domingo, 17 de setembro de 2000

Três lições copernicanas

Parece fácil, hoje, afirmar que o Sol está no centro do Sistema Solar e que os planetas giram à sua volta em órbitas elípticas. Como poderíamos pensar diferente, visto que esse é o arranjo mais "óbvio" de nossa vizinhança cósmica?

Na verdade, a coisa não é bem assim. O que vemos é o Sol girar em torno da Terra, e não o oposto. Afinal, não é o Sol que nasce no leste e se põe no oeste? Fazer a Terra girar em torno do Sol é, no mínimo, contra-intuitivo. Não é à toa que apenas em 1543, com a publicação do livro de Nicolau Copérnico onde ele descreve o Sistema Solar com o Sol no centro, é que começou -lentamente- a ficar claro que nem sempre o que vemos ou percebemos do mundo é o que corresponde à realidade. Estranha essa idéia de que o arranjo do cosmo pode ser tão distinto daquilo que o bom senso ditaria. Essa é a primeira lição copernicana: os sentidos podem construir uma realidade falsa se não tiverem a razão a seu lado.

Por que Copérnico resolveu desafiar dois milênios de "sabedoria", baseada na filosofia de Aristóteles? A igreja havia já adotado a descrição aristotélica do cosmo, onde a Terra ocupava o centro, sendo circundada pela Lua, Sol, planetas e estrelas. A parte mais oportuna desse arranjo cósmico para a igreja era a separação que Aristóteles fazia entre o mundo sublunar, onde mudanças e transformações materiais podiam ocorrer, e o resto do cosmo, onde tudo era eternamente igual. A decadência humana era então associada a mudanças materiais (e carnais) perto da Terra, enquanto a perfeição ficava longe, na morada de Deus.

Pôr o Sol no centro era destruir esse arranjo, pois transformava a Terra em mais um planeta e não no centro de mudanças e transformações. E o Sol, sendo perfeito e eterno, não poderia pertencer à subesfera da decadência. Para pôr o Sol no centro, era necessário criar uma nova física, em que a Terra e os planetas obedecessem aos mesmos princípios.

Dois motivos levaram Copérnico a dar esse passo, ambos baseados em um impulso estético. O primeiro, que os movimentos celestes deveriam ser em órbitas circulares e com velocidades constantes. Essa idéia era quase que sagrada, um princípio criado por Platão, o mestre de Aristóteles. Por que o círculo? Pois ele, sendo a figura geométrica mais perfeita, onde todos os pontos são equivalentes, deveria, sem dúvida, ter sido a escolha do Demiurgo, a divindade que arquitetou o cosmo e suas estruturas.

O segundo princípio estético usado por Copérnico era, claro, o arranjo dos planetas em torno do Sol. Conhecia-se já, na época, o período orbital dos planetas, o tempo que eles demoram para dar uma volta completa em torno do Sol. Portanto, raciocinou Copérnico, basta arranjá-los em ordem crescente, de modo que Mercúrio, de período mais curto, fique mais perto do Sol e Saturno, de período mais longo, fique mais longe (não se conheciam ainda os outros planetas, Urano, Netuno e Plutão, invisíveis a olho nu). Com esses princípios estéticos, Copérnico criou um novo arranjo do Sistema Solar, desafiando o pensamento aristotélico, mesmo sem ter qualquer prova de que suas idéias estavam certas. Essa é a segunda lição copernicana: a inspiração para a ciência muitas vezes é guiada por princípios estéticos.

Mas estética não garante precisão. Apenas através de uma confirmação direta, baseada em medidas e sua análise quantitativa, é que podemos julgar ou não a validade de uma hipótese sobre a natureza, por mais atraente ou elegante que ela seja. A estética é uma sedutora ambígua, fundamental e traiçoeira.

Passaram-se mais de 50 anos até que as idéias copernicanas começaram a ser aceitas. Por que toda a demora? Será que os astrônomos da época eram incompetentes? A virada começou com Kepler e Galileu no início do século 17, ambos grandes defensores de Copérnico, por motivos diferentes. A razão foi a falta de confirmação observacional dessas idéias, aliada a um número relativamente pequeno de pessoas trabalhando em astronomia na época. Mais ainda, a posição da igreja e dos luteranos também não ajudava muito. Os seguidores de Copérnico tiveram um trabalho muito maior do o próprio, pois eles tiveram de testar as idéias e aprimorá-las, como foi o caso de Kepler com as órbitas elípticas, que seriam extremamente "feias" para Copérnico.

Essa é a terceira lição copernicana: em ciência, como em qualquer outra atividade criativa, ninguém pode trabalhar sozinho. O conhecimento é como uma corrente em que cada idéia é um elo, uns mais fracos, outros mais fortes, forjados todos pela nossa curiosidade.

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