domingo, 22 de fevereiro de 1998

A primeira experiência de teletransporte

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Imagine um futuro longínquo, quando aviões, trens ou qualquer outro meio de transporte tenham se tornado coisa do passado. Para ir de um ponto a outro no espaço, bastará entrar em uma cabine de teletransporte e sair, instantaneamente, em outra, no destino desejado. Poderemos começar uma viagem em São Paulo e terminá-la no Rio, ou em outra galáxia...
Mas essa história é velha! Basta assistir a um episódio da série "Jornada nas Estrelas" que veremos o Capitão Kirk ser teletransportado sem maiores mistérios. Ficção científica? Sem dúvida. Mas, recentemente, físicos na Áustria e na Itália, conseguiram pela primeira vez teletransportar uma propriedade de um fóton -uma partícula de luz cuja existência foi proposta por Einstein em 1905- de um ponto a outro no espaço. Instantaneamente.

Sabemos que a luz pode ser descrita como ondas eletromagnéticas que se propagam à velocidade de 300.000 km/s no espaço vazio. Como toda onda, a luz pode ser polarizada, ou seja, ela pode estar vibrando em apenas um determinado plano.
Imagine uma corda com uma das extremidades amarrada a uma árvore. Vibrando a outra extremidade, podemos fazer com que a corda ondule com "polarizações" diferentes, por exemplo, perpendicular ou paralela à árvore. O fóton, como digno representante corpuscular da luz, ou melhor, da radiação eletromagnética, também exibe diferentes polarizações.

Nas experiências feitas na Áustria e na Itália, a propriedade do fóton teletransportada foi sua polarização. Imagine que Maria esteja interessada em teletransportar para João a polarização de um fóton. Maria tem dois fótons, que ela chama de A e M (de mensageiro). João tem um fóton B. O teletransporte seria, então, fazer com que o fóton de João (B) adquira a polarização original do fóton de Maria (A). No teletransporte, nenhum fóton viaja fisicamente através do espaço separando Maria e João. Apenas as propriedades do fóton A, de Maria, se materializam instantaneamente no fóton B, de João. (Para o leitor curioso, esse fenômeno não viola a causalidade.)

Como que esse fenômeno bizarro de interação instantânea a distância é possível? O comportamento de objetos no mundo submicroscópico muitas vezes vai contra nossas noções do que é ou não possível. No caso dos fótons, é possível construir um par de fótons que exibem, juntos, uma propriedade conhecida como "entrelaçamento".

Se um par de fótons está entrelaçado, ao medirmos a polarização de um deles, o outro imediatamente assumirá a polarização perpendicular à que foi medida. Se os fótons A e M estão entrelaçados e se medirmos A com polarização vertical, M assumirá polarização horizontal.
O que é fantástico é que esse efeito não depende da distância entre os dois fótons. A e M podem estar separados por um metro, dez quilômetros (como no experimento recente) ou estar em outra parte da galáxia. Mas, ao medirmos a polarização de A, M assumirá imediatamente a polarização perpendicular. Einstein jamais aceitou essa possibilidade. Mas vários experimentos comprovaram o entrelaçamento de dois fótons.

Voltando a João e Maria, eles entrelaçam os fótons M e B. Maria, por sua vez, entrelaça seus dois fótons, A e M. O que acontece? Quando Maria entrelaça A e M, sabemos que M assumirá a polarização perpendicular a A. Mas, como M e B também estão entrelaçados, sabemos que B assumirá a polarização perpendicular a M. Ou seja, B assumirá a polarização original de A.

As aplicações são potencialmente imensas, mesmo que ainda não possamos sequer imaginar como teletransportar seres humanos. Mas nos campos emergentes de criptografia e computação quântica (computadores baseados em moléculas), o teletransporte será um ingrediente fundamental. O que era ficção vai se tornando, de fóton em fóton, realidade.

domingo, 15 de fevereiro de 1998

Uma brevíssima história do vazio

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Há muitos anos, Gilberto Gil compôs uma canção que dizia: "É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar". Ela lembra a frase budista: "Onde existe luz existe sombra". Vazio e cheio, luz e sombra: a idéia da complementaridade de opostos está profundamente arraigada no pensamento humano.

Mas o que acontece com o copo vazio se todo o seu ar for retirado? Imaginemos uma fantástica bomba de vácuo, uma máquina capaz de sugar todo o ar de dentro de qualquer recipiente perfeitamente lacrado. Será que conseguiremos chegar ao ponto de um vazio absoluto? (Claro, um copo implodiria devido à pressão, mas estamos imaginando um copo "perfeito".)

A possibilidade ou não da existência de um "vazio absoluto" já era debatida ferozmente na Grécia Antiga, em torno do século 5 a.C. Segundo Parmênides, filósofo pré-socrático que viveu em Eléa, sul da Itália, o Universo é permeado pela presença de "Eon", o Ser em seu sentido mais abstrato, a Existência onipresente e estática, imutável e perfeita. Portanto, o Vazio é uma impossibilidade, já que sua existência seria equivalente à de um Não-Ser, que contradiria a onipresença absoluta do Eon.

Para contrariar os parmenidianos, os atomistas postularam que tudo é composto de átomos e se movimenta no vazio. Tudo na natureza pode ser reduzido a átomos e seus agregados, que se movem no espaço vazio. A imutabilidade do Ser de Parmênides é transferida aos átomos, indestrutíveis e eternos. Mas, para os atomistas, o vazio existe.

Aristóteles retomou de certa forma a tese de Parmênides de que o vazio não existe: "A natureza odeia o vácuo". Como para ele a velocidade dos corpos em movimento é inversamente proporcional à densidade do meio, um meio perfeitamente vazio (densidade nula) implicaria movimentos de velocidade infinita, um absurdo para Aristóteles.

Pulando quase 2.000 anos, o debate sobre a natureza do vazio voltou a estimular a imaginação dos filósofos da natureza. René Descartes, no século 18, postulou a existência de vórtices no espaço que transportavam os planetas em suas órbitas, enquanto Newton assumiu, como os atomistas, que o espaço interplanetário é vazio; a força da gravidade é a responsável pelos movimentos dos objetos celestes.

No século 19, o problema do vazio reapareceu em outro ramo da física, o eletromagnetismo. O britânico James Maxwell mostrou que a luz é uma onda eletromagnética que se propaga à velocidade de 3.000 km/s. Mas as ondas se propagam em um meio material: as de som se propagam no ar e as do mar, na água. De fato, ondas são apenas uma manifestação da propagação de energia através de um meio material. E as ondas luminosas? Em que meio elas se propagam?

Para Maxwell, ondas luminosas se propagam em um meio material chamado "éter". Todos os cientistas da época acreditavam na existência do éter, apesar de suas propriedades muito estranhas, preenchendo todo o espaço (Aristóteles outra vez!), mas, ao mesmo tempo, sendo imponderável, rígido como um sólido e incapaz de oferecer resistência ao movimento dos objetos celestes.

Em 1905, Einstein apresenta sua teoria da relatividade restrita, em que ele mostra que o éter é perfeitamente descartável. O vazio reaparece triunfalmente, juntamente com toda uma reformulação das idéias newtonianas de espaço e tempo. Mas a festa durou pouco. Com o desenvolvimento da mecânica quântica na década de 20, ficou claro que pequenas violações na lei de conservação de energia são possíveis, mesmo que por pouquíssimo tempo. E como matéria e energia são "interconversíveis", essas flutuações quânticas de energia podem criar matéria. O vácuo quântico é repleto dessas flutuações, partículas que aparecem e desaparecem continuamente numa dança de criação e destruição. O vazio não existe. Aristóteles, que não riu por último, pode sorrir novamente.

domingo, 8 de fevereiro de 1998

As nebulosas e as sementes primordiais do Universo

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

O astrônomo inglês William Herschel, descobridor do planeta Urano, comparava o céu noturno com um jardim "repleto de criações as mais variadas". Após décadas de árduas observações, Herschel compilou um catálogo celeste com mais de 2.500 dessas "criações", na época conhecidas apenas como nebulosas.

Para Herschel e outros astrônomos do início do século 19, nebulosas eram objetos celestes difusos, que, ao contrário de planetas ou estrelas, não apareciam como pontos de luz mas como manchas luminosas. Foram necessários outros cem anos para que a natureza das nebulosas fosse desvendada.

Por que a demora? Se olharmos para o céu em uma noite sem Lua, longe de qualquer cidade e de suas luzes, podemos distinguir apenas três objetos que seriam classificados por Herschel como nebulosas: Andrômeda, nossa galáxia vizinha, a aproximadamente 2 milhões de anos-luz do Sol, e as duas Nuvens de Magalhães, a 170 mil anos-luz do Sol. Devido à sua distância de nós, as nebulosas são difíceis de serem observadas. Com o desenvolvimento dos telescópios de grande porte, ficou claro que elas são vários tipos de objetos de natureza muito diversa, as "criações" do jardim cósmico de Herschel.

Existem galáxias, nebulosas planetárias, que são restos mortais de explosões estelares, aglomerados globulares de estrelas, nuvens de gás interestelar e vários outros tipos de "nebulosas". Mas, nem mesmo em seus sonhos mais criativos, Herschel poderia imaginar o quanto é rico e complicado o jardim celeste.

Nas últimas duas décadas, armados de poderosos telescópios e de novas tecnologias ópticas, que permitem que vastas porções do céu sejam fotografadas digitalmente com grande precisão, astrônomos descobriram que os céus não só exibem as mais variadas criações, mas também uma riquíssima cultura.

Talvez o melhor modelo da estrutura cósmica descoberta pelos astrônomos seja a do banho de espuma. Do mesmo modo que em um banho de espuma bolhas se tocam apenas na superfície, galáxias também são encontradas na "superfície" de bolhas, regiões com o interior praticamente vazio.

Um dos maiores mistérios da astronomia moderna é desvendar os mecanismos responsáveis pela formação dessas vastas estruturas cósmicas. Segundo observações atuais, muitas delas trabalho do excelente astrônomo brasileiro Luis Nicolacci da Costa, os "vazios cósmicos" podem ter diâmetros de dezenas de milhões de anos-luz!

O escultor principal dessa vasta estrutura cósmica é a força da gravidade. Modelos numéricos que tentam reproduzir as estruturas observadas usam a gravidade como a força responsável pelo colapso da matéria em estruturas organizadas, de galáxias e aglomerados de galáxias a bolhas cósmicas. No momento, os modelos mais bem-sucedidos, ou seja, que reproduzem melhor as estruturas observadas, usam três ingredientes. Primeiro, se adiciona matéria bariônica, ou seja, matéria ordinária, feita de prótons e nêutrons. A essa adiciona-se um outro tipo de matéria, conhecida como "matéria escura", que apenas interage com a matéria ordinária devido à gravidade. A natureza da matéria escura permanece ainda um mistério. Mas estamos certos de sua presença no Universo.

Mas só adicionarmos matéria e gravidade não é suficiente. É necessário também plantarmos sementes, concentrações de energia que possam provocar o colapso inicial da matéria bariônica e escura. Essas sementes primordiais são resultado de processos físicos que ocorreram durante a infância do Universo e ainda são foco de muita especulação. Mas, sem essas sementes, o jardim cósmico jamais poderá florescer, dando origem às suas ricas criações.

domingo, 1 de fevereiro de 1998

Beleza = simetria + ordem

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

A beleza é uma dessas coisas extremamente difíceis de serem definidas com precisão. O que para uns é belo, para outros pode ser horrível. Essa subjetividade cultural da beleza vai além do visual. Para os ocidentais, uma ópera chinesa ou um recital de cítara indiana pode ser uma experiência dolorosa. Para um aborígine australiano, Mozart pode soar no mínimo distante, certamente exótico.

No entanto, existem certos valores estéticos que parecem transcender fronteiras culturais ou mesmo temporais. Após a conquista romana do Egito, a decoração das múmias passou a ser influenciada pela arte clássica, criando uma espécie de fusão entre a arte egípcia e a greco-romana.

Retratos das pessoas mumificadas, pintados em estilo clássico, decoravam as tampas dos sarcófagos, dando-nos a oportunidade de aprender um pouco sobre os valores culturais e artísticos de uma sociedade que existiu há cerca de 2.000 anos.
É um fato curioso e relevante a universalidade do conceito de simetria como expressão do belo. Mesmo para olhos "ocidentais", a beleza da arte egípcia antes e depois da conquista romana é indiscutível. O mesmo acontece com a arte muçulmana, com suas decorações suntuosas de mesquitas em ladrilhos pintados em padrões geométricos, que influenciou a obra do pintor francês Henri Matisse. E quem não gosta de um tapete persa?

Portanto, algumas obras só são belas para uma certa cultura, enquanto outras transcendem barreiras culturais. A meu ver, a diferença entre dois tipos de beleza está ligada à noção de ordem. Temos de organizar o mundo à nossa volta por razões originalmente ditadas pela sobrevivência em um ambiente austero e competitivo.

Unidos à necessidade "tribal" de organização, certos fenômenos naturais se manifestam ordenadamente. Na aparição diurna do Sol, no ciclo anual das estações ou na volta periódica dos planetas, a natureza exibe, de forma aconchegantemente previsível, ciclos que ajudam a organizar nossa vida. O imprevisível, como furacões, tempestades ou a morte, está ligado ao mistério do desconhecido e à quebra da ordem. A desordem é assustadora e inspiradora, à sua maneira.

Simetria é o ponto de encontro entre beleza e ordem. Existe algo profundamente satisfatório na apreciação de uma forma simétrica, seja ela a arquitetura de um templo grego, de uma pirâmide egípcia ou de uma catedral gótica. Ou as asas de uma borboleta, a concha de um molusco, um arco-íris. Essa apreciação universal pelo simétrico como manifestação do belo vai além de sua expressão artística através dos tempos. Simetria é também uma das grandes fontes de inspiração da criatividade científica.

Pitágoras, no século 6 a.C., fundou uma escola filosófica que preconizava os números como representação da estética universal, uma ponte entre a razão humana e o mundo natural. Segundo os pitagóricos, tudo podia ser representado por números, sendo o papel do filósofo descobrir as relações secretas entre eles e a natureza.

Os pitagóricos criaram a noção de harmonia para representar o estado de transcendência que é atingido quando nossas aspirações estéticas, manifestas por meio dos números e suas relações, encontram ressonância no mundo real. Ordem, beleza e simetria são unificadas em uma experiência que une o místico ao intelectual.

Essa busca pelo que é tanto racionalmente belo quanto relacionado com uma descrição do mundo real é o que inspira grande parte da obra científica tanto no passado quanto hoje. Nós, como os pitagóricos, também celebramos a harmonia dos números na descrição científica da natureza.