domingo, 15 de fevereiro de 1998

Uma brevíssima história do vazio

MARCELO GLEISER
especial para a Folha

Há muitos anos, Gilberto Gil compôs uma canção que dizia: "É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar". Ela lembra a frase budista: "Onde existe luz existe sombra". Vazio e cheio, luz e sombra: a idéia da complementaridade de opostos está profundamente arraigada no pensamento humano.

Mas o que acontece com o copo vazio se todo o seu ar for retirado? Imaginemos uma fantástica bomba de vácuo, uma máquina capaz de sugar todo o ar de dentro de qualquer recipiente perfeitamente lacrado. Será que conseguiremos chegar ao ponto de um vazio absoluto? (Claro, um copo implodiria devido à pressão, mas estamos imaginando um copo "perfeito".)

A possibilidade ou não da existência de um "vazio absoluto" já era debatida ferozmente na Grécia Antiga, em torno do século 5 a.C. Segundo Parmênides, filósofo pré-socrático que viveu em Eléa, sul da Itália, o Universo é permeado pela presença de "Eon", o Ser em seu sentido mais abstrato, a Existência onipresente e estática, imutável e perfeita. Portanto, o Vazio é uma impossibilidade, já que sua existência seria equivalente à de um Não-Ser, que contradiria a onipresença absoluta do Eon.

Para contrariar os parmenidianos, os atomistas postularam que tudo é composto de átomos e se movimenta no vazio. Tudo na natureza pode ser reduzido a átomos e seus agregados, que se movem no espaço vazio. A imutabilidade do Ser de Parmênides é transferida aos átomos, indestrutíveis e eternos. Mas, para os atomistas, o vazio existe.

Aristóteles retomou de certa forma a tese de Parmênides de que o vazio não existe: "A natureza odeia o vácuo". Como para ele a velocidade dos corpos em movimento é inversamente proporcional à densidade do meio, um meio perfeitamente vazio (densidade nula) implicaria movimentos de velocidade infinita, um absurdo para Aristóteles.

Pulando quase 2.000 anos, o debate sobre a natureza do vazio voltou a estimular a imaginação dos filósofos da natureza. René Descartes, no século 18, postulou a existência de vórtices no espaço que transportavam os planetas em suas órbitas, enquanto Newton assumiu, como os atomistas, que o espaço interplanetário é vazio; a força da gravidade é a responsável pelos movimentos dos objetos celestes.

No século 19, o problema do vazio reapareceu em outro ramo da física, o eletromagnetismo. O britânico James Maxwell mostrou que a luz é uma onda eletromagnética que se propaga à velocidade de 3.000 km/s. Mas as ondas se propagam em um meio material: as de som se propagam no ar e as do mar, na água. De fato, ondas são apenas uma manifestação da propagação de energia através de um meio material. E as ondas luminosas? Em que meio elas se propagam?

Para Maxwell, ondas luminosas se propagam em um meio material chamado "éter". Todos os cientistas da época acreditavam na existência do éter, apesar de suas propriedades muito estranhas, preenchendo todo o espaço (Aristóteles outra vez!), mas, ao mesmo tempo, sendo imponderável, rígido como um sólido e incapaz de oferecer resistência ao movimento dos objetos celestes.

Em 1905, Einstein apresenta sua teoria da relatividade restrita, em que ele mostra que o éter é perfeitamente descartável. O vazio reaparece triunfalmente, juntamente com toda uma reformulação das idéias newtonianas de espaço e tempo. Mas a festa durou pouco. Com o desenvolvimento da mecânica quântica na década de 20, ficou claro que pequenas violações na lei de conservação de energia são possíveis, mesmo que por pouquíssimo tempo. E como matéria e energia são "interconversíveis", essas flutuações quânticas de energia podem criar matéria. O vácuo quântico é repleto dessas flutuações, partículas que aparecem e desaparecem continuamente numa dança de criação e destruição. O vazio não existe. Aristóteles, que não riu por último, pode sorrir novamente.

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