domingo, 6 de julho de 2008

O céu de Ulisses



Se os deuses podiam apagar o Sol por minutos, poderiam fazê-lo para sempre


Houve uma época em que os homens viviam bem mais próximos do céu. E o céu dos homens. Imagine um mundo sem luz elétrica, esparsamente povoado, um mundo praticamente sem tecnologia, fora os arados dos campos e os metais das ferramentas e das espadas. Nesse mundo, os céus tinham um significado muito diferente do que têm hoje. A sobrevivência das pessoas dependia de sua regularidade e clemência.

Olhar para os céus e aprender os seus ciclos era o único modo de marcar a passagem do tempo. Logo ficou claro que os céus tinham dois temperamentos: um, bem comportado, repetitivo, como o nascer e o pôr do Sol a cada dia, as quatro fases da Lua e as quatro estações do ano. Outro, imprevisível, rebelde e destruidor, o senhor das tempestades e furacões, dos estranhos cometas que atravessam lentamente os céus com sua luz fantasmagórica e dos eclipses totais do Sol, quando dia virava noite e as estrelas e os planetas faziam-se visíveis e o Sol tingia-se de um negro profundo.

Os céus eram mágicos, a morada dos deuses. O significado da vida e da morte, a previsão do futuro, o destino dos homens, tanto o dos líderes quanto o de seus súditos, estavam escritos nos astros. Fenômenos celestes inesperados eram profundamente temidos. Dentre eles, os eclipses eram dos piores: se os deuses podiam apagar o Sol por alguns minutos, certamente poderiam fazê-lo permanentemente. Eclipses eram uma amostra do fim dos tempos.

No mês passado, dois astrônomos publicaram um estudo no prestigioso jornal acadêmico americano "PNAS" ("Proceedings of the National Academy of Sciences") em que argumentam que o famoso poema épico de Homero, a "Odisséia", faz referência a um eclipse que ocorreu de fato no mar Egeu dia 16 de abril de 1178 a.C. [Ciência, 24/6/08]. A idéia não é nova, tendo sido proposta cem anos atrás por astrônomos interessados em datar o saque de Tróia e o retorno do herói Odisseu (Ulisses para os Romanos) para sua adorada (e extremamente paciente) Penélope, que esperou por dez anos. A novidade do novo trabalho é a confluência de outros eventos astronômicos que dão apoio à tese de que Homero tinha o eclipse em mente quando escreveu as famosas linhas: "O Sol sumiu do céu e uma escuridão funesta cobriu tudo!"

Vasculhando o texto do misterioso bardo cego, os astrônomos encontraram referências à lua nova, condição básica para um eclipse total, às estrelas usadas por Odisseu para se orientar no retorno à casa e à aparição de Vênus na madrugada logo antes da chegada em Ítaca.

O mais fascinante da descoberta é que Homero supostamente escreveu a Odisséia no final do século 8º a.C., mais de 400 anos após o evento. Não existem quaisquer relatos de eclipses datando de antes do século 8º a.C. (Se existiram, foram perdidos.) O fato de Homero ter mencionado o eclipse mostra o imenso efeito que o fenômeno exercia. O terror que despertou ficou gravado na memória coletiva, passado oralmente de geração em geração, até chegar aos ouvidos do poeta, que o usou magistralmente para realçar o clima da vingança de Ulisses, quando mata aqueles que cobiçavam a mão (e o corpo) de sua Penélope.

Existe aqui uma bela complementaridade entre ciência e arte. Ao mesmo tempo em que o poeta usa alegoricamente um fenômeno celeste em seu texto para tornar mágico um momento extremamente dramático em sua história, a regularidade dos céus, descrita pelas leis da gravitação de Newton, permite que o passado celeste seja reconstruído em detalhe. Homero sabia bem que, quanto mais realista a ficção, maior o seu impacto.

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