia 16 de abril de 1178 a.C. [Ciência, 24/6/08]. A idéia não é nova, tendo sido proposta cem anos atrás por astrônomos interessados em datar o saque de Tróia e o retorno do herói Odisseu (Ulisses para os Romanos) para sua adorada (e extremamente paciente) Penélope, que esperou por dez anos. A novidade do novo trabalho é a confluência de outros eventos astronômicos que dão apoio à tese de que Homero tinha o eclipse em mente quando escreveu as famosas linhas: "O Sol sumiu do céu e uma escuridão funesta cobriu tudo!"

Vasculhando o texto do misterioso bardo cego, os astrônomos encontraram referências à lua nova, condição básica para um eclipse total, às estrelas usadas por Odisseu para se orientar no retorno à casa e à aparição de Vênus na madrugada logo antes da chegada em Ítaca.

O mais fascinante da descoberta é que Homero supostamente escreveu a Odisséia no final do século 8º a.C., mais de 400 anos após o evento. Não existem quaisquer relatos de eclipses datando de antes do século 8º a.C. (Se existiram, foram perdidos.) O fato de Homero ter mencionado o eclipse mostra o imenso efeito que o fenômeno exercia. O terror que despertou ficou gravado na memória coletiva, passado oralmente de geração em geração, até chegar aos ouvidos do poeta, que o usou magistralmente para realçar o clima da vingança de Ulisses, quando mata aqueles que cobiçavam a mão (e o corpo) de sua Penélope.

Existe aqui uma bela complementaridade entre ciência e arte. Ao mesmo tempo em que o poeta usa alegoricamente um fenômeno celeste em seu texto para tornar mágico um momento extremamente dramático em sua história, a regularidade dos céus, descrita pelas leis da gravitação de Newton, permite que o passado celeste seja reconstruído em detalhe. Homero sabia bem que, quanto mais realista a ficção, maior o seu impacto.