domingo, 24 de setembro de 2000

Um mar no espaço


Em 1979, as sondas espaciais Voyager 1 e 2 passaram perto das quatro grandes luas de Júpiter (existem ao menos 16), revelando alguns de seus incríveis segredos, incluindo superfícies torturadas e extremamente ativas. Io, por exemplo, tem vulcões que ejetam matéria rica em enxofre a altitudes de 200 quilômetros. A missão apenas aguçou a curiosidade dos astrônomos, que acreditam que Júpiter e suas luas representem um Sistema Solar em miniatura.

Podemos visualizar o Sistema Solar como uma bola de pingue-pongue (o Sol) atravessada na metade por um disco digital (o plano eclíptico) onde estão localizadas as órbitas planetárias (um modelo fora de escala, obviamente). Ou seja, as órbitas planetárias estão aproximadamente centradas em torno do equador solar. O mesmo acontece com Júpiter e suas luas. Portanto, estudando o modelo jupiteriano, os astrônomos podem aprender muito sobre a formação e evolução do Sistema Solar.

Por isso a Nasa (agência espacial norte-americana) enviou outra missão para Júpiter chamada, apropriadamente, Galileu -o primeiro a ver as luas de Júpiter. A sonda acaba de passar pelas luas, prestando atenção especialmente em Europa. Aparentemente, Europa é a menos interessante das quatro grandes luas; sua superfície não apresenta as marcas dramáticas de vulcanismo como em Io, ou as crateras de Ganimede e Calisto. Ao contrário, a superfície de Europa parece bastante pacata, marcada apenas por longas linhas que indicam a presença de falhas geológicas. No entanto, quando a sonda Galileu tirou fotos com resolução de 20 metros, ficou claro que Europa é coberta por uma camada de gelo, com uma espessura estimada em torno de sete quilômetros. As fotos revelaram, ainda, estruturas semelhantes a icebergs, paralisados pelo gelo à sua volta, como carros em um congestionamento caótico.

Mas a grande surpresa, que já era uma suspeita de vários astrônomos, é o que está por baixo dessa espessa crosta de gelo: um oceano de água salgada, cobrindo todo o planeta, envolvendo uma região central rica em ferro. Ou seja, foi encontrada água líquida no espaço. E em quantidades enormes, talvez até duas vezes maiores que nos oceanos terrestres. Mais ainda, a atração gravitacional entre Júpiter e Europa é tão grande que a pobre lua é constantemente distorcida pelo planeta gigante, uma amplificação do efeito que provoca as marés aqui na Terra. Essas distorções geram uma enorme quantidade de energia no interior da lua, capaz de aquecer seus oceanos. A água em Europa pode ser quente!

Como a presença de água é um ingrediente fundamental para a existência da vida (ao menos as formas que conhecemos), Europa passou a ocupar a posição de honra, junto a Marte, para a existência de vida extraterrestre.

Os leitores familiares com o filme de ficção científica russo "Solaris" (distribuído, infelizmente, como a resposta soviética ao filme "2001 - Uma Odisséia no Espaço") devem lembrar-se do planeta, coberto por um oceano, cuja manifestação de vida era poder materializar os medos e fantasias do inconsciente humano. Certamente, esse não é o caso de Europa. Mas, quem sabe se nossas fantasias com relação à vida extraterrestre não estão sendo materializadas pela presença de seu oceano líquido?

O leitor deve estar se perguntando como é possível determinar a presença de um oceano, imerso sob uma crosta de gelo, em um mundo tão distante. As medidas feitas pela sonda Galileu são baseadas no magnetismo local de Europa. Tal como a Terra, Júpiter tem um campo magnético. Só que, no caso de Júpiter, ele é muito mais forte, com consequências importantes para as suas luas. Em Europa, a orientação local do campo magnético de Júpiter muda a cada 5,5 horas. Quando mudanças em um campo magnético ocorrem em um meio condutor de eletricidade (como a água do mar ou ferro), correntes elétricas locais aparecem, criando, por sua vez, um campo magnético secundário, que pode ser detectado com instrumentos equivalentes a bússolas sofisticadas.

As medidas feitas pela sonda Galileu indicam que uma camada de água salgada com dez quilômetros de profundidade é o melhor candidato a meio condutor em Europa. Mas a resposta final só virá em seis anos, quando uma nova missão for enviada a Europa, procurando por água salgada e, quem sabe, vida.

domingo, 17 de setembro de 2000

Três lições copernicanas

Parece fácil, hoje, afirmar que o Sol está no centro do Sistema Solar e que os planetas giram à sua volta em órbitas elípticas. Como poderíamos pensar diferente, visto que esse é o arranjo mais "óbvio" de nossa vizinhança cósmica?

Na verdade, a coisa não é bem assim. O que vemos é o Sol girar em torno da Terra, e não o oposto. Afinal, não é o Sol que nasce no leste e se põe no oeste? Fazer a Terra girar em torno do Sol é, no mínimo, contra-intuitivo. Não é à toa que apenas em 1543, com a publicação do livro de Nicolau Copérnico onde ele descreve o Sistema Solar com o Sol no centro, é que começou -lentamente- a ficar claro que nem sempre o que vemos ou percebemos do mundo é o que corresponde à realidade. Estranha essa idéia de que o arranjo do cosmo pode ser tão distinto daquilo que o bom senso ditaria. Essa é a primeira lição copernicana: os sentidos podem construir uma realidade falsa se não tiverem a razão a seu lado.

Por que Copérnico resolveu desafiar dois milênios de "sabedoria", baseada na filosofia de Aristóteles? A igreja havia já adotado a descrição aristotélica do cosmo, onde a Terra ocupava o centro, sendo circundada pela Lua, Sol, planetas e estrelas. A parte mais oportuna desse arranjo cósmico para a igreja era a separação que Aristóteles fazia entre o mundo sublunar, onde mudanças e transformações materiais podiam ocorrer, e o resto do cosmo, onde tudo era eternamente igual. A decadência humana era então associada a mudanças materiais (e carnais) perto da Terra, enquanto a perfeição ficava longe, na morada de Deus.

Pôr o Sol no centro era destruir esse arranjo, pois transformava a Terra em mais um planeta e não no centro de mudanças e transformações. E o Sol, sendo perfeito e eterno, não poderia pertencer à subesfera da decadência. Para pôr o Sol no centro, era necessário criar uma nova física, em que a Terra e os planetas obedecessem aos mesmos princípios.

Dois motivos levaram Copérnico a dar esse passo, ambos baseados em um impulso estético. O primeiro, que os movimentos celestes deveriam ser em órbitas circulares e com velocidades constantes. Essa idéia era quase que sagrada, um princípio criado por Platão, o mestre de Aristóteles. Por que o círculo? Pois ele, sendo a figura geométrica mais perfeita, onde todos os pontos são equivalentes, deveria, sem dúvida, ter sido a escolha do Demiurgo, a divindade que arquitetou o cosmo e suas estruturas.

O segundo princípio estético usado por Copérnico era, claro, o arranjo dos planetas em torno do Sol. Conhecia-se já, na época, o período orbital dos planetas, o tempo que eles demoram para dar uma volta completa em torno do Sol. Portanto, raciocinou Copérnico, basta arranjá-los em ordem crescente, de modo que Mercúrio, de período mais curto, fique mais perto do Sol e Saturno, de período mais longo, fique mais longe (não se conheciam ainda os outros planetas, Urano, Netuno e Plutão, invisíveis a olho nu). Com esses princípios estéticos, Copérnico criou um novo arranjo do Sistema Solar, desafiando o pensamento aristotélico, mesmo sem ter qualquer prova de que suas idéias estavam certas. Essa é a segunda lição copernicana: a inspiração para a ciência muitas vezes é guiada por princípios estéticos.

Mas estética não garante precisão. Apenas através de uma confirmação direta, baseada em medidas e sua análise quantitativa, é que podemos julgar ou não a validade de uma hipótese sobre a natureza, por mais atraente ou elegante que ela seja. A estética é uma sedutora ambígua, fundamental e traiçoeira.

Passaram-se mais de 50 anos até que as idéias copernicanas começaram a ser aceitas. Por que toda a demora? Será que os astrônomos da época eram incompetentes? A virada começou com Kepler e Galileu no início do século 17, ambos grandes defensores de Copérnico, por motivos diferentes. A razão foi a falta de confirmação observacional dessas idéias, aliada a um número relativamente pequeno de pessoas trabalhando em astronomia na época. Mais ainda, a posição da igreja e dos luteranos também não ajudava muito. Os seguidores de Copérnico tiveram um trabalho muito maior do o próprio, pois eles tiveram de testar as idéias e aprimorá-las, como foi o caso de Kepler com as órbitas elípticas, que seriam extremamente "feias" para Copérnico.

Essa é a terceira lição copernicana: em ciência, como em qualquer outra atividade criativa, ninguém pode trabalhar sozinho. O conhecimento é como uma corrente em que cada idéia é um elo, uns mais fracos, outros mais fortes, forjados todos pela nossa curiosidade.

domingo, 10 de setembro de 2000

Independência, só de perto

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Durante os anos 50, um dos grandes sonhos da física, encontrar os componentes mais fundamentais da matéria, estava se tornando um dos seus maiores pesadelos. Isso porque a própria idéia de que a estrutura da matéria pode ser compreendida pela combinação de alguns tijolos fundamentais não parecia ter mais fundamento: experiências realizadas em colisores de partículas, máquinas capazes de colidir prótons, elétrons e outras partículas a velocidades próximas à da luz revelaram centenas de novas partículas "elementares", as chamadas ressonâncias bariônicas, ou hádrons.

Como centenas de partículas não podem lá ser muito fundamentais, das duas, uma: ou esses tijolos básicos de matéria não existem, ou essas centenas de partículas não são fundamentais.
Venceu a segunda hipótese. No início da década de 60, o físico norte-americano Murray Gell-Mann propôs que os hádrons eram feitos de combinações de partículas mais fundamentais, que ele, tirando a palavra de James Joyce, chamou de quarks. Os seis tipos de quarks compõem as centenas de hádrons, da mesma forma que o elétron, o próton e o nêutron, em números diferentes, compõem os 92 elementos da tabela periódica.

Se o átomo é mantido coeso devido à atração elétrica entre prótons e elétrons, os hádrons são mantidos pela chamada força forte, que atua nos quarks como uma espécie de cola. Por exemplo, podemos imaginar um próton como se fosse uma esfera com três quarks dentro, como sementes numa fruta. O interessante é que os hádrons têm outra característica que os torna semelhantes aos átomos.

Átomos são eletricamente neutros. O próton não, mas os quarks carregam também um outro tipo de "carga", que chamamos de cor. Fora as duas cargas elétricas (positiva e negativa), os quarks podem ter três cores -vermelha, verde e azul. Um hádron sempre tem cor neutra, isto é, ele é feito de uma combinação das três cores, ou de uma cor e sua anticor.

Anticor? Pois é, partículas têm suas antipartículas, com cargas inversas. Por exemplo, o elétron, negativo, tem o pósitron, positivo. Antiquarks têm anticores.

Portanto, hádrons são mantidos coesos pela força forte, são neutros segundo a carga "cor" e são compostos por quarks e antiquarks. As semelhanças entre força forte e eletromagnética terminam aqui. A força forte só atua em distâncias nucleares, enquanto a força elétrica tem um alcance que cai com o quadrado da distância entre as duas cargas.

A propriedade mais misteriosa da força forte é o "confinamento". Segundo observações experimentais e a teoria que descreve a força forte, quarks jamais aparecem livres, sendo condenados a estar sempre dentro de hádrons. A força forte atua de tal modo que, apenas quando os quarks estão muito próximos eles, se comportam como partículas livres.
Quando tentamos separá-los, a atração fica cada vez mais forte, como uma mola. Se continuarmos a tentar separá-los, a energia que depositamos nos quarks acaba por criar mais quarks, como a mola que se quebra em duas. Isolar um quark é como responder ao enigma Zen: "Qual é o som de uma mão aplaudindo?"

Essa propriedade de confinamento representa um grande desafio aos teóricos que tentam calcular, por exemplo, a massa do próton. A teoria, chamada cromodinâmica quântica (QCD), aludindo às cores dos quarks, baseia-se na idéia de que a interação entre quarks se dá por troca de partículas chamadas glúons, da mesma forma que a interação elétrica se dá pela troca de fótons. A diferença entre fótons e glúons é que os glúons podem interagir, sendo de alguma forma responsáveis pelo confinamento.

Os cálculos envolvidos são extremamente complexos, exigindo supercomputadores capazes de realizar trilhões de operações por segundo (teraflops), os mais rápidos do mundo. Mesmo assim, ainda não se conseguiu calcular a massa do próton, teste fundamental da QCD. Mas evidências experimentais variadas e resultados numéricos preliminares dão confiança aos proponentes da QCD, a teoria de um mundo bizarro onde a liberdade só é possível muito de pertinho.

domingo, 3 de setembro de 2000

Os perigos das manipulações genéticas

O rápido desenvolvimento da engenharia genética está forçando uma reavaliação da questão do controle da pesquisa científica pelos órgãos legislativos. Este controle foi praticamente perdido durante a década de 70, quando as primeiras experiências envolvendo a manipulação explícita de genes foram desenvolvidas. O que existia antes, "cruzar" animais ou plantas para criar novas raças ou híbridos, é coisa bem diferente, pois não envolve a manipulação direta dos genes.

Todos sabem que cães e gatos são espécies diferentes e que não se misturam: entretanto, por meio da manipulação genética direta, essas duas espécies podem, em princípio, ser "misturadas".Uma das técnicas mais comuns de manipulação genética é a passagem de genes de um organismo a outro usando vírus ou bactérias: os genes de um organismo são transplantados ao vírus, que, por sua vez, é implantado no organismo em que se deseja depositar o material genético. Esse organismo pode ser um peixe ou uma espécie de milho ou tomate.

Com isso, os genes espalham-se pelo organismo, transformando seu material genético e, portanto, algumas de suas propriedades. Por exemplo, podem-se desenvolver espécies de milho resistentes a certos insetos que o usam como alimento, controlando geneticamente certas pragas agrícolas; ou um tipo de tomate que cresce mais rápido e é mais produtivo. Até aí tudo bem, a ciência a serviço da população, como deveria ser. Podemos imaginar um futuro em que os alimentos modificados geneticamente irão solucionar um dos maiores problemas que afligem a humanidade, a fome.

O dilema começa ao examinarmos os possíveis efeitos ambientais dos alimentos transgênicos.Se microrganismos são usados como "pontes" genéticas, transmitindo material de uma planta a outra ou de um animal a outro, como podemos nos certificar de que esse material não se espalhará para outras plantas ou animais? Para responder a essa questão, virologistas dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH) dos EUA desenvolveram experiência em que um gene causador de câncer em ratos foi transplantado para uma bactéria, que foi então implantada em outros animais, para observar se estes também desenvolveriam câncer.

Em caso afirmativo, a experiência provaria que o câncer pode se tornar uma doença contagiosa por meio da manipulação genética. Os cientistas começaram errando, escolhendo uma bactéria frágil. Por quê? Porque eles não tinham nenhum interesse em comprovar os perigos da manipulação genética; existiam outros interesses em jogo -políticos, econômicos e também de controle da pesquisa científica. Mesmo assim, a bactéria infectou alguns animais com câncer, segundo os NIH.

Esses resultados não foram publicados em jornais científicos, e o jornal "The New York Times" anunciou, citando depoimento oficial dos NIH de 1979, que os "riscos são menores do que o temido". Caso encerrado!Experiências recentes realizadas na Universidade Cornell, nos EUA, mostraram que larvas da borboleta monarca que se alimentam de plantas impregnadas com o pólen de um tipo de milho transgênico morrem em grandes quantidades.

Ainda é cedo para saber como os resultados se manifestarão fora do laboratório, mas o perigo existe. A verdade é que ainda não temos comprovação científica de que a manipulação genética de alimentos e animais não poderá gerar efeitos danosos à nossa saúde ou ao equilíbrio ecológico. Não acredito que seja possível impedir o desenvolvimento da pesquisa genética. Também jamais sugeriria tal coisa, que me parece absurda; a ciência precisa ter liberdade para progredir e uma legislação proibindo certos tópicos de pesquisa é, na minha opinião, equivalente à censura de imprensa ou à repressão da opinião pública.

Por outro lado, essa liberdade só pode funcionar se submetida a intensa supervisão da comunidade científica, aliada a órgãos governamentais, livre de interesses econômicos que possam comprometer os resultados. Existem questões éticas sérias que precisam ser debatidas abertamente com a sociedade, desde a criação de alimentos transgênicos até a manipulação de genes humanos. O Brasil deve tomar sua própria iniciativa, desenvolvendo critérios e experiências que testem efeitos da manipulação genética dentro de seus vários ecossistemas. Só assim poderemos transformar a manipulação genética em um dos maiores benefícios da ciência -e não em um monstro