sábado, 29 de janeiro de 2011

Será que máquinas podem amar?


Qual o nível de sofisticação cognitiva necessário para uma criatura se apaixonar e sentir efetivamente o que é o amor?

FIM DE SEMANA passado, revi o clássico de ficção científica "Blade Runner: o caçador de androides", de 1982, baseado no livro de Philip Dick. O filme, dirigido por Ridley Scott e estrelado por Harrison Ford, passa-se em 2019, numa Los Angeles futurística. O enredo levanta questões sobre a relação homem e máquina que devem ser revisitadas. Pela perspectiva de 2011, a primeira coisa que notamos é como a visão de futuro do filme está errada.

Carros voam e Los Angeles, sob forte e constante chuva, está entupida de gente e sob noite eterna. Parece mais Xangai na hora do rush do que a ensolarada casa de Hollywood.

Todo mundo fuma, até os androides. Difícil entender porque alguém queira viver por lá. Mas o filme gira justamente em torno da vida: do desejo de se estar vivo.

O casamento da engenharia genética com a inteligência artificial atingiu um nível de sofisticação que hoje não passa de um sonho. Várias corporações produzem robôs/clones chamados replicantes. A Tyrell Corp., controlada pelo cientista Eldon Tyrell, tem como slogan "replicantes genéticos: mais humanos do que os humanos".

Mas os androides foram banidos da Terra e trabalham como escravos em colônias do sistema solar. O enredo revolve em torno de quatro replicantes perigosos, que escaparam e se escondem no caos da cidade.

Voltaram à procura de seu criador, Dr. Tyrell, para convencê-lo a aumentar seu tempo de vida, que é limitado a quatro anos. Máquinas tocadas pela vida querem viver mais: primeiro tema importante.

Enquanto isso, Dr. Tyrell desenvolveu um novo projeto: Rachael, uma replicante belíssima que não sabe se é humana ou máquina.

Tyrell implantou memórias em Rachael, usando a vida da sua sobrinha. Orgulhosa, Rachael mostra a foto de quando tinha seis anos, ao lado de sua "mãe". Quando você tem um passado, já não é mais um robô: outro tema importante.

Ford é um "blade runner", um destruidor de replicantes. Ele submete Rachael ao teste de Voigt-Kampff (fictício) que determina se uma criatura é humana ou não.

Mas os resultados são ambíguos. Temos o Teste de Turing, que tenta discernir entre humanos e computadores através de perguntas feitas em terminais. O assunto é controverso, mas algumas máquinas já conseguem enganar humanos.

No filme, os androides são inteligentes e belíssimos, quase deuses. Ford se apaixona por Rachael, e a ensina a "amá-lo" de volta. Ou iludi-lo que o ama. Qual o nível de sofisticação cognitiva necessário para uma criatura sentir amor?

Existem inúmeros exemplos na literatura de humanos que amam autômatos ou humanoides: Pigmalião se apaixona pela estátua que esculpiu; no conto de Hoffmann, Nathanael se apaixona pela autômata Olímpia; Geppetto e Pinóquio etc.

Muita gente já procura a companhia de robôs. No Japão, androides são criados para fazer companhia aos idosos solitários, crianças brincam com robôs e bonecas sexuais custam milhares de dólares.
Se as pessoas carentes se contentam com menos, enquanto robôs ficam cada vez mais "humanos", não é difícil antever futuras uniões entre humanos e máquinas. Mas quando, então, deixaremos de chamá-los de "máquinas"?

sábado, 22 de janeiro de 2011

A essência da realidade física




Não há dúvida, a mecânica quântica tem mistérios. Mas é bom lembrar que ela é uma construção da mente humana


VIVEMOS NUM mundo quântico.

Talvez não seja óbvio, mas sob nossa experiência do real -contínua e ordenada- existe uma outra realidade, que obedece a regras bem diferentes. A questão é, então, como conectar as duas, isto é, como começar falando de coisas que sequer são "coisas" -no sentido de que não têm extensão espacial, como uma cadeira ou um carro- e chegar em cadeiras e carros.

Costumo usar a imagem da "praia vista à distância" para ilustrar a transição da realidade quântica até nosso dia a dia: de longe, a praia parece contínua. Mas de perto, vemos sua descontinuidade, a granularidade da areia. A imagem funciona até pegarmos um grão de areia. Não vemos sua essência quântica, porque cada grão é composto de trilhões de bilhões de átomos. Com esses números, um grão é um objeto "comum", ou "clássico".

Portanto, não enxergamos o que ocorre na essência da realidade física. Temos apenas nossos experimentos, e eles nos dão uma imagem incompleta do que ocorre.

A mecânica quântica (MQ) revolve em torno do Princípio de Incerteza (PI). Na prática, o PI impõe uma limitação fundamental no quanto podemos saber sobre as partículas que compõem o mundo. Isso não significa que a MQ é imprecisa; pelo contrário, é a teoria mais precisa que há, explicando resultados de experimentos ao nível atômico e sendo responsável pela tecnologia digital que define a sociedade moderna.

O problema com a MQ não é com o que sabemos sobre ela, mas com o que não sabemos. E, como muitos fenômenos quânticos desafiam nossa intuição, há uma certa tensão entre os físicos a respeito da sua interpretação. A MQ estabelece uma relação entre o observador e o que é observado que não existe no dia a dia. Uma mesa é uma mesa, independentemente de olharmos para ela. No mundo quântico, não podemos afirmar que um elétron existe até que um detector interaja com ele e determine sua energia ou posição.

Como definimos a realidade pelo que existe, a MQ parece determinar que o artefato que detecta é responsável por definir a realidade. E como ele é construído por nós, é a mente humana que determina a realidade.

Vemos aqui duas consequências disso. Primeiro, que a mente passa a ocupar uma posição central na concepção do real. Segundo, como o que medimos vem em termos de informação adquirida, informação passa a ser o arcabouço do que chamamos de realidade. Vários cientistas, sérios e menos sérios, veem aqui uma espécie de teleologia: se existimos num cosmo que foi capaz de gerar a mente humana, talvez o cosmo tenha por objetivo criar essas mentes: em outras palavras, o cosmo vira uma espécie de deus!

Temos que tomar muito cuidado com esse tipo de consideração. Primeiro, porque em praticamente toda a sua existência (13,7 bilhões de anos), não havia qualquer mente no cosmo. E, mesmo sem elas, as coisas progrediram perfeitamente. Segundo, porque a vida, especialmente a inteligente, é rara. Terceiro, porque a informação decorre do uso da razão para decodificar as propriedades da matéria. Atribuir a ela uma existência anterior à matéria, a meu ver, não faz sentido. Não há dúvida de que a MQ tem os seus mistérios.

Mas é bom lembrar que ela é uma construção da mente humana.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O instinto assassino (revisitado)


Se o medo é responsável pelo impulso assassino, o primeiro passo é a criação de meios para aliviá-lo

Volto hoje à questão levantada na semana passada, sobre o "instinto assassino". Argumentei, então, que a espécie humana tem muito trabalho pela frente até atingir um patamar que podemos chamar de altamente civilizado. Chamei nossa propensão a matar nossos semelhantes de "instinto assassino". Ponderando essa denominação e conversando com colegas e leitores, acredito que um melhor termo seja "impulso" assassino.

De fato, "instinto" é associado a um padrão de comportamento inato, responsável por certos estímulos que são inerentes à criatura e não aprendidos. De alguma forma, devido ao processo de seleção natural, esses instintos fazem parte do código de comportamento do animal. Vemos tartarugas bebês, assim que saem dos ovos, irem em direção ao oceano, vemos os incríveis rituais de sedução dos pássaros, vemos a construção de ninhos.

Predadores matam para sobreviver. Nenhum animal mata por matar. As exceções existem, mas são poucas. A razão é simples: matar requer muita energia. Basta ver a exaustão de um leopardo após perseguir uma gazela na estepe africana. Imagino que adorariam um rifle para evitar aquela correria toda. Mas acho improvável que matariam sem ter fome.

Os humanos são a exceção. Claro, também matamos para nos alimenta. Mas, sendo animais evoluídos, nós também matamos por diversas outras razões.

Matamos por sermos manipulados ou coagidos, como tantos em ditaduras brutais afirmam ("mate ou morra"), matamos por um senso de dever patriótico ou em nome da tribo ("tribo" aqui representa muitas possibilidades, de grupos religiosos a gangues), matamos para roubar o dinheiro de alguém ou até por "amor". Matamos, também, por sermos influenciados a tal ponto por ideologias que aqueles com valores diferentes são inimigos que devem ser eliminados.

Será que o ódio é uma emoção puramente humana? Mesmo que existam exemplos de animais que ajam com algo que se parece com ódio, somos os campeões. E por que isso?

Criamos e realizamos obras belíssimas, somos capazes de atos de profunda caridade e altruísmo. Porém, prisioneiros de uma prisão dialética, somos também seres capazes de assassinatos horrendos, cometidos sem qualquer remorso.

Se existe algo em comum no impulso assassino é que, em muitos casos, os que matam sentem-se ameaçados: por poderes que fogem ao seu controle, por ideologias que exploram sua vulnerabilidade, por provocadores que abusam de sua dignidade, por serem forçados a matar para integrar a "tribo". Até mesmo os psicopatas podem ter seus surtos alimentados por causas como essas.

Se o medo é, em grande parte, responsável pelo impulso assassino, o primeiro passo a dar é a criação de meios para aliviá-lo. Não existe uma solução simples, dado que as causas são tão diversas. No mínimo, devemos criar condições sociais para que as pessoas possam viver com dignidade, com menos medo. Buda, Jesus e Gandhi tinham uma mensagem que, em um ponto crucial, era a mesma: respeitem-se uns aos outros, tenham compaixão.

A manipulação de muitos por alguns com o objetivo de criar grupos ancorados no ódio e no medo só nos fará afundar ainda mais na nossa já profunda vergonha coletiva.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Conquistando o instinto assassino


Usar a psicologia humana para poder especular sobre o comportamento ET pode ser uma atitude míope e perigosa


SERÁ QUE CRIATURAS inteligentes podem escapar do instinto assassino? Quando se fala de invasões de extraterrestres, em geral, o foco é apocalíptico: "eles" vêm para nos destruir e roubar os bens do nosso planeta sem qualquer remorso.

Essa visão dos ETs não passa de um espelho de nós mesmos. Basta olhar para o dano que os colonizadores causaram na África, nas Américas e no Pacífico. Segundo os especialistas do projeto Seti, que há 50 anos busca por sinais transmitidos por supostas civilizações extraterrestres, temos grandes chances de detectar algo nas próximas décadas. Em 20 anos, teremos "visitado" dez milhões de estrelas, uma amostra razoável.

O problema, porém, não é a identificação de uma transmissão inteligente, mas a sua interpretação. Os ETs provavelmente não serão tão bonzinhos quanto os do romance "Contato", de Carl Sagan, que montaram uma mensagem que podemos compreender. Usar a psicologia humana para especular sobre o comportamento de inteligências extraterrestres pode ser não só uma atitude míope, mas perigosa.

Claro, temos de começar de algum lugar. O que é suposto (como em filmes e livros de ficção científica que partem de "A Guerra dos Mundos") é que as leis da evolução e a sobrevivência do mais forte dita o comportamento de todos os seres inteligentes do Universo.

Em outras palavras, mesmo criaturas inteligentes não podem escapar dos seus instintos animais: onde há vida, o instinto assassino reina.

Gostaria de apresentar uma visão menos pessimista. A prova de uma inteligência altamente sofisticada é justamente seu controle sobre o instinto assassino. Em humanos e outros primatas, o instinto assassino é tribal: encontramos proteção na tribo e a protegemos com unhas e dentes. Criamos divisões como Estado, nação e clã, e nos alojamos dentro delas.

ETs capazes de sobreviver a si próprios por um tempo suficientemente longo para criarem tecnologias de comunicação e de viagens interestelares devem ter evoluído além do comportamento primitivo.

O oposto é bem deprimente: quanto mais evoluída a espécie, mais efetivas as suas formas de matar, enquanto que sua moralidade permanece ancorada no animalesco. Se for esse o caso, estamos perdidos, como eles. Prefiro acreditar que não seja assim.

O fato de estarmos ponderando essas questões mostra que estamos progredindo. Sobrevivemos a 60 anos de bombas nucleares (claro, a ameaça ainda é concreta, mas hoje temos consciência de que uma guerra nuclear não tem vencedores). Existe, também, uma maior conscientização da fragilidade do nosso planeta. Sabemos que o mundo precisa mudar e que talvez a mudança tenha de ser global.

Pode ser que estejam os vivenciando o começo de nossa própria transformação numa espécie mais evoluída, menos tribal. É óbvio que o mundo permanece polarizado, dividido pela intolerância religiosa e também pela ganância. É hora de virarmos essa página e avançarmos coletivamente a um novo nível de sofisticação social. Ao menos por ora, a mensagem que vem dos céus nos diz muito mais sobre quem somos do que sobre quem, afinal, são "eles"".

domingo, 2 de janeiro de 2011

Cosmos versus caos


Se a vida é fruto da luta contra a entropia que não pode ser evitada, é ainda mais bela por ser frágil



ACONTECEU NOVAMENTE, mais um ano passou. Alguns acham que passou rápido, outros devagar. Queremos aprender com nossos erros, evitá-los, começar novas atividades, dietas, exercícios, um blog novo, trabalhar como voluntários em alguma ONG "do bem". Fazemos isso para tornar o ano novo realmente novo, separá-lo daquele que acaba de terminar, torná-lo melhor e, nesse processo, melhorarmos também.

Somos artesãos, construímos para desfazer a tendência da natureza a desfazer as coisas. Tentamos trazer ordem, um senso de controle sobre a desordem que nos cerca: cosmos (ordem) versus caos.

Alguns podem discordar do que afirmei acima, da ideia de que a natureza tende a desfazer as coisas.
Diriam que vemos ordem por toda a parte, nas flores, no arco-íris e, claro, em nós mesmos. Segundo as leis da termodinâmica, em particular a segunda, a desordem (entropia) tende a aumentar num sistema fechado. E nós, as flores e outras estruturas naturais não somos um sistema fechado: trocamos energia uns com os outros e, mais importante, recebemos energia do Sol. Somos criaturas solares, dependemos dele para sobreviver.

Muitas das estruturas organizadas que vemos à nossa volta, furacões, ondas e tempestades, todos os seres vivos, podem ser interpretados como mecanismos para aumentar a desordem cósmica, degradando a luz que vem do Sol, transformando-a em radiação infravermelha que a Terra emite para o espaço. A segunda lei diz: essas estruturas são meros obstáculos ao inexorável fim, quando a desordem triunfará. Esse tipo de pensamento deprimia muita gente no século 19. Ainda o faz hoje.

Está na hora de mudar o foco; algo mais a fazer nesse novo ano.

Quanto mais nos preocupamos com o "fim", menos vivemos o agora. Nós e todas as criaturas vivas (e as estruturas ordenadas não vivas, como os furacões e o arco-íris) somos quem faz a diferença.

Eis a riqueza das estruturas organizadas que emergem na rota em direção à desordem -essas guerreiras contra o decaimento final da matéria. Olhar para as coisas de forma unidimensional nos leva à uma visão distorcida da realidade. Alguns acham que ciência é isso, que usa apenas a razão para compreender a Natureza. Pelo contrário, existem muitas formas de olhar para um arco-íris, e cada uma tem o seu objetivo e a sua importância.

Só quando olhamos para um arco-íris de modos diferentes é que podemos admirá-lo em sua plenitude. Cientistas não são unidimensionais.

Não usamos apenas a razão para explorar a natureza. Buscar explicações para os fenômenos naturais é, como disse Einstein, uma forma de devoção religiosa. Admirar uma flor ou um arco-íris por sua beleza e tentar entender suas funções dentro da natureza os torna ainda mais belos.

A palavra religião vem de "religare", reconectar. Mas com o quê? Escolhas diferentes para religiões diferentes. Ao buscarmos as leis que descrevem a natureza e suas criações, estamos nos reconectando com nossas origens cósmicas. Esse é o meu "religare", que traz sentido à minha vida e lhe dá direção. Se a vida é fruto da luta contra o inexorável crescimento entrópico e o decaimento material, é ainda mais bela por isso. Por que não chamá-la, afinal, de sagrada?